Henrique Emmanuel Gregóris costumava andar armado em Hidrolândia, cidade goiana de 20 mil habitantes, 30 km ao sul da capital. O cerrado de Goiás, na época da ditadura, ainda era um cenário de filme western. No verão de 1976, Henrique começa a reformar um imóvel. Com medo de que roubassem o material de construção, empresta seu revólver aos pedreiros e encomenda um sobressalente a João Batista França.
Em 10 de fevereiro, os dois amigos se encontram para beber e levam duas prostitutas para um motel. Henrique, embriagado, pergunta se João já está com arma nova. João vai buscá-la no carro. Os dois homens brincam de roleta russa e o tambor sorteia a cabeça de Henrique, que morre no hospital. João é acusado de homicídio culposo, em que não há intenção de matar.
Meses depois, às 21h de uma noite de junho, o juiz Orimar de Bastos, encarregado do caso, está trabalhando até tarde no fórum de Piracanjuba, 40 km distante de Hidrolândia. Escreve as três primeiras páginas da sentença. Depois, de acordo com seu relato, perde a consciência e entra em transe, sem parar de datilografar. Orimar teria agido guiado por um espírito.
As próximas seis páginas saem impecáveis, sem erros de ortografia ou gramática, e isentam João de qualquer responsabilidade: não houve negligência, imperícia ou imprudência no manejo do revólver. A família de Henrique, indignada com a decisão, apela para a próxima instância.
Dois dias depois, Chico Xavier (1910-2002) entra na história, alegando não saber de antemão nenhum detalhe sobre o caso. Em Uberaba, a 450 km de distância, o médium anuncia que acaba de incorporar o espírito de Henrique em uma sessão de psicografia. A carta resultante diz: “Avise a mamãe para suspender o processo contra João França. Ele é inocente e essa história tem prejudicado o meu crescimento”. Chico vai a Goiânia entregar o manuscrito nas mãos da mãe de Henrique – que se emociona e manda o advogado encerrar o caso.
Tribunais do Além
Essa foi a primeira vez em que uma carta psicografada interferiu no rumo de um processo no Brasil. Desde então, houve no mínimo outros onze casos similares, seis envolvendo Chico Xavier (em um deles, a carta era falsificada e o próprio Chico a denunciou). O mais recente ocorreu há pouco mais de um mês, em 9 de dezembro de 2021, durante o julgamento dos responsáveis pelo incêndio na Boate Kiss.
Existem pelo menos nove livros publicados em português que compilam esses casos e defendem abertamente ou discutem, em tom amistoso, o uso de provas atribuídas a comunicações do Além. Alguns tornaram-se assunto de episódios do programa policial Linha Direta, uma série que misturava técnicas de documentário e ficção para falar, de modo sensacionalista, sobre crimes não resolvidos e outros “mistérios”, incluindo uma suposta abdução alienígena. A mais recente encarnação do programa foi encerrada em 2007.
Na história de Henrique Gregóris e João França, a sentença em si saiu sob suposta influência do Além, e o médium mineiro apenas deu respaldo a uma decisão já tomada. O caso foge um pouco do padrão dos demais. O mais comum é que os advogados de defesa apresentem cartas psicografadas como provas, e que esses documentos acabem influenciando a decisão do júri popular (quando um comitê de cidadãos comuns vota se o acusado é culpado ou não, um procedimento previsto apenas em casos de homicídio doloso e outros crimes deliberados contra a vida).
Esses casos não contam apenas como interferências de ordem religiosa no andamento de processos em um Estado laico – o que seria um problema por si só. Eles também se enquadram como casos de pseudociência no tribunal.
Afinal, os seguidores da doutrina kardecista afirmam que suas crenças na imortalidade da alma e no contato dos mortos são parte de uma teoria verificável empiricamente, e não como questões de fé. Existem muitos experimentos (em geral, repletos de problemas éticos e metodológicos) que buscam validar cartas psicografadas por meio do método científico. Esse é um problema com mais de um século: ainda em 1871, o periódico Nature já publicava uma crítica aos estudos sobre espíritos conduzidos por um pesquisador outrora respeitável, o químico britânico William Crookes (1832-1919).
Aliás: para quem acha que as acusações de incompetência (ou venalidade, dependendo do historiador) lançadas contra Crookes são exageradas, a foto que ilustra este texto é de um dos “fantasmas” autenticados por ele, o suposto espírito de Katie King.
Esse verniz de seriedade, somado à popularidade do espiritismo no Brasil – temos o maior número de seguidores da doutrina no mundo, 3,8 milhões –, dificulta discussões sérias sobre o uso de cartas psicografadas como provas em processos. Textos como este, publicado pela Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas, ou este, no ConJur, expõem o problema como um debate, dando peso igual aos argumentos de juristas que concordam e discordam da prática.
