Mais ou menos um mês antes de o Prêmio Nobel de Química ser concedido para os criadores de tecnologias que permitem projetar proteínas que não existem na natureza, o engenheiro, cientista, pesquisador, escritor, produtor e apresentador de TV Travis Taylor – figurinha fácil em reality shows sobre fantasmas e em séries “documentais” tipo Alienígenas do Passado – insinuava (“isto é apenas uma especulação”), durante fala numa convenção de paranormalidade (“PhenomeCon – We Believe”) que alienígenas mutilam gado porque precisam de uma proteína do sangue de vaca para fazer suas naves espaciais viajarem mais rápido do que a velocidade da luz.
O vídeo com a fala de Taylor, publicado no X-Twitter, mostra que a “especulação” foi recebida com expressões de espanto – não espanto com o nível do ridículo, mas com a suposta profundidade do insight – e aplausos efusivos.
Nós, reles seres humanos, estamos à beira de sermos capazes de criar qualquer proteína imaginável em laboratório, mas os ETs, que dominam tecnologias com que mal podemos sonhar, precisam atravessar a galáxia para roubar – das vacas – a proteína de que eles precisam para serem (paradoxalmente) capazes de atravessar a galáxia, em primeiro lugar.
Claro. Óbvio. Como ninguém nunca havia pensado nisso antes?
Da impostura à falsificação
Prestar muita atenção no absurdo do conteúdo, no entanto, nos distrai das coisas que tornam esse tipo de discurso realmente eficaz: o modo de apresentação, em especial o tipo de linguagem que é usado para estruturar a alegação. Se pensarmos naquilo que, no frigir dos ovos, está realmente sendo dito como se fosse um prédio em construção – no caso, o vistoso edifício “ETs usam sangue de vaca para viajar mais rápido do que a luz” –, as escolhas de linguagem são os andaimes que vão pondo os tijolos no lugar e, na ausência de fatos e argumentos sólidos, são as vigas de pau podre que vão manter a ilusão de integridade da obra.
Frases usadas no vídeo, como “E SE os ETs estiverem...” (ênfase na dicção do “e se”) e “isto é só especulação” não estão ali por acaso: superficialmente, vão alertar o público para manter algum ceticismo. Mas, num nível mais profundo, cumprem a função de fazer o palestrante soar simpático, porque humilde – o que é um convite não ao ceticismo, mas à boa e velha generosidade epistêmica da “mente aberta”. Além, claro, de oferecer uma rota de fuga em caso de aparecer alguma contestação mais séria.
O truque-chave é trabalhar dentro das expectativas do público que está à mão: no caso de um evento como a PhenomeCon (com seu slogan “nós acreditamos”), a existência de ETs capazes de viajar mais rápido do que a luz e que mutilam exemplares de gado vacum terráqueo não é “especulativa”, mas a razão por trás dessas mutilações, é. Some-se a isso a expectativa de que o discurso será “científico” (Taylor fala em “topologia”, “lasers”, “meta-materiais”) e que a fonte tem autoridade para dizer o que diz – o que, para um público como o dessa convenção, Travis Taylor certamente tem – e a receita estará completa.
Mas o público não precisa ser sempre assim tão específico: o importante é reconhecer suas expectativas e construir o discurso de acordo.
Em seu livro “Sins Against Science”, a pesquisadora de retórica científica Lynda Walsh elege a consciência das expectativas dos leitores como fator crucial para explicar o sucesso dos scientific hoaxes – “imposturas científicas” talvez seja uma tradução razoavelmente adequada – perpetrados pelo jornalismo norte-americano no século 19.
Essas imposturas eram “reportagens” falsas sobre avanços científicos e feitos tecnológicos inexistentes, da descoberta de vida na Lua a uma viagem transatlântica de balão.
Walsh identifica duas grandes “ondas” de imposturas científicas na mídia dos Estados Unidos: de 1835 a 1849 e de 1862 a 1880. Também aponta como esses trabalhos se desenrolavam em uma estrutura de dois atos: no primeiro, a construção do “hoax”, explorava-se o que o público imagina que uma reportagem sobre ciência deve ser, e como deve ser escrita. E, no segundo, a “confissão” do autor, com a exortação de que o público abandone o hábito de acreditar em algo apenas porque a aparência se conforma à expectativa, ignorando ou deixando passar absurdos óbvios.
“Sins Against Science” levanta a tese de que muitas dessas imposturas tinham o objetivo ideológico de lutar contra o que a cultura humanística da época – os autores das imposturas eram, afinal, jornalistas, poetas, escritores – via como uma supervalorização das ciências como caminhos privilegiados de acesso à verdade, em detrimento da emoção, da intuição, do mero bom-senso; também, uma forma de repreender o público por levar a palavra “ciência” a sério demais. Qualquer absurdo poderia ser levado a sério se apresentado como “científico”, apresentação que, para ser bem-sucedida, só dependia de uma leitura correta das expectativas do público e da manipulação de certas fórmulas retóricas.
Se esses dois problemas – a dor-de-cotovelo humanística diante do inegável sucesso empírico das ciências, e a valorização acrítica do rótulo “ciência”, sem que se dê a devida atenção ao conteúdo – já eram preocupantes em 1840, o fato é que continuam a sê-lo ainda hoje. Com o agravante de que, nos quase 200 anos desde então, as estratégias desenvolvidas para a produção de imposturas científicas foram cooptadas por gente que não tem o menor interesse em produzir o segundo ato, o da “confissão”: os criadores e promotores de pseudociência.
Gênero literário
Nesse aspecto, a “arte” da pseudociência, enquanto forma literária, se aproxima da ficção científica e da narrativa policial, dois gêneros em que a exploração retórica das expectativas do leitor – e do status cultural da lógica e da ciência – é uma ferramenta indispensável. Não é por acaso que um dos grandes artífices de imposturas científicas do século 19, Edgar Allan Poe, também é um dos gênios fundadores de ambos os gêneros.
Alguns trabalhos de Poe que hoje lemos como ficção científica foram publicados originalmente como imposturas. O conto “Os Fatos no Caso do Sr. Valdemar”, por exemplo, chegou a ser republicado, como notícia (intitulada “Mesmerism in America. Death of M. Valdemar in New York”) pela revista britânica Popular Record of Modern Science, num caso precoce de viralização internacional de “fake news” científica. Em novembro de 1846, Poe recebeu a seguinte carta da Inglaterra:
Como um crente no Mesmerismo, respeitosamente tomo a liberdade de me dirigir a você para saber se um panfleto publicado recentemente em Londres... sob a autoridade de seu nome e intitulado Mesmerismo, em Articulo-Mortis, é genuíno. Ele detalha um relato de algumas circunstâncias extraordinárias, conectadas com a morte de um M. Valdemar sob influência mesmérica, escrito por você. A palavra “impostura” foi enfaticamente pronunciada sobre o panfleto por todos que o viram aqui, e pelo bem da Ciência e da verdade, uma nota sua sobre o assunto seria realmente necessária.
Ao que o autor respondeu, em dezembro:
“Impostura” é precisamente a palavra adequada ao caso de M. Valdemar. A história apareceu originalmente em The American Review, uma revista mensal publicada nesta cidade. Os jornais de Londres, começando com Morning Post e Popular Record of Science, abordaram o tema. O artigo foi amplamente copiado na Inglaterra e agora está circulando na França. Algumas poucas pessoas acreditam nele — mas eu não — e você também não.
Poe estava enganado quanto à circulação da história na França, mas seu impacto no mundo anglófono está bem documentado. Walsh chama atenção para o fato de que o veículo original de publicação do conto, American Review, “regularmente trazia notícias políticas e científicas” o que punha a decisão individual de cada leitor sobre se o relato deveria ser levado a sério ou não “no centro da interpretação do texto”.
A pesquisadora acrescenta que a conversão da narrativa, de impostura científica em peça literária de ficção científica, se deu pelo transplante do texto, que saiu dos periódicos jornalísticos para habitar livros de contos, e pela perda de credibilidade do mesmerismo, reduzido a pseudociência. O texto é o mesmo, mas a transformação das circunstâncias – e das expectativas do público em relação a ele – transformou-o, de ciência picareta, em literatura legítima.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)