Lógica, falácias, lockdown e "kit covid"

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29 mar 2021
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As cidades de Londres, no Reino Unido, e Araraquara, aqui no estado de São Paulo, conseguiram brecar momentaneamente a escalada de mortes causadas por COVID-19. Ambos os municípios chegaram a zerar o número de novos óbitos provocados pelo coronavírus após decretar lockdowns estritos, e os números recentes vêm sendo citados como sinal de que a estratégia funciona.

Alguns críticos, no entanto, apontam que associar a queda nas mortes às medidas restritivas pode ser apenas mais um caso de falácia post hoc: achar que, se alguma coisa acontece depois de outra, então aconteceu por causa da outra. Em ambientes mais polarizados politicamente, começam a surgir ironias acusando quem denunciava o papel da falácia na construção da ideia de que os “tratamentos precoces” seriam eficazes contra COVID-19 de, de repente, “esquecer-se” do princípio na hora de avaliar os lockdowns.

Numa abordagem superficial, a crítica faz sentido: sem enriquecer o cenário com conhecimentos de fundo e elementos de contexto, dizer “mortes zeradas após lockdown mostra que lockdown funciona” soa tão falacioso quanto “meu tio se recuperou depois de tomar cloroquina, logo cloroquina funciona”. Indo um pouco além do que cabe num tuíte, no entanto, a aparente simetria se desfaz.

O raciocínio post hoc (ou, para dar seu nome completo, post hoc ergo propter hoc, “depois disso, logo por causa disso”) tende a gerar conclusões falsas quando três complicadores deixam de ser levados em consideração – de fato, torna-se uma falácia exatamente quando tais complicadores são ignorados. E quais são eles? Obrigado por perguntar:

 

Fatores de confusão: dizer que A, por ter acontecido antes de B, causou B ignora todas as outras coisas que também aconteceram antes de B e que podem ter contribuído para sua ocorrência. Grupos de controle são uma das ferramentas usadas, em pesquisas científicas, para isolar esses fatores.

Mecanismo de ação: qual a lógica que liga o efeito detectado à suposta causa? Se eu disser que sarei de um câncer porque dei três pulinhos e estourei um balão vermelho, você tem toda a razão do mundo para se manter cético. A existência potencial de um mecanismo de ação define a plausibilidade prévia de qualquer relação hipotética entre causa e efeito.

Natureza do efeito: é preciso determinar se o efeito em questão, principalmente quando se trata de um efeito negativo (algo que desaparece ou deixa de existir, como os sintomas de uma doença), já não carrega a própria causa em si. A causa do fim de uma doença autolimitante – que some sozinha ao completar seu curso – é a própria doença, não a canja de galinha, ou a ivermectina.

 

No caso dos “tratamentos precoces” para COVID-19, já está bem estabelecido que a plausibilidade prévia é baixíssima, porque os mecanismos de ação propostos são extremamente inverossímeis; que toda vez que se controlam adequadamente os fatores de confusão, o suposto efeito desaparece; e que a doença, por sua própria natureza, tende a sumir por conta própria em mais de 90% dos casos, o que gera um efeito ilusório de eficácia. Ou seja, quando os complicadores são considerados, só o que resta mesmo é a falácia post hoc.

E quanto aos lockdowns? É racional associar a queda nas mortes às medidas restritivas em cidades onde essas medidas foram adotadas não só da boca para fora, mas também severamente cumpridas?

 

Paraquedismo filosófico

O fator crucial aqui é a plausibilidade prévia:  não só tudo que se descobriu sobre o vírus, até agora, mostra que manter pessoas afastadas umas das outras impede que o microrganismo se dissemine, como a experiência histórica com epidemias de vírus respiratórios, como a Gripe Espanhola de 1918, aponta na mesma direção. Temos, enfim, um mecanismo de ação conhecido, lógico, claro e testado tanto pela experiência quanto pela ciência (alguns exemplos aqui e aqui).

A plausibilidade é tão grande, na verdade, que o lockdown pode ser incluído no que às vezes é chamado de “paradigma do paraquedas”: intervenções cujo benefício é de tal forma indicado pela compreensão de leis fundamentais da natureza (como usar paraquedas para saltar de grandes altitudes – eficácia fortemente sugerida pelas leis da gravidade e da aerodinâmica), que merecem todo o benefício da dúvida, mesmo numa eventual ausência de resultados positivos contundentes, em testes bem controlados.

Afinal, sabendo como um paraquedas funciona, a aceleração da gravidade terrestre e alguns fatos sobre fisiologia humana, posso especular, com boa chance de estar certo, que foi o paraquedas que salvou a vida do piloto do avião abatido a 800 metros de altitude, ainda que não tenhamos feito o experimento de jogar outro piloto do mesmo tamanho, peso, sexo e idade, mas sem paraquedas, de altitude semelhante.

E quanto aos fatores de confusão? Ao pé da letra, para controlá-los todos precisaríamos encontrar um grupo grande de cidades com características as mais próximas possíveis – população total, densidade demográfica, população urbana, robustez do sistema de saúde, PIB, IDH, etc. – e sortear algumas para fazer lockdown, outras não, e ver o que acontece.

Como isso é impraticável, há que se apelar para comparações mais grosseiras e, em si, menos conclusivas, ao menos quando analisadas em separado das considerações de plausibilidade prévia (lembre-se do “experimento” do paraquedas).

Ficando no exemplo de Araraquara, a cidade, com lockdown, chegou a zerar o número de novos óbitos no mesmo período de 24 horas em que o restante do estado de São Paulo, sem lockdown, batia recorde de novas mortes.

O terceiro fator que precisa ser ignorado para configurar uma falácia post hoc é a natureza do efeito: ele poderia ter acontecido por conta própria, sem requerer causas externas?

De novo, a comparação é grosseira e os controles, oportunísticos, mas ninguém ainda viu o número de internações e mortes causado pelo coronavírus despencar de forma espontânea. Países que conseguiram esmagar a curva da doença fizeram-no usando restrições à movimentação – ou, mais recentemente, uma combinação entre restrições e vacinas.

De forma bem resumida: mais de 90% das pessoas que apresentam sintomas iniciais de COVID-19 recuperam-se sem necessidade de nenhum tipo de tratamento. Isso, associado à baixíssima probabilidade prévia de que os produtos do “kit covid” sirvam para alguma coisa, e aos estudos científicos de boa qualidade que mostram que eles não servem mesmo (aqui e aqui), faz com que qualquer atribuição de “cura” aos tais kits seja um erro do tipo post hoc ergo propter hoc.

Já no caso da associação entre lockdown, redução do número de mortes e desafogo dos sistemas de saúde, a alta plausibilidade prévia, o mecanismo de ação claro e baseado na biologia fundamental do vírus, além da ausência de sinais de arrefecimento espontâneo da pandemia e os fatos empíricos disponíveis apontam, tudo isso junto, no sentido de uma relação causal robusta. Em termos lógico-abstratos, não estamos livres da falácia; nossos controles, afinal, são imperfeitos. Mas, empiricamente, estamos o mais longe dela que se pode chegar.

Na Inglaterra como um todo, com a decretação do lockdown mais recente, em 4 de janeiro, a média móvel de novas mortes caiu de 619, no início da restrição, para 65, em 28 de março. O que temos, para deixar este ponto o mais explícito possível, é uma queda radical na curva de mortes – quase 90% – num mesmo lugar, em dois momentos, num cenário onde a única diferença significativa perceptível entre cada momento é o lockdown.

Talvez o decreto de medidas restritivas tenha apenas coincidido com alguma outra coisa, desconhecida, que é a verdadeira causa da queda abrupta? Está no reino das possibilidades, claro. Mas dada a plausibilidade extrema de o efeito estar ligado ao lockdown (como a sobrevivência do piloto, ao paraquedas), é uma possibilidade microscópica e bem difícil de levar a sério, exceto como profunda abstração, com alguma honestidade.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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