CPI revela que "banda podre" militar era uma orquestra completa

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22 jul 2021
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banda militar

 

Não há realismo fantástico que dê conta da realidade cotidiana desta nossa Macondo continental em que, em meio a uma pandemia, um reverendo de igreja nenhuma encarrega um cabo da Polícia Militar de Alfenas de vender 400 milhões de doses de vacinas inexistentes a fardados aquartelados no Ministério da Saúde, que pelo jeito engole qualquer conversa fiada. É o festival do descalabro. Deve ter um guichê específico para golpistas no ministério, só pode. A cada depoimento na CPI, aumenta o número de coronéis citados e a banda podre militar, que fez o general Braga Netto ter um de seus arroubos autoritários, vai ganhando proporções de orquestra sinfônica.

Vacinas, assim como o Brasil, não são para principiantes, como a AstraZeneca está aprendendo a duras penas. Criada em 1999 pela fusão da sueca Astra com o grupo britânico Zeneca, a empresa tem mais de 60 mil funcionários e três centros de pesquisa e desenvolvimento: Cambridge, na Inglaterra, Gotemburgo, na Suécia, e Gaithersburg, em Maryland, Estados Unidos.

Quem largou na frente na corrida por uma vacina contra a COVID-19 foi a Universidade de Oxford, que vinha pesquisando há tempos uma vacina contra coronavírus, e pretendia ceder direitos de produção e venda a qualquer farmacêutica interessada. No entanto, a Gates Foundation recomendou que Oxford se associasse a um grande laboratório e o governo britânico sugeriu a AstraZeneca, com sede na Europa, temendo que uma parceria com farmacêutica americana deixasse os europeus em segundo plano na hora da distribuição. O acordo foi firmado em maio de 2020, garantindo o fornecimento de 1 bilhão de doses, 100 milhões das quais para o Reino Unido, e mais 300 milhões de doses para o consórcio COVAX Facility da Organização Mundial da Saúde (OMS).

A AstraZeneca nunca tinha antes produzido ou testado vacinas, e terceirizou ambas as atividades. Os testes clínicos realizados no Reino Unido, Brasil, África do Sul, Japão e Índia seguiram critérios diferentes, e os EUA interromperam os ensaios depois que um voluntário passou mal. Não bastasse, houve o imbróglio da meia dose: voluntários irlandeses receberam meia dose porque os rótulos estavam em italiano... A vacina é produzida hoje em 25 laboratórios de 15 países, inclusive o Brasil, mas a AstraZeneca não soube lidar com uma série de problemas que afetaram a imagem de seu produto, o principal deles o risco (reduzidíssimo) de aparecimento de tromboses, que levou vários países a restringir seu uso ou mesmo suspendê-lo definitivamente.

 

Europa ou Alfenas?

A empresa não soube conter a boataria que se seguiu e, ainda por cima, privilegiou as entregas para o Reino Unido, num cenário pós-Brexit. Em fevereiro deste ano, quando o cabo da Polícia Militar de Alfenas Luiz Paulo Dominghetti oferecia 400 milhões de doses da vacina da AstraZeneca ao Ministério da Saúde, a Europa já estava em pé de guerra com a empresa, acusando-a de privilegiar os britânicos e não entregar as vacinas contratadas pelo continente. Só no primeiro trimestre, a AstraZeneca deveria ter entregue 120 milhões de doses de sua vacina aos europeus, que só receberam 30 milhões.

Por aqui, eram atrasos e mais atrasos na entrega de insumos para a FioCruz. A Europa resolveu seu problema contratando 1 bilhão de doses da Pfizer. Decidiu não renovar seu contrato com a AstraZeneca, no dia 30 junho, como ainda prometeu um mundaréu de retaliações contra a empresa. Vamos e venhamos: se a AstraZeneca tivesse 400 milhões de doses escondidas em algum lugar, teria entregue rapidinho aos europeus para evitar disputas judiciais e retaliações de um dos mais poderosos blocos econômicos do mundo, e não colocado tudo nas mãos de um obscuro cabo da Polícia Militar de Alfenas.

Bastaria uma passada d'olhos pelos jornais para os coronéis do Ministério da Saúde perceberem que era golpe. Claro, lembrando que as negociações do Brasil com o COVAX Facility foram complicadas pelo singelo fato de o pessoal aquartelado no Ministério da Saúde não falar nem ler em inglês. Carlos Wizard poderia ter dado uma mãozinha, né não?

 

Mapa do golpe

Essa história começa com um tal coronel da reserva da Força Aérea chamado Glaucio Octaviano Guerra, que vive nos Estados Unidos e de vez em quando faz traduções para o amigo Herman Cardenas, CEO de uma certa empresa chamada Davati, que tinha tentado vender as tais vacinas da AstraZeneca para indígenas da província canadense de Saskatchewan. O governo canadense farejou o rato e acabou com as negociações. A empresa tentou aplicar o mesmíssimo golpe no Paraguai e na Arábia Saudita. Cardenas alega que não dispõe das vacinas, mas conhece um médico que teria acesso às tais vacinas, 300 milhões de doses da AstraZeneca e 100 milhões da Janssen.

Vamos lembrar que o mês era fevereiro, o mundo inteiro estava à caça de vacinas, a demanda era e é gigantesca e não existem vacinas para “pronta entrega”. Lembremos que o presidente Bolsonaro, antivacinas convicto, só se mexeu para obter vacinas “para idosos e grupos de risco” quando se deu conta que o governador de São Paulo, João Doria, anunciou que ia vacinar o primeiro paulista no dia 25 de janeiro e, mais ainda, que seus fiéis seguidores passaram a perguntar ao presidente em suas redes sociais quando teríamos vacinas. Foi uma surpresa para Bolsonaro saber que os brasileiros, inclusive seus seguidores, queriam ser vacinados! Quem poderia imaginar?

Desde o ano passado, a Pfizer viu no Brasil a chance de fazer a melhor propaganda de sua vacina: país grande, com pandemia descontrolada, mas um Programa Nacional de Imunizações reconhecido em todo mundo e uma população servida por uma rede de postos de vacinação capaz de imunizar 3 milhões de pessoas em um dia. Foram mais de 100 e-mails em um ano, mas, por azares da informática, o generalíssimo ministro da Saúde Pazuello não conseguia abrir esses e-mails... Caso único de vírus de computador seletivo esse que impedia a leitura só dos e-mails da Pfizer, muito parecido com o tal cachorro que comeu minha lição de casa, e igualmente tosco como desculpa esfarrapada.

Outro personagem dessa história mal contada é o reverendo Amilton Gomes de Paula (não se sabe ao certo de que igreja seria reverendo), que preside uma organização não-governamental (ONG) com nome para lá de governamental, a Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (Senah), que bem poderia ser órgão do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos, aquele da Damares Alves. O reverendo, acreditem, abriu as portas do Ministério da Saúde para o tal cabo da PM de Alfenas. Sou do tempo em que você só entrava no ministério para entrevistar alguém depois de várias tratativas, hora marcada, apresentando documentos.

Agora, qualquer um vai entrando no Ministério da Saúde sem a menor cerimônia, para vender vacinas que não existem e ainda por cima cobrar “comissionamento”. Desde que essa história veio a público, fico me perguntando o que teriam dito se o governo pagasse as 400 milhões de doses e não aparecesse vacina alguma, ou o que os europeus fariam se as vacinas aparecessem de repente por aqui. 

 

Covaxin

E, não bastasse a encrenca da AstraZeneca, tem também a da Covaxin indiana, que o senador e filho presidencial Flávio Bolsonaro disse ter “uma reputação boa”, durante o depoimento na CPI de Emanuela Medrades, diretora técnica da Precisa Medicamentos, uma empresa famosa por frequentar o noticiário. Seu proprietário é acusado de calote no fundo de pensão da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Rio de Janeiro, a companhia é investigada por venda de testes para COVID-19 de qualidade duvidosa e outra firma do mesmo dono vem sendo multada e cobrada por órgãos públicos por vender medicamentos de alto custo, receber o pagamento e não entregar a mercadoria. O senador Flávio aparece de vez em quando nas sessões da CPI para desacreditar testemunhas, vociferar que o governo do pai é impoluto e competente e acusar governadores e prefeitos de corrupção. Mas desconhece o significado de “boa reputação”.

Quando a Drugs Controller General of India (DCGI), a agência regulatória do país, liberou o uso emergencial da Covaxin, no dia 3 de janeiro, o primeiro-ministro Narendra Modi exaltou a conquista da autossuficiência vacinal indiana. Modi, populista, nacionalista e, como Bolsonaro, ganhador de um IgNobel pandêmico, por ter dito que a prática de yoga previne a COVID-19, também andou promovendo seu "kit covid", composto por cloroquina e ivermectina e que nem era gratuito: cobravam-se US$ 3 o kit. Mas no dia seguinte o jogo virou. Médicos, cientistas e ex-ministros da Saúde criticaram duramente a liberação, que ocorreu após a fase 2 de testes clínicos e sem divulgação de dados que embasassem a decisão.

Os testes de fase 3 ainda estavam em andamento e pelo menos um desses testes está sob suspeita: nos Emirados Árabes Unidos, há voluntários com o mesmo nome, idade e endereço repetidas vezes, como se fossem pessoas diferentes. Autoridades de saúde e médicos estavam nos jornais e nas TVs recomendando que ninguém tomasse a vacina, pois não se sabia nada sobre sua eficácia. A Covaxin estava disponível para venda simplesmente porque encalhou, e apareceu a oportunidade para que a Precisa se apresentasse para representar a Bharat Biotech, a segunda maior fabricante de vacinas da Índia, como exige a legislação brasileira.

Líder do governo na Câmara, o deputado federal Ricardo Barros (Progressistas-PR), uma espécie de czar do Ministério da Saúde há anos, saiu correndo para apresentar um projeto de lei que concede registro automático de medicamentos pela Anvisa a produtos autorizados previamente por uma ampla lista de agências regulatórias estrangeiras, incluindo, claro, a indiana e, por pressão do Consórcio do Nordeste, a russa. Até as agências da Argentina e México, que são meras repartições burocráticas, entraram no pacote.

A Covaxin é uma vacina clássica, de vírus inativado, como a Coronavac, e custa na Índia US$ 4 a dose. Mas, para exportação, ela custa US$ 15 (a Coronavac custa US$10), o maior preço entre as vacinas negociadas pelo Brasil. Não bastasse, o pagamento adiantado deveria ser feito a uma terceira empresa instalada num paraíso fiscal, Cingapura.

Mas aí, no comecinho de março, a pandemia avançou ferozmente pela Índia, que registra, oficialmente, 420 mil mortos, mas segundo especialistas tem um número de vítimas dez vezes maior. Por conta disso, a Índia de Modi não está mais interessada em exportar seus insumos e vacinas. De qualquer forma, tanto a Precisa quanto Ricardo Barros viraram alvos da CPI, e o que era o escândalo dos mais de 500 mil mortos virou a história de uma inacreditável sucessão de tentativas de golpes, não os de Estado, mas do vigário, em que o nome do coronel Élcio Franco, ex-secretário executivo do Ministério da Saúde de Pazuello, aparece de modo recorrente.

Foi no gabinete de Franco que o generalíssimo do almoxarifado, então ministro Eduardo Pazuello, reuniu-se com empresários catarinenses da World Brands dispostos a intermediar a compra de 30 milhões de doses da Coranavac por US$ 28, praticamente o triplo do preço do Butantan, que é o representante legal da Sinovac (a fabricante) no Brasil. Em seu depoimento à CPI, portanto, Pazuello mentiu quando disse que não se encontrava com nenhum laboratório ou vendedor de vacinas: recebia, só não recebia os da Pfizer.

 

E por fim...

Falta ainda à CPI se debruçar sobre o caso da Sputnik V, que agora virou Sputnik Light, e União Química, que a representa no Brasil. O Instituto Gamaleya, que desenvolveu a vacina, reconhece que há problemas com a segunda dose, o Fundo Soberano, que a produz em sete fábricas diferentes e a vende, afirma que não há problema algum e tudo não passa de uma campanha de difamação orquestrada pelos imperialistas americanos e pelas autoridades da Anvisa.

Resta saber por que, então, a Sputnik agora tem dose única, sem a segunda dose que não tinha problemas. E o que anda acontecendo na fábrica da União Química, que uma hora diz que produz a Sputnik desde janeiro e joga fora porque a Anvisa não libera a vacina russa e em outras afirma que está começando a envasá-la.

Serão duas semanas de abstinência sem CPI da COVID-19, sem o senador Fernando Bezerra indignado, rosto congestionado, com aquela máscara de baixa qualidade que ele ajeita toda hora, sem os questionamentos certeiros do senador Alessandro Vieira e da senadora Eliziane Gama, sem bate-bocas e sem a repetitiva e tediosa defesa da cloroquina do senador Heinze, que o público sempre acompanha ansioso, preenchendo cartelas de bingo.

E por falar em clorocoisa, o Dr. Francisco Cardoso, um dos que foi à CPI defender o uso do fármaco contra COVID-19, está indignado porque a presidente do Instituto Questão de Ciência e publisher desta revista, Natalia Pasternak, "que nunca tratou um paciente", teria se referido a ele e ao médico Ricardo Zimmerman como "cloroquinistas de jaleco". Vamos aos fatos. Primeiro: Natalia é microbiologista, nunca se apresentou como médica, e se tratasse pacientes cometeria crime de exercício ilegal da Medicina. Segundo: Cardoso e Zimmerman são médicos e, portanto, usam jaleco. Terceiro: sendo cloroquinistas e usando jaleco, são cloroquinistas de jaleco, visto que leigos não usam jaleco. Quarto: quem o chamou de cloroquinistas de jaleco fui eu, que assino o referido artigo, e não a Natalia. Quinto: não estamos mais no tempo das diligências e duelos ao Sol. Sexto: não perco tempo, desperdiço meu córtex cerebral nem gasto ATP em debates com cloroquinistas, fosfocrentes, terraplanistas, antivacinas e assemelhados. Sétimo: se a gente tem vacina, não precisa de cloroquina. Fim do debate.

 

Ruth Helena Bellinghini é jornalista, especializada em ciências e saúde e editora-assistente da Revista Questão de Ciência. Foi bolsista do Marine Biological Lab (Mass., EUA) na área de Embriologia e Knight Fellow (2002-2003) do Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde seguiu programas nas áreas de Genética, Bioquímica e Câncer, entre outros

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