Em abril, recebi um e-mail estranho de um par de revistas acadêmicas, convidando-me para submeter minha pesquisa para publicação. O e-mail era escrito numa mistura discordante de fontes, vinha cheio de erros de formatação e usava vários idiomas. Inexplicavelmente, o editor que me enviou o e-mail anexou um manual com protocolos hospitalares para a COVID-19, um documento tão longo e detalhado que incluía até mesmo a maneira correta de lacrar o cadáver “em plástico adequado à prova de vazamentos”.
É o tipo de e-mail que você espera receber daquele tio que você não vê há tempos, dizendo que vai mandar uma montanha de barras de ouro, desde que você, é claro, envie a ele o valor do frete. Exceto pelo fato de que eles não queriam meu dinheiro – pelo menos, não assim de cara. Queriam uma pesquisa original.
Suspeitei que o e-mail vinha de um site golpista disfarçado de publicação acadêmica, parte de uma ameaça crescente chamada de “publicações predatórias”. No mundo dos nichos de fraude das publicações científicas, esses grupos ganham dinheiro passando por periódicos acadêmicos legítimos, publicando qualquer coisa e, então, cobrando dos autores centenas e até milhares de dólares em custos e produção.
Embora pesquisadores certinhos e sérios sejam enganados e acabem submetendo seus estudos a essas publicações, outros escrevem artigos falsos por motivos bem mais nefastos – por exemplo, rechear o currículo ou dar um ar de credibilidade para ideias pseudocientíficas que jamais passariam pelo crivo de outros cientistas. E embora nunca haja uma época adequada para publicar falsa ciência, essa prática torna-se um problema realmente grave quando há uma pandemia e a ciência verdadeira é vital para a saúde pública.
O que torna essa prática tão desonesta é a extraordinária dificuldade de separar o joio do trigo, ou seja, dizer se uma dessas publicações é verdadeira, só dando uma olhada online. Muitas delas têm muitas características de publicações acadêmicas legítimas: websites que parecem profissionais, referências nos papers a outras edições da revista, ícones de open-access e, até mesmo, identificações digitais que são a marca registrada de estudos científicos. Talvez o único meio de identificar um periódico predatório seja demonstrar que ele publica lixo científico. E foi isso que resolvi fazer.
A U.S.-China Education Review A & B, ostensivamente um par de revistas mensais sobre educação, desencavou uma conferência minha sobre aprendizado extracurricular de ciência. Queriam que eu enviasse um manuscrito sobre esse estudo, que publicariam em algumas semanas se estivesse adequado a seus padrões, e caso passasse pelo rigoroso peer review de pelo menos dois revisores independentes. Em vez disso, perpetrei sete páginas de bobagens, incluindo referências – no melhor estilo da série Breaking Bad – sobre o valor educacional de enviar estudantes o ensino médio a dirigir pelo deserto para fazer drogas.
O paper era absolutamente ridículo. Eu afirmei que o estado americano do Novo México fica nas Ilhas Galápagos, que a craniotomia é um método legítimo de avaliar o aprendizado dos alunos e que todos os números tinham sido feitos no Paint da Microsoft. Lá pelas tantas, lamentei não ter sido possível que nossa equipe coletasse a “temperatura cloacal” dos participantes. Qualquer acadêmico que se desse o trabalho de ler o abstract teria jogado o estudo na lata de lixo mais próxima (ou talvez chamado a polícia). Isso, claro, se tivessem passado da página do título, onde registrei como coautores Walter White e Jesse Pinkman, personagens principais de Breaking Bad.
Como prometido, algumas semanas após a submissão do estudo, um editor me informou que o artigo tinha sido aprovado pelo peer review e publicado. (Ele ainda está online, embora eu não tenha pago a taxa de US$ 520 [cerca de R$ 2.700] pela publicação) Eu fiquei perplexo.
A U.S.-China Education Review A & B tem todas as marcas registradas das revistas predatórias. A editora dos periódicos, a David Publishing Company, é ridicularizada como “distribuidora de spams”, cuja sede oficial muda constantemente de um endereço suspeito para outro. As duas publicações foram incluídas numa lista de possíveis revistas predatórias conhecida como “Beall’s List”, que era mantida pelo bibliotecário aposentado da Universidade do Colorado Jeffrey Beall, até ser derrubada por causa de uma ameaça de processo legal. (Uma versão arquivada da lista continua acessível aqui: https://beallslist.net/)
De início, era até divertido ver o grau dos absurdos que essa organização se dispunha a apresentar em seu site, mas meus sentimentos azedaram depressa. Embora meu artigo fosse uma bobagem completa, a verdade é que eu poderia ter escrito qualquer coisa que quisesse e apresentar ao mundo como ciência legítima, usando o leve verniz desse periódico para disseminar desinformação. Imagine se eu tivesse inventado um artigo contestando os benefícios da vacinação?
