As falácias estatísticas do culto da cloroquina

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30 mai 2020
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mapa pandemia Johns Hopkins

A estatística é uma ferramenta fundamental para a produção de conhecimento. Ciência dedicada a coletar, organizar, analisar e interpretar dados, ela permite medir fenômenos complexos e encontrar relações de causa e efeito neles, revelando um mundo que de outra forma permaneceria oculto sob uma barafunda de informações.

Mas a ciência da estatística também pode se transformar facilmente na arte de mentir com números. Tanto que são muitas as citações célebres neste sentido. “Existem três tipos de mentiras: a mentira, a mentira deslavada e a estatística”, diz frase comumente atribuída ao ex-primeiro-ministro britânico Benjamin Disraeli (1804-1881). “Torture números e eles confessarão qualquer coisa”, afirmou mais recentemente o escritor americano Gregg Easterbrook.

E é justamente isso que muitos vêm fazendo, no contexto da atual pandemia, na tentativa de justificar suas posições de base político-ideológica e arregimentar seguidores. Torturando números e manipulando dados, negacionistas da COVID-19 e defensores de tratamentos não comprovados buscam dar um verniz científico a seus argumentos, produzindo falácias estatísticas. Vejamos alguns exemplos.

O segredo do sucesso: não contar

Dois dos países mais frequentemente escolhidos pelo culto à hidroxicloroquina para ilustrar seus argumentos a favor do uso generalizado do medicamento são Índia e Turquia. Em ambos os casos, porém, há fortes suspeitas de uma expressiva subnotificação tanto de mortes quanto de infectados, ainda que por razões diferentes, bem como características demográficas, condições locais e circunstâncias únicas no enfrentamento da pandemia que podem ajudar a explicar os números relativamente baixos de vítimas registrados até agora.

 

Gráfico mortes por milhão de COVID-19

 

Segundo país mais populoso do mundo, com mais de 1,35 bilhão de habitantes, altos índices de pobreza e vizinha da China, origem da COVID-19, de início esperava-se que a Índia fosse protagonizar uma tragédia nesta pandemia. Mas, até recentemente, isso não havia acontecido, levando os defensores da cloroquina a creditar o fenômeno ao uso profilático generalizado do medicamento lá.

Acontece que pelo protocolo original emitido pelo Conselho de Pesquisa Médica da Índia (ICMR) em 23 de março, a hidroxicloroquina deveria ser administrada de forma preventiva apenas aos trabalhadores da saúde envolvidos no tratamento de pacientes confirmados ou suspeitos de COVID-19, e aos contatos domésticos diretos de pessoas com confirmação laboratorial da doença (este protocolo foi atualizado na última sexta, 22 de maio, para incluir profilaxia para agentes das forças de segurança e outros profissionais atuando na linha de frente da pandemia).

Soma-se a isso o fato de que até recentemente a taxa de testagem na Índia era muito baixa, e consequentemente também era pequena a quantidade de pessoas com esta confirmação, e a tese de que a estratégia de sucesso da Índia na contenção da COVID-19 é a profilaxia geral da população com cloroquina começa a naufragar.

Assim, as explicações para este “sucesso” podem estar em muitos outros fatores. Comecemos pela pirâmide demográfica da Índia. Com uma idade de média estimada em 28,4 anos, mais de 80% da população indiana tem menos de 50 anos, faixa etária em que ainda são reduzidas chances de complicações causadas pela doença, sendo que mais de 44% têm menos de 24 anos, em que a mortalidade da COVID-19 fica próxima de zero. Com isso, é alta a probabilidade de o país ter muitos casos assintomáticos, e portanto não testados e não registrados, de infecção pelo SARS-CoV-2.

Outro fator importante a considerar é que a Índia instituiu fortes restrições à movimentação das pessoas muito cedo na pandemia. Em uma medida drástica, seguindo iniciativas então já adotadas por alguns estados indianos, o primeiro-ministro Narendra Modi decretou uma das mais rigorosas quarentenas no planeta, urgindo a população a ficar em casa, fechando comércio e escolas e paralisando os transportes - inclusive na extensa, intrincada e fundamental malha ferroviária do país - em 24 de março, quando a Índia ainda tinha apenas cerca de 500 casos confirmados de COVID-19.

