Darwin e a natureza humana

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16 nov 2021
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DARWIN

 

Uma mistura de desafio e otimismo rondava os pensamentos de Charles Darwin (1809-1882) em 1838. Tal atitude é representada por uma anotação do seu “Caderno M”, datada de 16 de julho daquele ano, que poderia soar imprópria para muitos de seu tempo e lugar. Ali Darwin especula: “Aquele que compreender o babuíno fará mais para a metafísica do que Locke”.

Prestes a completar 30 anos, o vitoriano Darwin já havia colecionado observações sobre o mundo natural e o desenvolvimento das formas de vida, durante os cinco anos de viagem a bordo do HMS Beagle. Tais informações começavam a ser articuladas na expectativa de construção de uma explicação mais ampla sobre as dinâmicas das coisas vivas.

Porém, aquela curta análise parecia estranha para alguém com crenças e visões de mundo do século 19, considerando os desafios ali estipulados. Um primeiro desafio é direcionado à tradição religiosa, que se propunha a explicar a realidade e o humano com bases metafísicas sobrenaturais; já o segundo desafio é direcionado à tradição filosófica, nomeadamente a um dos seus principais nomes, John Locke (1632-1704) que se propunha a especular sobre o modo como o humano interage com a realidade.

Em 1859, Darwin publica On the origin of species by means of natural selection, e apresenta sua teoria sobre a diversidade da vida, estruturada a partir de observações naturalistas. O estudo foi imediatamente reconhecido como uma contribuição valorosa à cena intelectual, ao mesmo tempo em que foi atacado e criticado por propor que todos os organismos vivos haviam se originado em processos naturais, sem referência a manifestações e intervenções sobrenaturais.

O objetivo de Darwin era mostrar que as espécies que conhecemos são o produto de modificações lentas e graduais. Ao longo do tempo, tais modificações acabam por propiciar o surgimento de novas espécies, cuja origem encontra-se em formas naturais pré-existentes.

Há de se notar que Darwin evita questões antropológicas em On the origin of species e se esquiva de debater sobre a presença divina ou sobrenatural nas dinâmicas no mundo natural. É provável que estivesse consciente de que, por mais que pudesse tratar tais temas de forma séria e cautelosa, tudo que dissesse provocaria furiosas controvérsias, diante dos preconceitos de seu tempo.

Silenciou o quanto pôde acerca do tema das origens e capacidades humanas, embora no final do livro faça uma referência às expectativas de sua hipótese para futuras pesquisas: “No futuro distante, visualizo novos campos que se estendem para pesquisas ainda mais importantes. A psicologia irá basear-se num fundamento novo, o da necessária aquisição gradual de cada faculdade mental”.

Assim, mantinha expectativas concretas e um possível programa de pesquisa em aberto, além de evitar o que chamava de “tumultos morais”, o modo como Darwin identificava as dúvidas e questionamentos sobre as implicações antropológicas de sua hipótese. Porém, de uma forma ou de outra, o “mais interessante dos problemas” demandava uma resposta construída em termos darwinianos.

Essa reposta foi publicada sob o título de The Descent of Man e completa 150 anos em 2021. Ali, Darwin propõe uma explicação da origem da Humanidade apoiando-se nos dois principais argumentos estabelecidos em A Origem das Espécies: o argumento da seleção natural e o argumento da descendência comum. O estabelecimento de uma origem comum para todas as formas de vida fez com que Darwin contrariasse tradições religiosas e filosóficas, pois questionou o lugar de destaque da Humanidade entre as formas de vida.

Esse questionamento tem por base a hipótese de que a Humanidade não é uma espécie criada à parte das demais, pois tem antepassados comuns com outros animais. Já o argumento da seleção natural, de forma complementar ao argumento da descendência comum, explica que os seres vivos não são resultado especial de nenhuma força sobrenatural ou produto da habilidade de um projetista, contrariando tradições antropológicas. A espécie humana é o resultado da adaptação de certas espécies às pressões do meio ambiente e da constituição hereditária dos sobreviventes desse processo. Tais argumentos trazem, em seu cerne, a ideia de gradualidade presente na concepção darwiniana.

No entanto, na tentativa de explicar as raízes biológicas do desenvolvimento histórico nos capítulos de The Descent of Man, Darwin não está isento de erros. Ao tratar das variedades, destaca diferenças, tipologias e escalonamentos entre as “raças humanas”, além de destacar a superioridade do “homem, mais corajoso, pugnaz e enérgico do que a mulher”. Tais concepções estavam diretamente conectadas às visões racialistas e misóginas de sua época, e exemplificam um caso de influência de estruturas ideológicas na construção da ideia de Humanidade.

