Muitas pessoas se perguntam por que, mesmo com tantos governos municipais e estaduais no Brasil, as indecisões, omissões e confusões do presidente Jair Bolsonaro fazem tanta diferença no enfrentamento da COVID-19. Não poderiam os prefeitos e governadores resolverem as coisas sozinhos? Não no Brasil. E dois fatores explicam isso: nosso modelo federativo e as desigualdades do país.
O Brasil é um país federativo com 5.570 municípios, 26 estados e governo federal. Em nossa Federação, municípios e estados têm autonomia política, financeira e administrativa. Isso significa que o presidente não pode mandar nos prefeitos, nem nos governadores. Eles têm autonomia decisória dentro do que é de sua competência. O presidente também não pode escolher quem serão os prefeitos e governadores. Para isso, temos eleições independentes entre cada uma das esferas e Poderes. No entanto, mesmo com autonomia garantida pela Constituição, nosso modelo federativo é baseado em pressupostos de interdependência entre os entes federativos.
Isso acontece porque, em primeiro lugar, a Constituição propõe várias responsabilidades comuns e compartilhadas entre os entes, o que gera necessidade de ação conjunta entre eles, e uma interdependência para a realização das políticas públicas. Por exemplo: de quem é o mosquito da dengue? Do prefeito, do governador ou do presidente? E quando decide cruzar fronteiras, ele muda de “dono”? Isso mostra a complexidade da nossa repartição de responsabilidades.
Em segundo lugar, o sistema federativo exige interdependência por causa do sistema tributário, que é altamente concentrado na União. A União concentra arrecadação e deve repassar recursos para municípios e estados (e estes também repassam recursos para municípios). A maioria dos municípios tem baixa capacidade arrecadatória e depende destas transferências.
Um terceiro motivo para a necessidade de interdependência vem das regulamentações sobre políticas públicas. Boa parte delas depende do governo federal, e há vários temas sobre os quais o município não pode legislar sozinho.
Esses diversos fatores geram, na prática, um federalismo coordenado (e muito centralizado) pela União. Neste federalismo coordenado, o governo federal induz políticas via incentivos financeiros: municípios são convidados a aderir a políticas regulamentadas pelo governo federal e recebem recursos para implementá-las, desde que cumpram as regras e as metas das políticas.
As pesquisas brasileiras sobre federalismo têm mostrado que, nos últimos anos, o governo federal tem centralizado cada vez mais as decisões sobre políticas. Em um cenário de escassez de recursos e conhecimento técnico, municípios não têm outra saída a não ser aderir às políticas federais.
A consequência é que, em vez de termos políticas construídas localmente, implementamos políticas padronizadas no país todo. Exemplos? É só ver fotos dos programas de construção de creches padronizadas no país; ou de unidades básicas de saúde; quadras e bibliotecas. Não é coincidência que todos os equipamentos públicos tenham a mesma cara, tamanho e cor país afora. E são apenas alguns dos programas incentivados pelo governo federal nos últimos anos.
O que se percebe, portanto, é que, ao contrário do que prega o presidente Bolsonaro, na prática temos cada vez mais Brasília, e menos Brasil.
Mas, além das explicações baseadas no modelo federativo, há outro fator central para entender por que os municípios e estados não conseguem resolver seus problemas sozinhos e dependem do presidente: as desigualdades entre os entes federativos.
Mais de 85% dos municípios brasileiros têm menos de 50 mil habitantes. E quase 70% têm menos de 20 mil habitantes. A grande maioria do país não é formada por São Paulo e Rio de Janeiro (só 49 cidades têm mais de 500 mil habitantes). A maioria do Brasil é formada por lugares como Taiobeiras (MG, 34 mil hab.); Palotina (PR, 32 mil hab.); Nobres (MT, 15 mil hab.) e Arraial (PI, 4,7 mil hab.). Essa grande heterogeneidade de tamanho e grau de desenvolvimento entre os municípios gera uma gigantesca desigualdade financeira e de capacidades.
Pela baixa capacidade arrecadatória, boa parte destes municípios depende de transferência de recursos da União. Faltam nos municípios pequenos administradores públicos, engenheiros, médicos e outros profissionais de nível superior em número suficiente para ocupar os cargos e cuidar da burocracia destes municípios. Para exemplificar, em quase 46% dos municípios o prefeito não tem curso superior (IBGE, 2017). E quanto menor o município, maior o porcentual de servidores comissionados (cargos preenchidos por indicação política). Isso significa não apenas uma politização da administração municipal, mas também um risco sempre presente de descontinuidade e de baixa qualificação.
