Vivemos em circunstâncias nas quais praticamente todos os aspectos da vida cotidiana mantêm uma relação direta ou indireta com a rede mundial de computadores. No entanto, passamos a viver em tais condições sem muita análise, mudando nossos hábitos e atividades muitas vezes de forma automática e pouco refletida. Dessa forma, temos o desafio de compreender as novas dinâmicas de vida nesse contexto e desenvolvermos uma compreensão mais ampla de nossas circunstâncias.
A aceleração do desenvolvimento tecnológico que levou a tal estado de coisas estimula uma série de questionamentos acerca de suas possíveis consequências em diversos aspectos, desde temas sociais até questões ligadas ao funcionamento do cérebro e da cognição nas sociedades humanas. Quais são as consequências de interação digital tão intensa? Temos tempo disponível para analisar profundamente seus efeitos? As redes de interação social podem alterar nossos comportamentos?
Contágio moral-emocional
Alguns estudos sobre o tema apontaram para a existência de efeitos emocionais estimulados pelas mídias sociais, principalmente quando o conteúdo envolve emoções morais. No primeiro deles, intitulado “Evidência experimental de contágio emocional em grande escala através de redes sociais”, publicado em 2014, os pesquisadores tiveram acesso à 689.000 perfis de usuários do Facebook para analisar suas reações e comportamento de acordo com as postagens às quais estiveram expostos.
No caso, o algoritmo da rede social foi manipulado para que um grupo recebesse apenas postagens de notícias positivas e outro grupo acompanhasse somente notícias negativas. O estudo apontou que as reações e os comentários às postagens seguiam a característica, negativa ou positiva, do que os usuários acompanhavam nas redes. As reações seguiram alinhadas à emoção “sugerida” pelo algoritmo, confirmando assim o contágio emocional através das interações digitais. O estudo foi duramente criticado, pois os pesquisadores ligados ao Facebook fizeram os experimentos sem o consentimento dos usuários que tiveram seus perfis utilizados na pesquisa.
Um segundo estudo ligado ao tema, intitulado “As emoções moldam a difusão de conteúdo moralizado nas redes sociais”, foi publicado em 2017 por pesquisadores da Universidade de Nova York. Nele, buscou-se mostrar quanto o uso de termos morais afetava a difusão de conteúdo nas redes sociais.
Nesse caso, a rede social usada foi o Twitter. A conclusão dos pesquisadores aponta que a utilização de palavras de cunho moral-emocional pode elevar significativamente a redistribuição e replicação da mensagem pelos usuários, aumentando a sua difusão nas redes sociais. De acordo com a análise da pesquisa, as emoções morais possuem um papel central na difusão de conteúdo que envolve elementos como “raiva”, “medo”, “ódio”, “perdão”, “amor”, “bem” e outros. Os pesquisadores identificaram o fenômeno como “contágio moral”, em referência a outras formas de contágio emocional e social já analisadas em outras pesquisas.
Segundo um dos líderes do grupo, “parece provável que políticos, líderes comunitários e organizadores de movimentos sociais expressam emoções morais – de valência positiva ou negativa – num esforço de elevar a exposição da mensagem e influenciar como as normas são percebidas nas redes sociais. E nosso trabalho sugere que tais esforços podem compensar”.
O mesmo grupo de pesquisadores publicou outro estudo em 2019, cujo título é “A captura da atenção ajuda a explicar por que o conteúdo moral e emocional se torna viral”. Analisando 50.000 tweets de diversos temas e usuários diferentes entre si, os pesquisadores concluíram que termos de cunho moral-emocional capturam a atenção de uma forma diferenciada em relação a outros termos.
O maior destaque aparece na ampla disseminação e viralização desses conteúdos, quando comparados a outros. Dessa forma, postagens que envolvem elementos de alta reatividade moral-emocional, por exemplo, ligados à indignação e sentimentos negativos, têm um potencial muito maior de compartilhamento e disseminação.
Conforme a análise dos pesquisadores, “palavras morais e emocionais (como ‘lascivo’, ‘matar’, ‘mal’, ‘fé’ e ‘pecado’) foram as mais cativantes. Quando incorporadas aos tweets, estes tornavam-se significativamente mais propensos a serem compartilhados”.
Tratando especificamente dos estímulos morais nas mídias sociais e seus efeitos, a neurocientista cognitiva Molly Crockett publicou o artigo “Indignação moral na era digital” em 2019, no qual defende que as interações sociais digitais mudaram por completo as formas de expressão da indignação moral.
Mesmo sendo um traço comum entre seres humanos, a indignação moral mudou radicalmente com a Internet e as redes sociais, pois estas (i) exacerbam a expressão da indignação moral, ao inflar os estímulos que a desencadeiam, através de textos e imagens de fácil captação; (ii) reduzem os custos da expressão da indignação moral, devido à facilidade dessa exposição e compartilhamento; e (iii) amplificam o destaque daqueles que se mostram moralmente indignados. No caso, as mídias sociais promovem estímulos “supernormais” para a indignação moral, disparando uma reação maior dessa reação do que na vida diária. Nesses contextos, ações de culpabilização e castigo também são promovidas, devido aos elevados níveis de contágio emocional e à viralização de conteúdo moral nas redes.
O senso moral e as emoções
Tradicionalmente, discussões sobre moralidade e temas correlatos são desenvolvidas no âmbito da filosofia e da religião. Nos últimos anos, porém, novas investigações ligadas ao tema têm sido desenvolvidas em outras áreas, como a psicologia, a neurociência, a economia e a biologia evolucionista.
De maneira geral, tais investigações apontam para o seguinte cenário: (i) a moralidade é especificamente humana, ainda que algumas espécies possam manifestar emoções que constituem a base das reações morais; (ii) a moralidade surgiu na evolução humana como um mecanismo útil para promover a cooperação e a regulação comportamental dentro dos grupos; (iii) existem estruturas cerebrais envolvidas nas reações e no pensamento moral.
Dessa maneira, as pesquisas empíricas sobre a origem e o funcionamento da moralidade apontam para a existência de um forte “senso moral”, conforme descrito pelo psicólogo cognitivo Steven Pinker (2008). Trata-se de uma sensibilidade moral inata, de forte reatividade, que pauta as dinâmicas das relações humanas, juntamente com a capacidade de análise e reflexão racional sobre temas morais. Assim, emoção e razão se entrelaçam quando lidamos com questões de natureza moral.
Ainda segundo a análise de Pinker, nossa rica sensibilidade moral também pode causar reações intensas e violentas. Podem surgir impulsos ligados ao desejo de retaliação e agressão.
Com as amplas possibilidades de interação oferecidas pelas tecnologias de informação e comunicação na atualidade, nossa sensibilidade moral encontra estímulos a todo momento. Devido à própria dinâmica das mídias sociais, que ampliam a disseminação dos conteúdos que causam mais engajamento por parte dos usuários, conteúdos que envolvam temas emocionais-morais acabam por chamar mais a atenção e são mais disseminados.
Sobre tais processos, duas investigações sobre o funcionamento da psicologia moral podem ajudar a entender mais especificamente como o senso moral humano é intensamente estimulado no âmbito das interações sociais digitais: (i) a hipótese social-intuicionista, proposta por Jonathan Haidt (2001) e (ii) a hipótese do processo dual do julgamento moral, proposta por Joshua Greene (2001).
O psicólogo social Jonathan Haidt parte de um panorama evolutivo para explicar o surgimento e o desenvolvimento da moralidade. Num famoso artigo intitulado “O cão emocional e sua cauda racional: Uma abordagem intuicionista social para o julgamento moral” (2001), Haidt defende que as intuições dominam nossa psicologia moral pois, caso fossemos parar para pensar a cada circunstância de ação, ficaríamos paralisados. Assim, nossa psicologia moral tem intuições rápidas sobre as situações, que formam os juízos e são emocionalmente carregadas. Haidt define intuição como um julgamento, solução ou conclusão que aparece repentinamente a alguém, sem derivar de um processo consciente e deliberado.
Nesse sentido, uma consideração a ser destacada é a de que os juízos morais operam de um modo diferenciado em relação a outros juízos. O caráter intuitivo dos julgamentos morais aponta que, na maior parte das vezes, julgamos e agimos sem consciência das razões dos julgamentos e comportamentos envolvidos em tais situações.
Já o filósofo e neurocientista Joshua Greene e sua equipe publicaram um estudo intitulado “Uma investigação com ressonância magnética funcional sobre o envolvimento emocional no julgamento moral” (2001), que se tornou uma das referências dos estudos na área. Greene expôs dilemas morais a grupos variados de indivíduos e captou a imagem do cérebro dos sujeitos investigados por ressonância magnética funcional (fMRI) nos momentos de decisão.
O estudo mostrou que, no caso de situações impessoais e distantes, as áreas encefálicas ativadas estão predominantemente localizadas na região do córtex pré-frontal, relacionadas a planejamento e raciocínio. Já no caso de situações pessoais e próximas, as áreas mais ativadas estão relacionadas com regiões mais profundas do cérebro, como a amígdala, estreitamente ligada às emoções.
A hipótese social-intuicionista de Haidt e o modelo do processo dual do julgamento moral de Greene oferecem possibilidades para compreendermos os modos pelos quais somos tão estimulados por conteúdos que envolvem temas e termos morais nas interações sociais digitais: (i) tais temas capturam mais a atenção e estimulam reações devido ao fato de excitarem nossa sensibilidade moral; (ii) os julgamentos morais passam por intuições emocionalmente carregadas, gerando mais e mais engajamento por parte dos usuários; (iii) sem espaço para análises e deliberações detidas, os usuários reagem mais intensamente aos conteúdos morais que aparecem nas suas mídias sociais; (iv) os usuários interagem com mais reatividade a esses conteúdos.
Baixa empatia
Um dos elementos sociais mais afetados pelas emoções morais é a política. O cientista cognitivo e linguista George Lakoff desenvolveu uma série de trabalhos sobre os modos pelos quais as emoções morais impactam a formação de posicionamentos políticos. Lakoff aponta a necessidade de revisão das nossas concepções de racionalidade, defendendo a existência de uma relação estrita entre as emoções morais e a construção dos posicionamentos e visões políticas.
Segundo sua hipótese, nossa concepção tradicional acerca da definição dos posicionamentos políticos envolve a expectativa de que o agente é capaz de fazer escolhas políticas racionais, com base em análises e cálculos que sustentam determinado posicionamento. No entanto, Lakoff defende que nossas inclinações políticas envolvem também visões morais do mundo, influenciadas por emoções e laços afetivos.
Junto com nossos raciocínios e análises, tais elementos afetivos configuram crenças e valores, o que Lakoff identifica como “marcos mentais”, estruturas que conformam nossa forma de ver o mundo. Ao fazermos nossas escolhas políticas, os marcos mentais produzem enquadramentos, muitas vezes carregados afetivamente, que direcionam escolhas e votos.
A defesa de nossa visão política passa a estar envolvida por tais enquadramentos, muitas vezes reforçada por laços afetivos e de identidade. O debate e os posicionamentos políticos não são necessariamente imunes à discussão racional, mas envolvem elementos emocionais muitas vezes moralmente carregados que dificultam o diálogo e a análise das circunstâncias. Fenômenos como a polarização, a violência e o extremismo na política mostram como essa dificuldade se efetiva na vida política.
No caso das interações sociais digitais, o estímulo constante das emoções morais dos usuários contribui para a formação dos posicionamentos políticos. Esse estímulo constante às emoções morais, através de conteúdo específico que muitas vezes apenas reforça crenças e visões de mundo pré-existentes, contém informações inexatas ou até mesmo desinformação, e pode fazer com que os posicionamentos sejam cada vez mais extremos.
Além das diferenças entre os enquadramentos morais e políticos, com possíveis distanciamentos, polarizações e extremismos, as interações sociais digitais podem contribuir para a diminuição da empatia e a desumanização entre os usuários. Segundo a neurocientista Susan Greenfield, que investiga o impacto das novas tecnologias de informação, as interações digitais possibilitam a comunicação à distância que ajuda muito nos cotidianos das pessoas. No entanto, também criam possibilidades de contatos e discussão sobre diversos temas, inclusive questões sociais e políticas.
Como tudo é feito à distância, as interações sociais digitais podem configurar o que Greenfield identifica no livro Mind Change: How digital technologies are leaving their mark on our brains (2015) como “espaços de baixa empatia”: “Não vemos a pessoa ficar vermelha, engolir a seco, ficar nervosa”. É mais fácil atacar uma fotografia do que um ser humano. “Podemos tentar compreender como as demais pessoas se sentem vendo-as e escutando as suas vozes. No entanto, o fato de ficar demasiado tempo centrados no mundo bidimensional das redes sociais, pode estar afetando a capacidade dos jovens para empatizar”.
Esses espaços de baixa empatia, muitas vezes polarizados e carregados de emoções morais que deixam os usuários pouco receptivos à diferença, passam a ser um ecossistema marcado pela imediaticidade, a reação instintiva.
Em cenários que envolvem postagens agressivas nas plataformas digitais, seguidas de comentários violentos e disruptivos, muitas vezes moralmente carregados (e disseminadas pelas diversas plataformas), os níveis de empatia entre os usuários ficam cada vez menores, criando espaços e territórios em que a interações são cada vez mais homogêneas e sem espaço para o diálogo e a reflexão. Greenfield não nega que as interações sociais digitais também auxiliam na construção de relações sociais que contribuem para a vida das pessoas, mas mostra que os espaços de baixa empatia podem levar ao aumento de tensões e dificuldades sociais, inclusive processos de desumanização e violência.
José Costa Júnior é professor de Filosofia e Ciências Sociais - IFMG Campus Ponte Nova
REFERÊNCIAS
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