Darwin, um vitoriano, homem do seu tempo e de sua classe, possuía tendências etnocentristas, eurocêntricas e preconceitos em relação às características e condições de existência de outros povos, que observou em sua viagem por diferentes partes do mundo. Desafiou várias afirmações poderosas e questionáveis sobre a realidade e sobre nós mesmos, mas não todas.

A situação aqui é curiosa, uma vez que o sujeito que inaugurou um programa de investigação naturalista, no qual as diferenças entre humanos e outros primatas eram uma “questão de grau, não de tipo”, também repetiu e conferiu legitimidade para preconceitos e alegações questionáveis de “inferioridade” e “superioridade” entre os seres humanos.

No final do século 19, numa tentativa de ampliação sociológica, política e econômica das hipóteses de Darwin, surge a proposta que ficará conhecida como “darwinismo social”, que trata abertamente de entender a vida social e política dos humanos por meio de categorias pretensamente biológicas. As noções gerais do darwinismo social buscam fundamentar uma defesa da “luta pela sobrevivência” no interior da sociedade, onde o indivíduo “capaz” triunfa e o “incompetente” fracassa.

No campo político, a ideologia do darwinismo social influencia posicionamentos agressivos nas relações entre as nações e grupos sociais. Tal hipótese teve considerável influência em sua época, com grande popularidade e utilizada como justificativa política e econômica em circunstâncias históricas do fim do século 19 e início do século 20, como o imperialismo, o nacionalismo, o liberalismo e o escalonamento racial – cada uma, a seu modo, afirmando a ideia de que a sobrevivência dos melhores e mais aptos indivíduos levará, necessariamente, a um avanço e progresso em toda a sociedade.

Porém, mesmo considerando os enganos e as preconcepções de Darwin sobre raças e gêneros, as noções de “finalidade” e “progresso” são estranhas ao processo natural e contingente que encontramos descrito nas páginas de On the origin of species e, consequentemente, em The Descent of Man. As especulações políticas e sociais do chamado “darwinismo social” são exemplos de um “mau uso das ideias de Darwin”, uma apropriação da teoria do naturalista britânico para explicação de certos aspectos que não correspondem à teoria evolucionista originalmente proposta, conforme terminologia proposta por Donald Symons.

Cabe observar que as investigações naturalistas e evolucionistas sobre a Humanidade são cada vez mais difundidas 150 anos depois publicação de The Descent of Man, com ampla respeitabilidade científica e uma busca constante de dissociação dos erros e enganos do passado (inclusive aqueles do próprio Darwin). Um vasto campo de pesquisa se desenvolveu, cada vez mais crítico e reflexivo sobre si. A “história natural da Humanidade” busca respostas em áreas diversas, como a primatologia, a antropologia, a psicologia, as neurociências, entre outras. E convive num diálogo constante com a filosofia, na tentativa perene de compreender o nosso lugar no Cosmos.

O programa de pesquisa de inspiração darwiniana, ampliado em 1871 com a publicação de The Descent of Man, abre possibilidades para que possamos compreender como nos tornamos aquilo que somos. Reconhece-se assim que a ciência pode ter um papel relevante na compreensão de nossa natureza, e este é um dos pressupostos das análises e concepções bioevolutivas amplamente disseminadas no nosso tempo.

Darwin, ao especular sobre a compreensão do babuíno e os avanços da metafísica, abriu caminhos decisivos para que pudéssemos entender melhor a diversidade das formas de vida e a nós mesmos. Atualmente, partindo dessa concepção, busca-se compreender nossa racionalidade e seus limites, nossas tendências, vieses, sociabilidade e emoções, entre outros traços distintivos, conforme a expectativa darwiniana presente no final de On the origin of species.

No entanto, o estudo da relação entre Humanidade e natureza também serve de exemplo de como o trabalho científico exige cuidado e reflexão para evitar reducionismos exagerados e expectativas infundadas. Nesse sentido, também precisamos nos manter atentos e reflexivos sobre aquilo que observamos na estranha realidade na qual estamos inseridos, evitando ilusões, crenças errôneas e preconceitos dos quais todos nós podemos ser reféns.

 

José Costa Júnior é professor de Filosofia e Ciências Sociais no IFMG, Campus Ponte Nova

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