Um perfil das retratações de artigos de cientistas brasileiros

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6 jun 2022
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Retratação. Palavra que assombra cientistas e acadêmicos, para quem significa a remoção de seu trabalho dos anais da literatura científica. As razões para isso podem ser muitas, indo de simples erros de edição, ou não-intencionais, como publicações duplicadas ou repetição de informações e imagens, a más condutas graves, como a manipulação, fabricação ou falsificação de dados e plágio. Mas enquanto as primeiras são perfeitamente sanáveis com a reapresentação dos artigos corrigidos - e assim, evitando a invalidação de suas pesquisas e achados -, as outras – basicamente, fraudes – podem, e devem, ter consequências severas para seus autores, com grande impacto na reputação e carreiras dos profissionais envolvidos, inclusive pelos prejuízos que causam à confiança da sociedade na ciência.

E foi justamente pensando nisso que Karen Santos-D’Amorim, doutoranda do Programa do Pós-graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), decidiu traçar um perfil das retratações envolvendo cientistas brasileiros nas últimas décadas. Para tanto, ela fez um levantamento na base de dados do Retraction Watch, site internacional dedicado ao monitoramento e denúncia destes casos, cujos resultados e análise foram publicados em artigo recente da revista Transinformação, “Razões e implicações de artigos retratados no Brasil”.

A busca, realizada em janeiro de 2020, revelou que entre 2002 e 2019 um total de 162 artigos produzidos com a participação de pesquisadores brasileiros e publicados em 114 periódicos diferentes, dos quais 36 editados no Brasil, foram retratados. Destes, 97 (59,9%) foram alvo de retratação devido a algum tipo de má conduta, 31 (19,1%) por erros não-intencionais, e 24 (14,8%) por erros do periódico ou do editor. Não foi possível encontrar informações quanto às razões da retratação dos 10 artigos restantes (6,1%). O maior número de retratações se deu no primeiro ano desde a publicação do artigo, com o tempo médio entre publicação e retratação alcançando 2,7 anos.

Considerando apenas os casos envolvendo más condutas, a análise identificou que 25 (12,2%) artigos foram retratados por plágio, autoplágio ou outros tipos de eufemismo para este tipo de ação; 11 (5,4%) por manipulação ou fabricação de imagens; e também 11 (5,4%) por falsificação ou manipulação de dados, sendo alguns por uma combinação destes problemas, para citar apenas os mais graves. Mas também foram identificados casos de duplicação de dados (6) ou imagens (18), publicações repetidas (19), dúvidas quanto à autoria dos artigos (16), submissão do mesmo artigo para mais de um periódico (1), autoria forjada (1) e até cinco casos de submissão de artigos sem a aprovação de algum de seus coautores.

“Estamos numa época que o governo usa coisas deste tipo para atacar a ciência”, lamenta Karen, cuja dissertação de mestrado, intitulada “Do ‘publicar ou perecer’ às retratações e despublicações: consequências e impactos na ciência”, serviu de base para o texto na revista Transinformação. “Saímos de uma ciência puramente acadêmica para uma que tem impacto direto na sociedade, o que também trouxe uma exigência maior de correção e autocorreção da ciência. Preocupação que aumentou no contexto da pandemia de COVID-19, em que pseudociências e evidências fabricadas se espalharam junto com o vírus.

Karen, porém, ressalta que embora as retratações sejam uma demonstração de que o sistema funciona, ele está longe de perfeito. Um exemplo disso é análise preliminar, não incluída no estudo publicado na Transinformação, que ela fez dos dez artigos mais citados retratados de cientistas brasileiros, identificados em seu levantamento original, trabalho que planeja aprofundar em seu doutorado na UFPE. Segundo a pesquisadora, só estes artigos acumularam 512 citações, mesmo depois de serem retratados, tendo também, de alguma forma, servido de base para outros 407 artigos posteriores à sua retratação.

“São o que eu chamo de ‘artigos zumbi’, que mesmo após retratados continuam sendo citados e discutidos por diversos motivos na literatura científica”, conta. “E como a ciência geralmente é construída em cima de conhecimentos anteriores, citar estudos e conclusões invalidadas pode ter um efeito dominó em todo um campo de conhecimento”.