Esse derrame de desinformação não é hipotético, ele está acontecendo aqui e agora. Em meados do ano, um paper afirmando que os sinais do 5G causavam a COVID-19 foi publicado em The Journal of Biological Regulators and Homeostatic Agents, que é suspeito de ser um periódico predatório, em parte porque vários membros de sua diretoria aparentemente estão mortos.
O espantoso artigo, que tem como coautor um cientista iraniano cujas pesquisas envolvem a decapitação de codornas, não fazia o menor sentido, a despeito de apresentar uma barafunda de equações impressionantes. Isso não impediu que o “estudo” fosse amplamente divulgado pelas redes sociais e por sites da extrema-direita, como o InfoWars, alimentando diferentes teorias conspiratórias sobre o 5G que levaram pessoas a tentar queimar torres de telefonia. O fato de a publicação ser indexada no PubMed serviu como um selo de qualidade da maior base de dados biomédicos do mundo.
Nos últimos meses, outros artigos publicados por periódicos igualmente suspeitos sugeriram que azeite de oliva e “ervas provincianas” (sic) ou amuletos de jade podem evitar a COVID-19. Uma revisão recente realizada durante a pandemia encontrou mais de 360 artigos sobre a COVID-19 publicados em prováveis revistas predatórias. E embora muitos dos mais grotescos desses papers pareçam ter sido escritos seriamente – por pesquisadores em delírio –, outros parecem ter objetivos mais nefastos.
O acesso a fontes legítimas de informação científica é essencial para o discurso público, e particularmente crítico em tempos de emergência global de saúde. Pandemia global. Mesmo com as revistas acadêmicas tirando cada vez mais a ciência de sua torre de marfim, com as publicações online com acesso aberto, os propagadores de desinformação semeiam confusão.
Todo acesso aberto do mundo não significa nada se você não souber se o que está lendo é verdade ou não. Esse dilema ilustra o paradoxo maior desta era da informação. A enxurrada de informação facilmente acessível, vinda direto dos produtores de conhecimento, pode ser tanto uma democratização de saberes como uma maior elitização, caso a informação seja marginal e grotesca.
Há tentativas ocasionais para conter a expansão dessas publicações predatórias. Em 2017, pesquisadores publicaram um experimento na Nature mostrando como tinham enviado centenas de candidaturas falsas de um cientista inventado ao cargo de editor de várias revistas predatórias. Dezenas dessas publicações se mostraram interessadas em contratar alguém sem a menor qualificação para revisar artigos científicos.
E tem as pessoas que fazem o que eu fiz: publicam absurdos e depois noticiam o ocorrido, para mostrar que aquele é um periódico predatório. Embora haja uma certa satisfação em ver um jornal desses ridicularizado por ter publicado um artigo que simplesmente repete as palavras “Me tire do seu maldito mailing!” centenas de vezes, isso não impede a proliferação dos periódicos predatórios.
Então, o que pode ser feito para conter as publicações predatórias e dar ao público mais acesso informado à ciência legítima? As mídias sociais provavelmente poderiam ajudar, denunciando esses artigos falsos como desinformação, já que é nessas mídias que a maioria deles transita em compartilhamentos. Infelizmente, esse nível de moderação exige a capacidade de discernir se a informação é legítima ou não, o que já é difícil de fazer com um tweet, imagine com um texto de 10 páginas repleto de jargões científicos.
Até que tenhamos um sistema eficiente para eliminar a desinformação online, lidar com os periódicos predatórios na era da COVID-19 vai exigir discernimento e senso comum da parte dos leitores individuais e uma compreensão clara de que a fraude está viva e passa bem em cada canto da internet – mesmo nos volumes banais da literatura científica.
Nesse meio tempo, se você encontrar um artigo falando dos benefícios educacionais de mandar alunos do ensino médio para o deserto fazer drogas, por favor, não perca tempo lendo.
Bradley Allf (@bradleyallf) é escritor de ciência freelance e doutorando da Universidade Estadual da Carolina do Norte, onde estuda biologia da conservação. Seu trabalho vem sendo publicado na Scientific American, Discover, Atlas Obscura, entre outras. Artigo publicado originalmente em Undark