“Kit Covid” ataca o fígado, mas deixa o vírus em paz

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1 abr 2021
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O Brasil atravessa seu pior momento da pandemia de COVID-19, com números de casos e de óbitos que crescem num ritmo chocante, numa verdadeira tragédia nacional. Considerando que o mundo está lidando com a doença há mais de um ano, com progressos científicos em velocidade nunca antes vista, seria de imaginar que saberíamos lidar melhor com a situação, focando na tríade de medidas que efetivamente salvam vidas: distanciamento físico entre pessoas, uso de máscaras e programas de vacinação. Em vez disso, vemos governantes e até mesmo profissionais de saúde (com apoio de entidades médicas) receitando o mais do que comprovadamente fajuto “kit covid”, contendo medicamentos que, a melhor ciência já demonstrou, não têm nenhum efeito sobre a doença. Haja fígado para aguentar essa incompetência generalizada!

Mas o fígado metafórico dos cientistas não é o único que sofre atentados repetidos no Brasil. O fígado, como órgão físico dos brasileiros, sofre também. No nosso laboratório estudamos como dietas afetam o fígado, e particularmente como dietas ricas em gorduras mudam o metabolismo do fígado. Nós e outros pesquisadores notamos que comida rica em gorduras (como uma boa feijoada ou churrasco, tipicamente brasileiros) leva o fígado a acumular gorduras, o que não é surpreendente. O que é surpreendente é que o fígado fica cheio de gorduras, mas continua funcionando razoavelmente bem do ponto de vista metabólico, nesse tipo de dieta, sem desenvolver perda de função, inflamação ou câncer, que podem acontecer em doenças do fígado por outras causas. O fígado é resiliente a desafios da dieta.

Tentando entender como ocorre a resiliência do fígado, pesquisadores inibiram diferentes processos celulares que poderiam manter o tecido saudável, mesmo sobrecarregado por excesso de gordura. Descobriram que um processo importante para manter o fígado resiliente à dieta gordurosa era a autofagia, uma espécie de mecanismo de “faxina” celular, em que a célula remove componentes que se degradaram e não funcionam. Se uma pessoa comer gordura demais e desligar a “faxina” celular na forma de autofagia, tudo ao mesmo tempo, o fígado deixa de ser resiliente à gordura, e sofre danos maiores.

E é aqui que mora o perigo, porque a ferramenta mais usada pelos cientistas para inibir a autofagia é um medicamento sobre o qual ouvimos falar muito ultimamente: a cloroquina. Componente quase universal do “kit covid”, a cloroquina e seu irmão molecular, a hidroxicloroquina, são potentes inibidores da autofagia, o processo de “faxina celular”. Tomar esses medicamentos, junto a uma dieta rica em gorduras, é um mecanismo eficiente de lesar seu fígado, indicam estudos laboratoriais.

Isoladamente, esses medicamentos não tendem a causar grandes danos ao fígado (têm apenas toxicidade leve, como muitos outros fármacos), mas associados a outra agressão figadal, como a dieta, há uma soma de fatores lesivos, e o órgão deixa de ser resiliente. Imagine isso num país que ama feijoada e churrasco e que, em 2020, produziu 18 vezes mais cloroquina do que em qualquer ano anterior. Acrescente a isso também o fato de que a autofagia é importante para proteger o fígado contra as lesões do álcool presente na cervejinha e caipirinha, com o qual a cloroquina não deve ser associada. Haja fígado!

Mas não é só com churrasco, álcool e cloroquina que o fígado brasileiro está lidando nesses últimos tempos. O “kit covid” (que de útil para COVID-19 não tem absolutamente nada) também contém quase sempre ivermectina, um remédio usado para matar parasitas como piolhos e sarna. Ivermectina não tem efeito nenhum na COVID-19 – até mesmo a empresa que a produz já avisou isso, e ela tem tudo a ganhar vendendo-a. Apesar disso, seu uso no Brasil aumentou sete vezes, mesmo depois de se passar a exigir receita médica para sua compra. Não faltam profissionais de saúde, infelizmente apoiados por uma falta de posicionamento do Conselho Federal de Medicina (CFM), que ignoram a ciência e receitam medicação contra piolho para uma doença viral.

A ivermectina, como quase qualquer outra droga, é metabolizada no fígado (que é o órgão que cuida de quase toda o metabolismo de medicamentos). Normalmente possui baixa toxicidade, mas normalmente é usado uma única vez, e não continuamente e em altas doses como usuários do “kit covid” têm feito no Brasil (usando-a inclusive para prevenir infecção, sem nenhuma evidência que suporte esse efeito). Também não é normalmente associada com cloroquina e nitazoxanida, um vermífugo também presente nos tais kits que não faz nada contra COVID-19, mas que o fígado também metaboliza. Haja fígado!

De fato, têm aparecido relatos de médicos brasileiros sobre destruição de fígado, incluindo a ponto de necessitar de transplante, por causa do “kit covid”. São relatos de casos individuais ainda, e num país gigante, onde não há normatização técnica e científica para tratamento de COVID-19, é difícil estudá-los e entender exatamente como e por que a lesão ocorreu.

Porém, dados nossos conhecimentos sobre metabolismo do fígado e esses medicamentos, é bastante possível que a união dos fármacos esteja sobrepujando a resiliência dos pobres fígados brasileiros. A verdade é que as estamos usando de um modo que nunca foi testado clinicamente, porque não há motivo médico para usar essas medicações juntas, nas doses, e pelo tempo em que estão sendo usadas por brasileiros, falsamente convencidos que se salvarão da COVID-19 com esses comprimidos mágicos.

Haja fígado!

 

Alicia Kowaltowski é professora de Bioquímica do Instituto de Química da Universidade de São Paulo

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