Neste sentido, também chama a atenção no levantamento a concentração das retratações em alguns campos – como biociências (27 artigos retratados por má conduta e nove por erros); medicina clínica e experimental II (15 por má conduta e oito por erros); química (21 por má conduta e um por erro); e medicina clínica e experimental I (sete por má conduta e quatro por erros) - e determinados grupos de pesquisa, notadamente na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), instituição com mais artigos retratados, 35, seguida pela Universidade de São Paulo (USP), com 19.

No primeiro caso, Karen credita o resultado ao fato destes campos estarem entre os que mais publicam na literatura científica, além de contarem com mecanismos mais antigos e estabelecidos de fiscalização da ética e integridade científica e, muitas vezes, serem mais facilmente reproduzíveis, “diferentemente das áreas de humanas e ciências sociais, mais subjetivas e onde o plágio é a má conduta mais comum”. Quanto ao segundo, a pesquisadora ressaltou que embora seu estudo não tenha como objetivo “apontar o dedo e citar nomes”, mas “conscientizar as pessoas sobre o tema”, foram encontrados diversos casos de reincidência em más condutas, com dois autores sozinhos sendo responsáveis, respectivamente, pela retratação de 12 e 11 artigos.

“Infelizmente, a má conduta de uma pessoa pode ter grande impacto em todo um grupo de pesquisa”, comenta. “Por isso também estamos vendo um aumento nos casos de autorretratação. Quando um pesquisador acha ou comete um erro num estudo no qual ele é um dos autores, ele tem três opções: ou se cala e torce para ninguém perceber; ou faz e pede uma correção de seu artigo; ou pede ele mesmo sua retratação. É obrigação dele dizer que há uma falha de método, um dado que não corresponda à realidade ou uma conclusão errada, pois uma retratação por má conduta é uma mácula profunda na carreira de qualquer acadêmico”.

Professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp e especialista em cienciometria, Renato Pedrosa ressalva que no Brasil muitas vezes um pesquisador-chefe acaba responsável por grandes grupos que produzem muitos trabalhos, não dando conta de avaliar de perto todos os resultados, e também passíveis de disputas políticas internas e externas.

“Tenho uma visão muito crítica destes supergrupos que produzem 10, 20, 30 artigos por ano”, diz. “Certamente há muito pressão e competição, e ninguém ali consegue ter controle de tudo. Mas alguém sempre tem que ser o responsável, e em última instância este é o pesquisador-chefe. Acho que a boa ciência é feita de forma mais lenta e cuidadosa. Dois artigos por ano está muito bom. Mais que isso é diluir os resultados ou fatiar os estudos, pegando um pedacinho e publicando um artigo diferente de cada vez”.

 

Produtivismo e retratações

E aí chegamos a outra indicação surpreendente do levantamento de Karen, o aparente baixo número de retratações de artigos com a participação de cientistas brasileiros, na comparação com outros países, ainda mais diante da grande expansão da produção científica nacional nas últimas décadas. Repetindo os parâmetros de busca usados por ela na base da dados do Retraction Watch para Brasil, Coreia do Sul, EUA e China, encontramos atualmente 199 notificações de retratações relacionadas a pesquisadores brasileiros, 591 a sul-coreanos, 3.075 a americanos e incríveis 12.015 a chineses, entre 2002 e 2019.

Pode-se argumentar que, no caso dos dois últimos países, os números estão diretamente relacionados ao enorme volume de artigos científicos produzidos por EUA e China no período. Assim, para permitir uma melhor comparação, apuramos a quantidade de artigos citáveis publicados por cientistas destes quatro países na base de dados Scimago entre 2002 e 2019, calculando a partir daí a proporção de artigos retratados por artigos publicados de cada um deles.

E, mais uma vez, os números do Brasil surpreenderam de forma positiva. Aqui, o resultado mostrou uma proporção de um artigo retratado a cada 4.558 dos pouco mais de 906 mil documentos citáveis produzidos com a participação de cientistas brasileiros no período, contra uma retratação por 3.013 de 9,26 milhões de artigos dos pesquisadores dos EUA, uma a cada 1.803 dos pouco mais de 1 milhão de estudos de cientistas sul-coreanos e uma retratação por 514 dos 6,2 milhões de artigos no caso da China.