Além disso, o “segredo” para o aparente “mistério” na baixa disseminação e mortalidade da doença no país até tempos recentes pode estar em algumas peculiaridades sociais e religiosas indianas. Historicamente, mais de 75% das mortes na Índia acontecem em casa, com os doentes raramente procurando auxílio médico tradicional, e as cremações fúnebres geralmente realizadas em campo aberto, sem a assistência de serviços funerários instituídos, logo depois. Tudo isso dificulta em muito o registro dos óbitos e identificação das causas, essenciais no monitoramento desta pandemia.

Observa-se então que vários fatores que não uma alegada, e inexistente, profilaxia generalizada com cloroquina, como subnotificação, demografia e estratégias de distanciamento social, podem estar contribuindo para os relativamente baixos índices de contaminação e morte de pessoas por COVID-19 na Índia até recentemente atribuídos pelos defensores ao uso preventivo da droga. Insisto no “recentemente” porque, com o forte aumento da capacidade de testagem no país nas últimas semanas, chegando a mais de 100 mil amostras diárias, o número oficial de infectados vem disparando, reacendendo o temor de uma explosão de casos à medida que o governo também afrouxa as medidas de contenção.

Na Turquia elementos similares também podem estar em ação para explicar por que o país parece já ter passado pelo pico da pandemia com uma das menores taxas de mortalidade pela COVID-19 no planeta. Lá, o protocolo para uso da cloroquina determina a prescrição da droga a todas as pessoas com a suspeita de estarem com a doença, antes mesmo do resultado de qualquer teste. Além disso, elas também recebem o antibiótico azitromicina, com os pacientes internados também sendo tratados com o antiviral favipiravir.

Novamente, porém, o caso da Turquia apresenta peculiaridades que vão além deste protocolo e também podem explicar seus números. Como a Índia, a população turca é relativamente jovem, com uma idade média de 31,5 anos, mais de 40% das pessoas com até 24 anos e cerca de 76% abaixo dos 50 anos (a título de comparação, no Brasil a idade média é de 33,5 anos, sendo cerca de 36% dos habitantes com menos de 24 e 74% abaixo dos 50). E, também como a Índia, o país agiu rápido para impor medidas restritivas sociais para conter a disseminação da doença, fechando fronteiras, interrompendo a movimentação interna, proibindo aglomerações e suspendendo as atividades em escolas, comércio ou serviços não-essenciais logo após a confirmação do primeiro caso, em 11 de março.

Outro fator semelhante presente na Turquia, mas por razões diferentes das observadas na Índia, é a subnotificação. Neste aspecto, a Associação Médica Turca tem criticado repetidamente o governo do presidente Recep Tayyip Erdogan por usar um critério muito restrito para registro de mortes por COVID-19, artificialmente reduzindo os números e escondendo a “real dimensão do problema”.

Rede de proteção social

Para além disso, porém, os pesquisadores turcos Soli Özel e Evren Balta argumentam em artigo para o Institut Montaigne - think tank sediado na França dedicado à avaliação e proposta de políticas públicas – algumas particularidades que também podem ter ajudado o país nesta pandemia. Diferentemente da maioria dos países, a Turquia adotou uma forma de isolamento social vertical, inicialmente proibindo as pessoas com mais de 65 anos de saírem de casa, e posteriormente estendendo a proibição para todos com menos de 20 anos que não estivessem empregados.

Segundo Özel e Balta, embora tal estratégia tenha falhado em evitar a disseminação do novo coronavírus, sua rápida propagação, surpreendentemente, evitou um colapso do sistema de saúde, graças a algumas peculiaridades do país. A primeira, destacam, é que o isolamento apenas de idosos e jovens só pôde ser bem-sucedido devido ao arraigado costume familiar de cuidar destas pessoas. Apoiados por esta ampla rede de proteção social, os mais velhos e mais sujeitos a complicações da COVID-19 não precisaram se expor ao risco de contaminação, enquanto os mais novos não serviram como potenciais, e poderosos, vetores assintomáticos do vírus.

