Na guerra à COVID-19, vírus não é o principal inimigo

Artigo
2 abr 2021
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Cresce uma aguda separação entre partes da população que conhecem e aceitam evidências científicas, outras que as aceitam, outras que as conhecem e as rejeitam, e mais algumas que só acreditam em fatos quando apresentados por poderosos. Adicione-se a estes segmentos partes da população que aceitam qualquer coisa que venha de um grupo de WhatsApp, ou similares, ao qual essas pessoas pertencem. Portanto o “fato” divulgado pode, ou não, corresponder a um fenômeno real. O diálogo entre esses grupos está se tornando cada vez mais difícil nesta pandemia, pois o ato de escutar em meio à conversa parece ter sido esquecido.

Adicione-se a esta particular divisão tóxica da sociedade o fato de que os que não aceitam evidências, e que claramente são anticiência, estão hoje concentrados no Governo Federal e em seus seguidores. Governo Federal, representado por Bolsonaro, é a expressão do Poder, e seus seguidores são poderosos divulgadores em redes sociais.

É provável que as diferenças entre aqueles que aceitam evidências e parte da população que não as aceita seja um problema cultural complexo. E, como todos os problemas complexos, pode ser tema de pesquisa. Adiantando algumas hipóteses, atrevo-me a listar componentes do pensamento daqueles que se recusam a aceitar evidências.

Certamente, parte da população está pré-disposta a aceitar, sem questionar, os argumentos de poder. Argumentos de poder não precisam ser sustentados por outra coisa que não seja o poder de quem os emite. Assim, quando um Ministro, ou um Presidente, declara que a pandemia é uma manobra dos chineses para dominar o mercado de vacinas, que o distanciamento social é inútil, pois as pulgas e os mosquitos podem se deslocar, que o uso de máscaras causa doenças graves e retém o gás carbônico, ou que a cloroquina evita a COVID-19, uma parte da população acredita, pois essas afirmações foram emitidas por quem detém o poder. Esses mesmos argumentos são divulgados ad nauseam por redes sociais dominadas, e financiadas, por apoiadores ferrenhos da ideologia do presidente.

Nenhum desses exemplos é sustentado por evidências. Alguns, como o caso do uso da cloroquina no tratamento precoce, foi de fato uma breve controvérsia, até que uma plêiade de evidências científicas mostrou que o uso desse antimalárico nada traz de benefício para os doentes de COVID-19. Em outros exemplos prevalece a mentira, a ignorância ou a má-fé. Isto é evidente quando se diz que usar máscaras pode matar, que mosquitos e pulgas transmitem COVID-19 ou que não está provado que distanciamento social diminui a probabilidade de contágio.

Uma porcentagem da população aceita qualquer argumento de Bolsonaro, não necessariamente pelo fato de ele deter o poder, mas porque é ideologicamente afinada a seu discurso. E apesar da mudança no discurso, qualquer declaração de Bolsonaro é aceita como um mantra.

É muito mais complexo entender os condicionantes que acompanham as atitudes dos que, munidos de conhecimento, ao menos formal, continuam a acreditar e defender, por exemplo, na liberdade dos médicos de ignorar medicina baseada em evidência. Para mim, esse tipo de reação é um mistério a ser investigado. E, por ser cientista, creio que a compreensão deste tipo de fenômeno é importante, pois quantas outras situações similares terá a Humanidade que enfrentar?

Não vou tratar aqui das aglomerações nas festas, nem do desprezo às máscaras, pois isso é um outro capítulo que, junto com os anteriores, merece estudo separado. Não alongo este artigo, mas não esqueço a responsabilidade do Estado frente as aglomerações no transporte público.

Claramente, existem divisões agudas numa população que sofre com a pandemia. Não é esperado que, frente a uma tragédia nacional da dimensão desta, existam tamanhas divisões na população. Tragédias que causaram menos vítimas fatais, como incêndios ou deslizamento de morros, despertaram forte sentimento de solidariedade. Como descrever, então, a situação do Brasil, hoje?

Na Segunda Guerra Mundial, morriam 100.000 soldados americanos por ano. No Brasil, de março de 2020 a março de 2021, morreram 300.000 cidadãos por COVID-19. Apesar da ausência de um conflito armado no Brasil, as mortes, a falta de leitos de UTI, o esgotamento das equipes médicas, as faltas de oxigênio, e o desespero de uma parte importante da população, configuram uma situação de guerra, que alguns preferem chamar de pandemia.

Qual é o inimigo? O SARS-CoV-2 é um vírus, não tem, portanto, propósito nem raciocínio de inimigo: é parte da natureza.

A resposta dos cientistas perante a pandemia é espetacular, e antes do que qualquer um esperava, dezenas vacinas candidatas estão sendo desenvolvidas e algumas, aprovadas, eficientes e seguras, já sendo aplicadas a milhões, no mundo todo. Apesar dos segmentos anticiência e do negacionismo de muitos, a vacinação continua sendo a única forma de evitar que este vírus produza mais perdas irreparáveis.

Os seres pensantes, portanto, têm a responsabilidade de atuar nesta guerra, ou pandemia, com as melhores ferramentas que a ciência, e só a ciência, pode proporcionar, como demonstrado pelo desenvolvimento das vacinas. Mas, se parte da população não aceita evidências científicas e os líderes políticos agem como se 300.000 mortes não fossem uma tragédia gigantesca, teremos que esperar que a natureza, ajudada pelas vacinas, siga o seu curso.

Nesta guerra, os inimigos reais são a descrença na ciência e a falta de uma liderança que, ao mesmo tempo, acredite na ciência e aceite que, apesar de não haver conflito armado, estamos em guerra. Assim, o inimigo que impede a vitória sobre a pandemia causada por um vírus pode estar entre nós.

Hernan Chaimovich é professor emérito do Instituto de Química da USP

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