Não bastasse a recente onda de negacionismo e politização, a ciência se vê agora ameaçada pela judicialização. Não que a ciência deva atuar sem limites legais e éticos, mas a ingerência direta de tribunais e a interferência de outros atores do sistema jurídico - sem conhecimento adequado dos tempos e processos da ciência - na prática científica arriscam tolher a liberdade de pesquisadores e a consequente produção de conhecimento, fundamentais para o desenvolvimento e proteção da sociedade.
Só nos últimos meses, vimos vir a público alguns exemplos deste movimento. Para além de folclóricos casos como o do eletrotécnico Josênio dos Anjos, de 48 anos, que ganhou as redes no mês passado por ter registrado um boletim de ocorrência (BO) contra o há muito falecido físico alemão Albert Einstein na delegacia da cidade de Guaraí, interior do Tocantins, acusando-o de ter cometido “erros incontáveis” em sua consagrada Teoria da Relatividade – que não corre nenhum risco em função desta ação -, outros episódios têm repercussões mais concretas.
Ainda no início do mês passado, o procurador da República Ailton Benedito, do Ministério Público Federal (MPF) em Goiás, encaminhou ofício à Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) questionando recomendações então recém-publicadas pela instituição sobre a COVID-19. O alvo principal de Benedito era a reafirmação pela SBI de que não existe tratamento preventivo ou precoce cientificamente comprovado para a doença, incluindo cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina ou nitazoxanida, todos medicamentos apontados, em algum momento, como eficazes pelo presidente Jair Bolsonaro ou outros integrantes de seu governo.
O procurador pedia que a SBI não só apresentasse as bases para a rejeição a estes remédios como terapia precoce da COVID-19, como justificasse porque desconsiderava os supostos “estudos científicos” que apoiam orientações editadas pelo Ministério da Saúde em junho passado. Mal sabia Benedito que a extensa resposta da SBI seria uma aula de como se obtêm evidências científicas da eficácia ou não de um tratamento medicamentoso, bem como os diferentes níveis de qualidade e assertividade destas evidências de acordo com a formatação e métodos dos estudos.
Desta forma, o documento da SBI acaba por demonstrar enfaticamente como o Ministério da Saúde jogou a ciência pela janela ao não incluir nem sequer um dos muitos estudos randomizados com grupo controle (RCTs, na sigla em inglês), padrão ouro para este tipo de investigação, até então realizados sobre tratamentos precoces da COVID-19, envolvendo estes medicamentos, ao editar suas orientações. “Pelo contrário, seus resultados foram desconsiderados para a formulação de uma proposta terapêutica”, destaca o texto da sociedade médica, que fez sair pela culatra a tentativa do procurador de judicializar uma questão técnico-científica, por aparente motivação política.
Mas as tentativas de judicialização da ciência não acontecem só por questões ideológicas, como no caso do procurador federal lotado em Goiás. Interesses econômicos são outra importante força motriz por trás destas ações, como mostra a recente de remoção de um artigo numa revista médica por uma das maiores editoras de periódicos científicos do mundo, devido ao que seu principal autor relata como pressão e ameaças processos de uma conhecida fabricante e distribuidora global de suplementos dietéticos.
Publicado em agosto de 2018 no Journal of Clinical and Experimental Hepatology com o título “Slimming to the death: Herbalife®-associated fatal acute liver failure - heavy metals, toxic compounds, bacterial contaminants and psychotropic agents in products sold in India” (“Emagrecendo para a morte: falência aguda do fígado associada ao Herbalife® - metais pesados, compostos tóxicos, contaminantes bacterianos e agentes psicotrópicos nos produtos vendidos na Índia”, em tradução livre), o artigo traz o relato de caso de uma jovem indiana de 24 anos, morta após iniciar um programa dietético usando produtos da empresa vendidos no país, e a subsequente investigação de sua composição, por pesquisadores liderados por Cyriac Abby Philips, hepatologista do Grupo Cochin de Gastroenterologia do Centro Médico Ernakulam, na cidade de Kochi, no estado de Kerala, no Sudoeste da Índia, que a atendeu.
No artigo, Philips e colegas apresentam análises químicas e toxicológicas de produtos dietéticos da marca, similares aos usados pela jovem morta, comprados no país, inclusive um do mesmo distribuidor do qual ela adquiriu os que consumiu, nos quais teriam encontrados diversos contaminantes que poderiam ajudar a explicar os danos observados em seu fígado, além de levantamento de relatos parecidos de hepatotoxicidade associados a estes produtos. Segundo os pesquisadores, embora não tenham tido acesso direto aos produtos usados pela jovem, sua investigação sustenta a hipótese de que sua falência de fígado está ligada ao consumo dos suplementos, no que acreditam ser o primeiro relato do tipo na região da Ásia-Pacífico. Diante disso, eles pedem uma regulação e fiscalização mais rigorosa destes produtos, bem como a realização de mais estudos para avaliar sua segurança e eficácia.
“Suplementos nutricionais herbários têm componentes não caracterizados, não rotulados, inconsistentes e muitas vezes não revelados sem claros benefícios (e provavelmente muitas vezes prejudiciais) à saúde… Assim como com qualquer droga, é importante que os suplementos dietéticos herbários passem por estudos científicos pré-clínicos e clínicos e uma vigilância pós-venda, de forma que causas desconhecidas e potencialmente danosas de efeitos adversos severos, como a falência do fígado devido ao uso de tais produtos, sejam melhor identificáveis e controladas. Com o crescimento do uso de suplementos nutricionais dietéticos e herbários e a expansão dos clubes de nutrição a eles associados na Índia, e com adequada evidência de toxicidade hepática e presença de substâncias prejudiciais nestes produtos, sem dúvida temos nas mãos um crescente problema de saúde pública”, concluem os autores.