Além disso, dizem os pesquisadores turcos, teria contribuído para a baixa mortalidade a própria estrutura do sistema de saúde turco e, paradoxalmente, a corrupção de que é vítima. De acordo com a dupla, isso fez com que apesar de a Turquia ter uma quantidade de leitos hospitalares “comuns” por habitantes bem inferior à de seus vizinhos europeus – 2,81 para cada mil pessoas, contra 8 por mil na Alemanha e 5,98 na França, por exemplo -, o número de UTIs disponíveis proporcionalmente no país está entre os mais altos da Europa, tendo atingido a marca de 29,4 por 100 mil habitantes em 2018, uma alta de 46% frente aos números de 2012. Segundo Özel e Balta, isso aconteceu porque cerca de 60% destes leitos de UTI estão em hospitais privados, cujos custos de utilização, muitas vezes sem necessidade, são cobertos pelo Estado quando os pacientes não conseguem pagar.

A falácia da proporcionalidade

Nas últimas semanas, tanto negacionistas da pandemia quanto defensores da cloroquina também têm citado dados como a quantidade de casos ou mortes por COVID-19 por milhão de habitantes como “provas” de seus argumentos. Tirados de contexto, estes números são usados em comparações enganosas para alegar ou que a doença não é tão contagiosa ou perigosa, ou, novamente, que países que supostamente usam a droga em larga escala estão, assim, conseguindo conter a disseminação ou curar vítimas.

Mas estas estatísticas são altamente dependentes de diversos fatores que vão muito além de explicações simplistas, seja a prescrição de eventuais profiláticos ou o suposto "baixo risco" da doença.

Estes fatores deliberadamente ignorados ou omitidos, quando os números proporcionais são mobilizados em argumentos de má-fé, vão da capacidade de rastreio e detecção dos infectados pelos países pinçados como exemplo ao estágio da pandemia em que se encontram, passando pela vontade política dos respectivos governos em minimizar a gravidade da situação e a disposição de capitalizar politicamente com ela.

No lado da defesa da cloroquina, por exemplo, novamente aparece com frequência nos argumentos que usam os números per capita para fazer a situação na Índia parecer muito melhor do que é. Com seus mais 1,35 bilhão de habitantes, o país entra no cálculo com um denominador imenso, bem diferente, por exemplo, da pequena República de San Marino, com pouco mais de 33 mil moradores. Levando em conta ainda que a República, encravada no centro da Itália, já passou pelo pior da pandemia, tem uma população bem mais envelhecida e uma chance de subnotificação bem menor que o país asiático, a comparação fica ainda mais esdrúxula, como deixa claro a imagem abaixo.

Gráfico das mortes por COVID-19 por milhão de habitantes na Índia e em San Marino

É na tentativa de minimizar o risco representado pela COVID-19 e a gravidade da pandemia que este tipo de comparação mais aparece. Por vezes, no entanto, este tiro sai pela culatra, como aconteceu com o presidente Jair Bolsonaro no último dia 14 de maio. Questionado por jornalistas sobre a diferença no número de mortes pela doença no Brasil e Argentina, Bolsonaro instou os repórteres a “fazer a conta por milhão de habitantes”. Tiro, e queda. Então, a proporção de mortos pela doença no Brasil era de 70,7 por milhão de habitantes, quase dez vezes os 7,9 por milhão de nossos vizinhos.

Já uma tabela que anda circulando pelo aplicativo de mensagens WhatsApp busca fazer uma comparação similar, ainda que não apele diretamente para frações ou porcentagens. Nela, o autor soma as populações e mortes por COVID-19 registradas até pouco tempo atrás na Itália, França, Bélgica e Reino Unido e as compara à situação do Brasil, numa tentativa de mostrar que devido às diferenças na pirâmide demográfica entre o país e a Europa, a situação aqui não é tão grave assim, e as medidas de distanciamento social em vigor, exageradas, devendo ser afrouxadas ou mesmo revogadas.

Tabela compara vítimas da COVID-19 no Brasil e em alguns países da Europa
Tabela compara vítimas da COVID-19 no Brasil e em alguns países da Europa

O que esta “conta de padaria” esconde, no entanto, é que o Brasil e estes países europeus estão em estágios bem distintos da pandemia. Enquanto aqui as curvas de infecções e mortes ainda são claramente ascendentes, lá os países já passaram pelo pico da crise, registrando cada vez menos vítimas, como mostram as curvas abaixo:

Gráfico das mortes diárias registradas na pandemia de COVID-19 no Brasil e alguns países da Europa  

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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