“Os juristas contrários às cartas dizem que, se o Estado é laico, não podemos aceitar provas que dependem de fé, porque isso significaria privilegiar uma religião específica. Mas os juristas que são favoráveis dizem justamente que, se o Estado é laico, proibir as cartas configura perseguição aos espíritas”, explica à RQC a pesquisadora Juliana Melo Dias, que estuda criticamente as provas psicografadas no Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great) da UFRJ.
O problema é que essa é uma falsa simetria. Não há evidências empíricas de que a comunicação com os mortos seja possível. Isso limita a crença na psicografia à fé individual, o que a mantém fora da alçada de um Estado laico. Esse pode parecer um debate puramente teórico, mas não é: tratar cartas psicografadas como documentos (ou melhor, depoimentos) fiáveis também gera problemas práticos no andamento dos processos.
Argumentando com os mortos
Juliana e sua orientadora na pós-graduação, a professora da UFRJ Rachel Herdy, explicam que um dos conceitos mais importantes do Direito é o princípio do contraditório: os dois lados de um processo têm a prerrogativa de contestar todas as evidências apresentadas. As cartas psicografadas não obedecem a esse princípio porque, caso seu conteúdo não bata com os depoimentos de pessoas vivas, fica impossível chamar o espírito no tribunal para uma acareação – nome do procedimento em que o juiz confronta versões.
“A parte contrária tem direito a contradizer a prova e periciar a prova”, explica à RQC o advogado criminalista Fernando Augusto Fernandes. “Ocorre que uma carta psicografada decorre de um sentimento religioso. Portanto, é uma ‘prova’ que não pode ser periciada, e nem pode o lado contrário contradizê-la. Pode-se até dizer que tem a similitude de uma prova falsificada, porque se atribui a autoria de uma carta a alguém que não está mais na Terra. É absolutamente inadmissível”.
O princípio do contraditório também abre espaço para que uma das partes, diante de uma carta psicografada, cobre o direito de apresentar sua própria carta, quiçá escrita pelo mesmo espírito. Supondo que os dois documentos apresentem versões diferentes dos acontecimentos, como fica a acareação? “Estaria ferido de morte o princípio de não-contradição, de Aristóteles, porque pelo menos uma delas [as cartas], sem dúvida, seria inverídica, sem que se pudesse dizer qual”, escreve no ConJur Jacinto de Miranda Coutinho, professor da UFPR.
Alguns juristas que defendem a admissão de cartas psicografadas afirmam que é possível, sim, verificar a veracidade desses documentos: médiuns mais poderosos supostamente escrevem com a caligrafia do morto, o que permite a um perito comparar o texto psicografado com documentos escritos em vida. Mas a perícia grafoscópica, embora útil para as ciências forenses, tem um grau de incerteza razoável.
E mais. Partindo da premissa de que existam cartas psicografadas autênticas, elas devem exibir, além da caligrafia, outras características da escrita do morto: estilo, erros ortográficos ou gramaticais recorrentes, vícios de linguagem, escolhas lexicais e um grau de erudição condizente com a escolaridade e as experiências de vida. Não há perícia capaz de bater o martelo em torno desses critérios. E o que fazer se um parente próximo afirmar que a carta não parece ter sido escrita por seu ente querido?
Foi o que aconteceu na cidade gaúcha de Viamão, nos arredores de Porto Alegre. Resumindo a história: em 2003, o tabelião Ercy da Silva Cardoso foi encontrado morto em casa, com dois tiros na cabeça. O caseiro de Ercy, autor dos disparos, apontou Iara Marques Barcelos como mandante do crime. Iara era amante de Ercy e casada com outro homem, chamado Alcides. Ercy e Alcides eram amigos.
O médium Jorge José Santa Maria, da Sociedade Beneficente Espírita Amor e Luz, supostamente recebeu o espírito de Ercy, que endereçou uma carta a Alcides e outra a Iara, e defendeu a mulher em ambas. "O que mais me pesa no coração é ver a Iara acusada desse jeito por mentes ardilosas como as dos meus algozes (...). Um abraço fraterno do Ercy". O júri popular se comoveu e inocentou Iara. Mas o filho de Ercy, que não é espírita, afirma que o documento foi forjado, e não corresponde ao que ele conhece da personalidade do pai.
Perceba que todas essas dificuldades emergem ao aceitar-se a premissa de que existem cartas verdadeiras e de que é razoável debater sua adoção em processos. Em outras palavras, correspondência psicografada gera impasses no tribunal que mesmo um kardecista é capaz de admitir.
A melhor forma de evitar esse tipo de conflito é eliminando suas causas. Marcella Nardelli, professora de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), defende que, como as pessoas comuns não precisam justificar sua decisão no júri popular – um conceito chamado de íntima convicção –, então as provas a que elas têm acesso precisam ser filtradas com critérios ainda mais rígidos.