“O Brasil tem um modelo acadêmico muito parecido com os dos EUA e Europa, mais tradicional e cuidadoso”, aponta Pedrosa, da Unicamp. “É um sistema que EUA e Europa desenvolveram ao longo de décadas, até séculos, em que também há uma forte preocupação institucional com a qualidade da produção científica, já que uma fraude ou má conduta não afeta só a reputação do cientista, mas também a imagem da instituição onde ele atua. As universidades ficam de olho no que está sendo feito dentro delas”.

Além disso, o crescimento da produção acadêmica brasileira se deu de uma maneira mais gradual ao longo dos últimos 40 anos. A China, por outro lado, foi palco de uma explosão na publicação de artigos nas últimas décadas, aumentando em mais de dez vezes o número de estudos publicados entre 2002 e 2019.

“A China saiu de uma posição atrás do Brasil há 25 anos para estar agora na frente dos EUA na liderança mundial da produção acadêmica”, comenta Pedrosa.

Mais que isso, a lógica do crescimento da ciência na China foi calcada no chamado produtivismo, com políticas de Estado que estimulam a publicação “a qualquer preço”, mesmo que seja na qualidade ou pertinência dos estudos.

“São muitos casos de revisão por pares falsas e erros deliberados devido à pressão para publicação em revistas indexadas”, aponta Karen, da UFPE. “Estudantes de graduação da área médica na China, por exemplo, precisam publicar um artigo para terem o título. Esta lógica do produtivismo acaba estimulando ou fomentando este mau comportamento na academia, pois para crescer na carreira alguns cientistas podem optar por este caminho”.

Pedrosa tem análise similar:

“Há muita pressão do governo para trazer as universidades chinesas para o topo do ranking mundial, inclusive com prêmios em dinheiro para publicações em periódicos de renome. Isso gera um clima muito pesado de competição, com impacto na qualidade dos trabalhos”.

Também diagnóstico de Marcelo Yamashita, professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e diretor científico do Instituto Questão de Ciência (IQC), que publica esta Revista Questão de Ciência.

“A China tem uma política agressiva de publicação”, diz. “Isso aumenta a pressão sobre os acadêmicos e acaba comprometendo a qualidade dos trabalhos. Algumas pessoas podem embarcar em más condutas, mas muitas vezes o problema talvez não seja a desonestidade, mas a qualidade muito ruim dos estudos, dos experimentos, dos métodos, que assim acabam sendo retratados”.

 

Maior escrutínio

 

Outro ponto importante é o crescimento global da fiscalização da própria comunidade científica sobre a produção acadêmica, especialmente a internacionalizada, em inglês.

“A maior circulação e a ampliação do acesso à produção científica também aumentou o escrutínio da comunidade científica sobre os resultados que são apresentados”, lembra Pedrosa.

O próprio site do Retraction Watch é um sinal deste aumento, assim como a atuação diligente de profissionais como a microbiologista holandesa Elizabeth Bik, que investigam e denunciam voluntariamente práticas comuns de má conduta, como manipulação de imagens, falsificação de dados e as chamadas “fábricas de artigos”. Trabalho que também tem ganhado o auxílio de ferramentas digitais capazes de detectar automaticamente plágio e outros problemas do tipo.

“De fato ficou muito mais fácil detectar plágios com as ferramentas digitais”, concorda Pedrosa. “Mas quando a pesquisa é original e há falsificação de dados, por exemplo, a situação fica muito mais complicada. Aí, só se descobre a fraude quando outro pesquisador que conhece o assunto e/ou atua na mesma área faz uma análise mais detalhada ou decide replicar o experimento”.

Karen concorda:

“Plágio e fabricação ou manipulação de imagens não são difíceis de identificar hoje. Mas existem outras más condutas que são mais difíceis de detectar, como a maquiagem de dados, com a exclusão de informações que neguem a hipótese nula”, aponta. “A verdade é que a fraude acadêmica é produto de uma combinação de fatores, que vão de traços individuais à estrutura dos sistemas de recompensa acadêmica e políticas públicas”.

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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