Tal demanda, no entanto, não soou bem aos ouvidos da empresa mencionada no título do artigo. Em uma série de publicações no seu perfil na rede social Twitter em 20 de dezembro último – primeiro reportada pela especialista em microbioma Elisabeth Bik em seu blog Science Integrity Digest, e logo depois pelo portal Retraction Watch, dedicado ao monitoramento de estudos retratados ou suspeitos na literatura científica -, Philips relata como o estudo passou a ser alvo de perseguição da parte da empresa e seus representantes, principalmente a partir de abril de 2019, quando o artigo foi divulgado, também no Twitter, no perfil do serviço independente de avaliação de informações sobre nutrição e suplementos alimentares Examine.com.
Segundo Philips, primeiro ele foi contatado pela empresa pedindo que fornecesse “provas” de suas alegações, ao que respondeu que todos os dados estavam no artigo. Então a companhia foi atrás da editora do periódico, Elsevier, que encaminhou a ele correspondência que havia recebido de Steven Newmaster, professor de Departamento de Biologia Integrativa da Universidade de Guelph, Canadá, em nome da NHP Research Alliance (que tem entre seus financiadores a própria Herbalife), apontando diversos “problemas” com seu estudo e solicitando sua retratação. A Elsevier pediu a ele que providenciasse uma resposta ponto a ponto dos questionamentos levantados, ao que atendeu.
“A refutação foi forte em evidências científicas para apoiar nossos achados e rebater suas por vezes ‘muito estúpidas’ preocupações”, escreveu o médico indiano. “Fiquei abismado de ver que vieram de um ‘professor’ e sua equipe. Apesar disso, não ouvi mais falar do professor ou da universidade de novo. As coisas se acalmaram. Por um tempo”.
A seguir, Philips recebeu outra comunicação da editora de mais uma contestação de seu artigo, desta vez em nome de três pesquisadores brasileiros da Planitox, empresa de “consultoria em toxicologia” sediada em Campinas, São Paulo, que tem entre seus financiadores e clientes justamente a Herbalife. Primeiro, o trio critica o que classificou como “sensacionalismo” do título ao incluir o nome da empresa, para depois atacar o estudo, considerado por eles “raso e sem o mínimo critério de qualidade científica”, e reclamar da citação de revisão que fizeram de outros relatos de caso de hepatotoxicidade relacionados aos seus produtos. O médico indiano mais uma vez respondeu aos questionamentos e ambas carta e resposta chegaram a ser publicadas no próprio no Journal of Clinical and Experimental Hepatology no fim de julho de 2019.
Então, se não foi possível “derrubar” o estudo pela via científica, era hora de tentar pela legal. Assim, Philips conta que em outubro de 2019, recebeu notificação de um escritório de advocacia de sua cidade novamente demandando, em nome da Herbalife, que fornecesse mais informações sobre a paciente e os produtos que analisou, sob ameaça de processo por difamação. Com isso, desta vez ele respondeu por meio de outro escritório de advocacia, que contratou.
“Eles não responderam, mas fizeram algo terrível. Eles começaram a assediar o periódico, seu comitê editorial, enviando múltiplas notificações legais para eles nas nossas costas”, relata. “Foi a gota d’água. O editor-chefe do jornal foi ameaçado e a editora entrou em pânico”.
De acordo com Philips, a Elsevier determinou uma nova revisão de seu artigo segundo as diretrizes do Comitê de Ética em Publicação (COPE, na sigla em inglês), para a qual forneceu mais informações, incluindo o relatório da biópsia do fígado da paciente com sua identificação. Ainda segundo ele, a “re-revisão” não encontrou erros ou problemas em seu artigo, recomendando a manutenção de sua publicação. “Não fui notificado de nenhuma questão de integridade, dados fraudulentos, plágio, nada. Era um artigo limpo. Se não fosse, eu teria sido notificado”, contou ao Retraction Watch.
No lugar disso, Philips diz que recebeu e-mail de Sameer Gupta, funcionário da Elsevier encarregado da região, informando que mesmo assim o periódico ia remover seu artigo por “razões legais”. Na sequência, conta o indiano, também foram removidos a contestação feita pelos pesquisadores brasileiros da Planitox e sua resposta. No aviso atualmente no site do Journal of Clinical and Experimental Hepatology, no entanto, consta que a retratação do artigo de Philips se deu a pedido do editor-chefe da publicação, bem como da Associação Nacional para Estudo do Fígado da Índia. No repositório e base de dados de artigos científicos PubMed, porém, a remoção é creditada a “motivos legais”.
“O dinheiro ganhou e a ciência fracassou. Fiquei arrasado”, lamentou o médico indiano, que declarou ao Retraction Watch agora avaliar abrir processo contra a Elsevier e outros envolvidos pelo “sumiço” de seu artigo, já que, como lembrou Elisabeth Bik no seu primeiro relato do caso, as diretrizes do COPE preveem que artigos retratados devem permanecer disponíveis online, desde que claramente indicados como objeto de retratação.
Procurada, a Herbalife no Brasil não respondeu a pedido de comentário sobre o caso, nem questionamento sobre o controle de qualidade dos produtos da marca vendidos no país.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência