Enquanto a COVID-19 ainda se alastra pelo mundo, deixando um rastro de milhões de vítimas na saúde e trilhões em prejuízos na economia, especialistas já alertam para a crescente possibilidade do surgimento de novas doenças com potencial ainda mais devastador que o da atual pandemia, e a necessidade de prevenir outra tragédia. Perigo que cresce com o desequilíbrio ambiental provocado pela própria ação humana.
Desmatamento, destruição de habitats, expansão de práticas intensivas agrícolas e de criação animal e a caça e exploração predatória da vida selvagem aproximam pessoas de vírus e outros patógenos (agentes causadores de doenças) novos e antigos, permitindo que, eventualmente, “saltem” para hospedeiros humanos - as chamadas zoonoses -, enquanto a urbanização desordenada, a mobilidade frenética e as viagens internacionais facilitam sua disseminação.
Soma-se a isso as mudanças climáticas, que também alteram profundamente o comportamento e dispersão de pessoas, plantas, animais e das próprias doenças, e está pronta a receita de uma nova crise sanitária que não é uma questão de se, mas de quando vai acontecer, e tem como principais focos de emergência regiões do planeta como interior da China - origem do SARS-CoV-2, causador da COVID-19 -, e as selvas do Sudeste Asiático, da Oceania, da África e da Amazônia.
Diante disso, a prestigiosa revista médica The Lancet e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) aproveitaram a segunda-feira, 6 de julho, em que se observou o Dia Mundial das Zoonoses, para chamar a atenção para a questão e as estratégias e medidas que precisam ser adotadas para, se não evitar a ocorrência da próxima crise, minimizar seu impacto. A data lembra o dia, em 1885, em que o biólogo francês Louis Pasteur administrou com sucesso, no menino Joseph Meister, mordido por um cão doente, sua pioneira vacina para raiva.
‘Saltos’ mais frequentes
As zoonoses acompanham a Humanidade desde tempos imemoriais, mas foi com o advento da civilização que ganharam força epidêmica. Ao abandonarem a vida nômade de caçadores-coletores em troca da estabilidade da agricultura e da criação de rebanhos, nossos antepassados se expuseram a diversos patógenos, principalmente vírus, que têm os animais também como vítimas, hospedeiros ou vetores. Alguns dos vírus que mais mataram pessoas ao longo da História, como varíola, difteria, sarampo e gripe, provavelmente “saltaram” deles para nós, e exemplos mais recentes incluem o ebola e o HIV, causador da aids.
Processo que agora parece se dar cada vez mais rápido. Em editorial publicado em 4 de julho, a Lancet destaca que, dos 11 surtos de ebola registrados na República Democrática do Congo (RDC) desde os anos 1970, seis, ou mais da metade, aconteceram na última década. Já o SARS-CoV-2 é apenas o último de uma série de novos coronavírus letais surgidos neste século, iniciada com o SARS-CoV-1, identificado na China em 2002 e responsável por uma pandemia que infectou mais de 8 mil pessoas e matou quase 800, entre aquele ano e 2004, e o vírus da Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS-CoV), descoberto na Arábia Saudita em 2012, e que desde então já atingiu mais de 2,5 mil pessoas, com quase 900 vítimas fatais.
“Nem todas zoonoses viram pandemias, mas a maioria das pandemias é causada por zoonoses, e elas se tornaram uma característica do Antropoceno”, diz o texto na Lancet, numa referência à proposta denominação de uma nova época geológica marcada pelo impacto da ação humana no planeta, a “era dos humanos”. “Patógenos sempre saltaram de animais para humanos, mas o crescimento exponencial da população humana e a exploração do meio ambiente tornam estes saltos mais prováveis, e mais relevantes”.
O relatório do Pnuma divulgado por ocasião do Dia Mundial das Zoonoses, por sua vez, também ressalta esta relação íntima entre o surgimento de doenças com potencial pandêmico e a ação humana. O documento, produzido em parceria com o Instituto Internacional de Pesquisas em Criação Animal (ILRI) e o Grupo Consultivo para Pesquisa Internacional em Agricultura (CGIAR) e a colaboração de diversas instituições científicas espalhadas pelo planeta, lembra que cerca de três em cada quatro novos agentes infecciosos que afligiram os humanos nos últimos tempos “saltaram” para nós de outros animais.
“O crescimento populacional da Humanidade e de sua atividade têm grande parte da responsabilidade nisso”, comentou Inger Andersen, diretora executiva do Pnuma, no lançamento do relatório. “A produção de carne aumentou 260% em 50 anos. Intensificamos a agricultura, expandimos a infraestrutura e extraímos recursos às custas de nossos espaços selvagens. Represas, irrigação e fazendas industriais estão ligadas a 25% das doenças infecciosas em humanos. Viagens, transporte e cadeias de suprimentos alimentares eliminaram fronteiras e distâncias. As mudanças climáticas contribuíram para a disseminação de patógenos. O resultado final é que humanos e animais, e as doenças que eles carregam, estão mais próximos que nunca”.
Proximidade perigosa
Um exemplo do risco desta proximidade ganhou destaque no noticiário recentemente com a divulgação de estudo sobre o monitoramento de uma variante do influenza, o vírus da gripe, de potencial pandêmico na população de porcos e de humanos que trabalham com eles em dez províncias chinesas entre 2011 e 2018. Suscetíveis a linhagens do vírus tanto de origem porcina quanto aviária e humana, os porcos servem como verdadeiros caldeirões de hibridização genética destes patógenos, o que teoricamente eleva as chances de produzirem versões mais contagiosas e mortais deles.
Do subtipo conhecido como H1N1, o mesmo que provocou a pandemia de gripe suína de 2009-2010 que estima-se ter infectado de 700 milhões a 1,4 bilhão de pessoas e matado entre 150 mil e 575 mil delas, o vírus objeto do estudo publicado no periódico “Proceedings of the National Academy of Sciences” (PNAS) mostrou notável diversidade genética entre a população de porcos chinesa já a partir de 2013, tornando-se predominante em 2016. Ao longo da pesquisa, o vírus, designado G4 EA H1N1, também adquiriu capacidade de se ligar a receptores de células do trato respiratório humano e se replicar de forma eficiente nelas, passos essenciais para infectar e adoecer pessoas.
Além disso, o vírus apresentou baixa reatividade cruzada com linhagens similares usadas na confecção das recentes vacinas contra a gripe, indicando que a imunidade atual da população não fornecerá proteção. Por fim, levantamento serológico entre trabalhadores chineses do setor apontou que mais de 10% testaram positivo para o vírus, com a prevalência subindo para mais de 20% entre os que tinham entre 18 e 35 anos, numa indicação de aumento da sua capacidade de infectar humanos.
“Tal infectividade aumenta em muito as chances de adaptação do vírus para humanos e aumenta a preocupação com a possível geração de vírus pandêmicos”, concluem os pesquisadores liderados por Jinhua Liu, do Laboratório de Epidemiologia Animal e Zoonoses da Universidade Agrícola da China, e George F. Gao, do Centro de Controle e Prevenção de Doenças do país.
O Brasil na origem da próxima praga
Mas apesar de apontada como a provável origem de alguns dos mais recentes vírus mortais que se espalharam pelo mundo, como os SARS-CoV-1 da pandemia de SARS de 2002-2003 e o SARS-CoV-2 da COVID-19, a China não é o único foco de emergência destes patógenos. Estudo de 2017 publicado na revista Nature identificou também as florestas tropicais da África, Sudeste Asiático, Oceania e a Amazônia como eventuais fontes de patógenos pandêmicos.
“Temos todos ingredientes aqui: desmatamento, caça, degradação ambiental...”, destaca o ecólogo David Lapola, pesquisador do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura (Cepagri) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “E também as mudanças climáticas, que estão alterando as florestas mesmo longe do arco do desmatamento. Já observamos mudanças nas populações de árvores da Amazônia, o que afeta toda a cadeia trópica, de alimentação, com consequências imprevisíveis”.
Com uma das maiores biodiversidades do planeta, a Amazônia é lar de inúmeras espécies de macacos, roedores, morcegos e outros mamíferos que são prováveis hospedeiros de incontáveis vírus de potencial pandêmico. Só com relação aos morcegos, estudos indicam que estes animais da ordem Chiroptera são o repositório natural dos coronavírus que originaram os SARS-CoV-1 e SARS-CoV-2, com “escala” em outros mamíferos selvagens como o furão, no caso do primeiro, e o pangolim, uma espécie de tatu, no segundo, antes de começarem a se disseminar entre nós.
E, com o desmatamento, a expansão da fronteira agrícola e o avanço da pecuária sobre a floresta, é cada vez mais provável que vírus antes isolados ou com reduzido contato com humanos comecem a se espalhar entre animais domésticos, peridomésticos e selvagens obrigados a migrar pela destruição de seus habitats.
“A diversidade de vírus acompanha a diversidade biológica”, lembra Lapola. “Então, não é de bom tom ficar jogando com o enorme repositório de vírus que temos lá”.
Por outro lado, pondera o ecólogo, a Amazônia tem fatores que atenuam o perigo de se tornar um foco de disseminação de vírus mortais, como a baixa densidade demográfica, ainda mais quando comparada com a China, e menor o consumo de carnes de animais selvagens pela população, especialmente a dos centros urbanos, diferentemente do que acontece nas selvas da África, Sudeste Asiático e Oceania, onde muitas vezes a caça é a principal fonte de proteína animal.
“Na Amazônia a circulação de pessoas é bem menor”, diz Lapola. “Não se compara com as N cidades com mais de 10 milhões de habitantes no interior da China. Mesmo Manaus, a maior cidade da região, tem apenas cerca de 2 milhões de pessoas. Além disso, temos a questão cultural. Na Amazônia, fora as populações tradicionais, a alimentação é pouco baseada em animais silvestres”.
Abordagem multinível e multidisciplinar
Assim, para prevenir e mitigar os impactos de uma próxima e inevitável pandemia é preciso que o mundo se una em torno de uma estratégia multinível e multidisciplinar. E o arcabouço para isso já está estruturado em torno do conceito conhecido como One Health (“Uma Saúde”, em tradução livre), introduzido ainda no início dos anos 2000, destacam Lancet e Pnuma em suas recentes publicações.
Tendo como principais formuladores a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e a Organização Mundial para a Saúde Animal (antigamente Escritório Internacional de Epizootias, OIE), o conceito One Health propõe uma abordagem que leve em conta sustentabilidade ambiental, segurança alimentar e saúde humana e animal, bem como fatores econômicos, políticos, sociais e antropológicos, na elaboração e implementação de intervenções e ações em campos tão diversos como produção agrícola e pecuária, vigilância sanitária, comércio, indústria e turismo, para que o mundo não volte a ser refém de uma próxima, e inevitável, pandemia.
“A ciência é clara: se continuarmos a explorar a vida selvagem e destruir nossos ecossistemas, podemos esperar um constante fluxo destas doenças pulando de animais para humanos nos próximos anos”, resumiu Inger Andersen, do Pnuma, em comunicado quando do lançamento do relatório da instituição. “Pandemias devastam nossas vidas e nossas economias e, como vimos nos últimos meses, são os mais pobres e vulneráveis que mais sofrem. Para prevenir futuros surtos, precisamos ser mais ativos na proteção de nosso ambiente”.
“Disparar o alarme sobre o risco de pandemias zoonóticas tem sido em grande parte papel de alguns poucos cientistas e especialistas em saúde global”, acrescenta o editorial da Lancet. “Pelo menos até agora. A COVID-19 uniu a comunidade científica em torno de chamamentos por uma ampla transformação. Esta pandemia é um sério alerta contra a exploração predatória sem pausa da natureza, e que as zoonoses não afetam apenas a saúde, mas todo tecido da sociedade. A COVID-19 não será a última, e talvez não a pior, pandemia zoonótica. As mudanças climáticas já mostraram como uma ameaça à civilização humana pode galvanizar um senso de urgência por uma resposta de toda a sociedade. Para combater as zoonoses é preciso exatamente a mesma coisa”.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência