É um erro imaginar que o obsceno recrudescimento da postura antivacinas do governo federal, com o Ministério da Saúde lançando mão de chicanas vergonhosas para negar às crianças brasileiras acesso à imunização contra COVID-19, tenha algo a ver com as vacinas em si. Os imunizantes são apenas o assunto do momento, o tema da ocasião, escolhido pelo Planalto para sustentar o clima de guerra cultural antiestablishment que é o que mantém vivo e motivado o bolsonarismo raiz.
Para continuar existindo como líder de alguma coisa, Jair Bolsonaro precisa oferecer à sua base uma Face do Mal: uma conspiração, algo que explique seus seguidos fracassos como presidente e distraia seus apoiadores de suas inúmeras traições (à política econômica liberal, à promessa de “acabar com a corrupção” e de romper com a “velha política”), ao mesmo tempo em que fornece a esses acólitos um alvo, um inimigo para odiar e uma Santa Causa pela qual trollar na internet.
Até alguns meses atrás, os bodes expiatórios eram as urnas eletrônicas e o Supremo Tribunal Federal; para 2022, ao que tudo indica, serão as vacinas e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Deve ser relaxante ter alvos que não têm meios de mandar prender ninguém, nem de bloquear decisões do governo.
Fraudes e cultos
O núcleo ideológico duro do bolsonarismo – isto é, descontados os oportunistas, os canalhas e os pobres iludidos que achavam que ia dar para manter o maluco trancado na sala acolchoada enquanto os “profissionais sérios” governariam de fato – parece funcionar como paródia de um tipo específico de fraude de afinidade, o apocalíptico.
“Fraude de afinidade” é o nome dado a golpes que usam o senso de identidade e confiança mútua de um grupo – religioso, étnico, etc. – para se espalhar. Versões apocalípticas emergiram no início da popularização da internet, fundindo características de cultos de fim-dos-tempos com esquemas de pirâmide.
Cultos apocalípticos são fenômenos sociais e psicológicos muito bem estudados, e têm trajetórias conhecidas. Giram em torno de líderes que prometem uma Grande Transformação, depois da qual nada mais será como era antes; quando os poderosos serão humilhados e os humildes, exaltados; e os responsáveis pelos males do mundo, consignados ao fogo eterno.
Quando a profecia falha – quando o messias não surge em glória sobre as nuvens, carregado nos braços de anjos; quando os Poderes do Mundo não são humilhados e destruídos; principalmente, quando os seguidores que deram tudo pela causa não se veem coroados príncipes da Nova Ordem –, muitos fiéis simplesmente se recusam a aceitar o veredito da realidade e passam a olhar para o mundo como uma espécie de criptograma a ser decifrado: os fatos são o que são, mas na verdade significam outra coisa. E esse significado, é claro, alinha-se perfeitamente aos princípios do culto.
Essa fúria hermenêutica produz teologia ou teorias da conspiração; às vezes, ambas.
Nas fraudes de afinidade, o “apocalipse” é uma grande transformação econômica global – a volta do padrão ouro, a abolição dos juros e dívidas, etc. – e você pode se beneficiar muito dessa reviravolta, desde que faça o investimento certo na hora certa.
Quando a grande transformação não vem, os proponentes da fraude insinuam a existência de uma “guerra secreta” entre os intrépidos heróis que querem trazer a mudança e os vilões que buscam manter a economia mundial no estado deplorável em que se encontra.
Eventos do noticiário são interpretados como “sintomas” do andamento da guerra: nada é o que parece. Tudo são lances no xadrez do Bem contra o Mal. E, por favor, continue mandando dinheiro (para quem quiser um exemplo concreto, o caso Omega Trust-Nesara é um dos mais conhecidos).
Guerra às vacinas
Que o bolsonarismo tem um sabor muito semelhante ao de uma fraude apocalíptica de afinidade não deve surpreender ninguém. É um movimento baseado em premissas falsas que se propaga online, por linhas de identidade ideológica, promete ganhos imensos após uma Grande Transformação que não vem nunca (a política econômica terrivelmente liberal esperada pelos farialimers, a “intervenção militar constitucional” sonhada pelos milicianos, o “fim da corrupção” aguardado pelo lavajatistas). E, por fim, já sofreu várias desconfirmações cabais, a que reagiu oferecendo releituras criativas da realidade, sempre sob a lente de uma “guerra subterrânea” travada contra as maquinações do “sistema” – encarnado ora na “esquerda”, ora no STF, ora na Anvisa.
A única diferença é que o “investimento” solicitado não é em dinheiro (excetuados os doadores de campanha), mas em devoção, belicosidade, ativismo e votos.
Eleger a vacinação infantil como o novo campo de batalha da guerra entre o Bem e o Mal faz sentido, se você não se importa em deixar crianças morrerem e acha que vale a pena atiçar fanáticos com uma queda pela violência. A saúde dos filhos é uma fonte constante – e legítima – de angústia e preocupação para os pais.
Semear confusão nessa seara sempre gera fortes reações emocionais: a segurança e o bem-estar das crianças são conhecidos desencadeadores de pânicos morais que, com frequência, degeneram em atos de agressão contra inocentes. Trata-se de um gatilho poderoso que, no mínimo, gera engajamento e cliques.
Enfim, o ataque frontal do governo à autorização para que crianças sejam vacinadas contra COVID-19 com o imunizante da Pfizer não tem nada a ver com os méritos ou deméritos da vacina em si – a informação técnica está amplamente disponível –, mas atende às necessidades de manter acesa a chama dos trolls, de distrair os fiéis e de sustentar a esgarçada ilusão do protagonismo presidencial.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)