Com capacidade técnica limitada na maior parte dos municípios brasileiros, a capacidade de fazer boas políticas públicas também fica comprometida. Este cenário acaba reforçando a dependência dos municípios em relação aos estados e, principalmente, ao governo federal.
A pandemia tem exacerbado este cenário. A maioria dos municípios não conseguiu reorganizar sozinha a atenção primária à saúde, que depende de regulamentação e financiamento federal. Nem implementar um sistema de educação à distância, que depende de financiamento e capacidade técnica. É por isso que as inações e omissões do presidente e do governo federal são tão problemáticas: elas não afetam só a União, elas têm consequências diretas nos municípios e estados.
Podemos questionar: este cenário de inação do governo federal não pode estimular inovação municipal? Parcialmente, apenas. Isso porque, sem capacidade técnica ou financeira, é muito difícil o município inovar sozinho. Embora tenhamos inovações municipais acontecendo, são muito limitadas ao universo do país. Neste sentido, as pesquisas da Marta Arretche mostram que, em políticas com baixa coordenação da parte do governo federal, houve aumento de desigualdades entre municípios, e não inovação. E o contrário é verdadeiro: onde houve coordenação nacional, como no caso do SUS, houve redução de desigualdades municipais.
O Sistema Único de Saúde, o SUS, é nosso melhor exemplo de coordenação federativa. É um desenho muito robusto de repartição coordenada de responsabilidades e financiamento, com alta integração entre os entes federativos. O SUS foi capaz de construir capacidades municipais na área de saúde e de reduzir desigualdades (Arretche, 2012).
Mas o que o governo Bolsonaro tem provado é que, por melhor e mais robusto que o SUS seja, sem o papel ativo de coordenação do governo federal, o sistema fica comprometido, devido às desigualdades municipais e ao modelo federativo que depende de interdependência e coordenação. Claro que devemos reconhecer que, se o SUS não fosse o que é, nossa situação estaria muito pior durante a pandemia. Mas, se o governo federal não tivesse se omitido em seu papel de coordenador do sistema, nossa situação poderia estar muito melhor.
O que esta breve reflexão sobre as dinâmicas do federalismo brasileiro e atuação do presidente Bolsonaro nos ensina é que temos Brasília demais, e Brasil de menos. Mas que, ao contrário do que pregou o presidente, isso não se resolve com omissão do governo federal. Quando o presidente lava as mãos, temos piora na qualidade de vida e aumento de desigualdades.
Mas isso também não se resolve com excesso de centralização, e com o governo federal substituindo a ação dos municípios. Neste caso, a consequência será uma diminuição ainda maior do papel e poder dos municípios na federação.
A solução para o nosso federalismo passa por uma ação coordenada do governo federal para construção de capacidades municipais. Passa por governo federal, estados e municípios assumindo, conjuntamente, suas responsabilidades. E, acima de tudo, dialogando em prol do futuro do país e do bem-estar da população.
Gabriela Lotta é professora de Administração Pública da Fundação Getulio Vargas, coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB-FGV) e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM)
PARA SABER MAIS
ABRUCIO, Fernando Luiz; FRANZESE, Cibele; SANO, Hironobu. Trajetória recente da cooperação e coordenação no federalismo brasileiro: avanços e desafios. República, democracia e desenvolvimento: contribuições ao Estado brasileiro contemporâneo. Brasília, DF: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, v. 10, p. 129-164, 2013
ARRETCHE, Marta. Democracia, federalismo e centralização no Brasil. SciELO-Editora FIOCRUZ, 2012.
ARRETCHE, Marta. Dossiê Federalismo. Revista de Sociologia e Política, n. 24, 2005.
BATISTA, M. (2015). Burocracia local e qualidade da implementação de políticas descentralizadas: uma análise da gestão de recursos federais pelos municípios brasileiros. Revista Do Serviço Público, 66(3), 345 - 370.
CARDOSO, André Luis Rabelo; MARENCO, André. Nomeações políticas nos governos municipais e performance burocrática: avaliando o desempenho. Revista de Administração Pública, 2020. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/index
GRIN, Eduardo José; ABRUCIO, Fernando Luiz. Quando nem todas as rotas de cooperação intergovernamental levam ao mesmo caminho: arranjos federativos no Brasil para promover capacidades estatais municipais. Revista do Serviço Público, v. 69, p. 85-122, 2018. https://revista.enap.gov.br/index.php/RSP/article/view/3584
MARENCO, André. Burocracias Profissionais Ampliam Capacidade Estatal para Implementar Políticas? Governos, Burocratas e Legislação em Municípios Brasileiros. Dados [online]. 2017, vol.60, n.4, pp.1025-1058. ISSN 1678-4588.
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