Caso contrário, advogados podem utilizar uma carta psicografada para inocentar um réu culpado, ou para prender um inocente contra quem não há evidências conclusivas. A decisão vai depender apenas das crenças religiosas de cidadãos convidados, por sorteio, a compor o júri. Hoje, vigora algo chamado plenitude de defesa: os advogados podem apresentar ao júri argumentos não jurídicos, de ordem política, religiosa ou moral. A plenitude de defesa acaba sendo usada como argumento a favor da legalidade das cartas.
Uma maneira de evitar para sempre o emprego de cartas psicografadas seria o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidir que elas são um meio de prova ilegal. O STJ é o órgão responsável por bater o martelo quando as outras instâncias não conseguem concordar, por exemplo, com a maneira correta de interpretar uma lei. (A exceção é quando o problema envolve algo regido diretamente pela Constituição – aí a responsabilidade é do Supremo Tribunal Federal, o STF.)
O STJ já foi chamado a decidir sobre as cartas uma vez, mas o crime prescreveu antes que a corte tomasse uma decisão. Especialistas interessados podem entender os detalhes aqui.
Chamem os universitários
A argumentação acima fica no âmbito do Direito, é claro. Do ponto de vista do método científico – em especial sua formulação mainstream, baseada na obra do filósofo austríaco Karl Popper (1902-1994) –, já estamos na arena do nonsense há alguns parágrafos.
A hipótese de que existem espíritos e de que são capazes de ditar cartas a humanos seletos não pode ser confirmada nem refutada empiricamente, pois o único meio de fazê-lo seria acessar a consciência de um médium autêntico no momento da psicografia. Sem esse recurso, resta apenas a palavra dos envolvidos. E afirmações que não podem ser verificadas por testes são questões de fé.
O método científico também depende da repetição. Uma teoria só pode ser confirmada se uma série de experimentos similares, conduzidos por diferentes pesquisadores, levarem sempre à mesma conclusão. Se um único perito em grafoscopia, declaradamente enviesado a favor do espiritismo, analisa uma única carta de um médium e declara sua veracidade, essa não é – nem de longe – evidência conclusiva.
De acordo com Juliana Dias e Rachel Herdy, é exatamente isso que o perito Carlos Augusto Perandréa faz no livro A psicografia à luz da grafoscopia (1991): analisa uma única carta psicografada de Chico Xavier, comparando-a a um cartão de Natal escrito pela pessoa ainda em vida. Embora a obra seja citada com frequência por outros juristas, ela só tem valor como caso isolado misturado a opinião pessoal.
Para realmente testar a hipótese de que a caligrafia dos médiuns reproduz a dos mortos, precisaríamos de uma grande amostra de cartas, analisadas por peritos idôneos, e essa análise precisaria ser organizada de modo a minimizar vieses (na testagem de um medicamento, por exemplo, isso é feito com o cegamento duplo, em que nem os médicos nem os pacientes sabem quem está tomando o placebo e quem está tomando a droga verdadeira). Por fim, os resultados deveriam levar em consideração o grau de incerteza intrínseco à grafoscopia.
Só após muitos estudos com um crivo de qualidade alto, exibindo resultados muito acima dos esperados por pura sorte, poderíamos dizer que há algo próximo de um consenso. Esse processo leva anos, ou décadas. A detecção de ondas gravitacionais em 2015 e a fotografia do buraco negro M87* em 2019 serviram como confirmações para as equações da Relatividade Geral de Einstein, que datam de 1915.
Outro problema é o argumento falacioso do apelo à autoridade. Existem alguns cientistas razoavelmente famosos – como o já mencionado William Crookes – que se tornaram espíritas em alguma etapa da vida e buscaram testar sua fé aplicando o método científico. Até hoje existem espíritas com linhas de pesquisa dúbias trabalhando em universidades.
Ideias erradas nascem em berço de ouro. Até Linus Pauling, com seus dois Prêmios Nobel, defendeu o uso de doses cavalares de vitamina C contra resfriados – uma ideia que não encontra respaldo em nenhum estudo de nutrição, mas leva mães preocupadas a comprarem comprimidos efervescentes até hoje. O que interessa é ler criticamente o trabalho de qualquer especialista consultado, sem se deixar levar pelo currículo Lattes.
As cartas psicografadas são só mais um capítulo do flerte do Judiciário com as pseudociências – que passa, por exemplo, pelo uso de uma psicoterapia new age machista chamada constelação familiar como ferramenta de conciliação.
Se o Estado laico deve respeitar provas que são questão de fé e não têm base no método científico, então voltamos à era em que o Judiciário era desnecessário. Afinal, o Deus onisciente e onipresente sabe o que aconteceu; basta consultá-lo. Essa é a prova medieval da ordália, cuja versão mais antiga está no livro bíblico Números: a mulher suspeita de adultério bebe água contaminada. Se ela passar mal, é porque traiu. Se ficar bem, Deus a protegeu e ela é inocente (Nm 5:11-31). Haja anticorpos para sobreviver a esse júri.
Bruno Vaiano é jornalista