Percebendo as faces públicas da ciência

Apocalipse Now
15 jun 2024
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rosto de frente e perfil

 

Brasileiros acham que sabem identificar desinformação e notícias falsas, mas essa autoavaliação provavelmente é otimista demais – ao menos quando o assunto é ciência e saúde. A suspeita me ocorre no exato momento em que percorro os resultados da mais recente Pesquisa de Percepção Pública da Ciência e Tecnologia no Brasil, divulgada no início do mês, e que ouviu cerca de 2.000 cidadãos maiores de 16 anos, entre novembro e dezembro de 2023.

De acordo com os números apurados, uma sólida maioria (80%) diz encontrar notícias que parecem falsas com frequência (51%) ou ocasionalmente (29%). Mas com que acuidade essa discriminação entre conteúdo falso e verdadeiro acontece? Afinal, informações falsas podem ser erroneamente aceitas como verdadeiras e, também, “verdades inconvenientes” podem acabar sendo rejeitadas de modo indevido.

Levando essas possibilidades perturbadoras em conta, é inevitável encontrar dados na pesquisa que não recomendam otimismo: outra maioria de brasileiros, um pouco menor (73%), concorda que antibióticos combatem vírus (51% acreditam totalmente nisso, 12%, parcialmente). Já 67% (sendo 52% sinalizando concordância total, 15% de parcial) creem que “interesses comerciais” estão escondendo curas para o câncer do público.

Também, 51% veem pelo menos alguma plausibilidade na afirmação de que os signos do horóscopo influenciam a personalidade (25% concordam totalmente, 16% concordam parcialmente e 10% parcialmente discordam). A alegação de que algumas vacinas podem causar autismo também tem algum nível de plausibilidade para 47% (21% concordam totalmente, 14% concordam parcialmente e 12% discordam parcialmente).

O modo como essa matriz de crenças conspiratórias e/ou pseudocientíficas de grande prevalência colore a distinção subjetiva entre informação válida e “fake news”, quando o assunto é ciência ou saúde, é algo que merece ser investigado. Senso de pertencimento e comunidade deve desempenhar um papel: segundo a pesquisa, cerca de 46% dos entrevistados recebem com desconfiança informações vindas de fontes (pessoas ou instituições) com quem normalmente discordam, e 42% veem com boa vontade alegações vindas de fontes com quem normalmente concordam.

 

 

Efeito pandemia?

A pesquisa, conduzida pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) e pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), é a mais recente de uma série histórica iniciada em 2006. Esta é a primeira edição a incluir uma suíte de questões sobre frequência da disseminação e do contato (percebido) com notícias falsas.

Como os levantamentos são feitos de quatro em quatro anos, não houve pesquisa durante a pandemia – a anterior mais recente data de 2019 – mas algumas peculiaridades, presentes nos dados publicados no site do CGEE, parecem indicar um efeito latente da grande crise de saúde pública do século.

Por exemplo: é a primeira vez, desde 2010, que a categoria “cientistas de universidades ou institutos públicos de pesquisa” (preferidos por 13% dos entrevistados) supera “religiosos” (preferidos por 11%) como fonte de informação mais confiável sobre temas importantes. Em 2019, religiosos tinham a preferência de 15%, e cientistas do setor público, 12%. Em 2015, 8% preferiam cientistas e 17%, religiosos. A única outra pesquisa em que cientistas tinham superado religiosos havia sido a de 2006 (17% a 13%), com o jogo virando logo na rodada seguinte, de 2010, com religiosos 13% e cientistas públicos, 8%.

A pesquisa também revelou uma queda generalizada nos níveis de confiança, entre 2019 e 2023, em praticamente todas as categorias contempladas nas questões sobre quais as fontes mais (e menos) confiáveis sobre temas importantes.

Combinando os resultados das duas questões – quem mais merece e quem menos merece confiança – num índice que vai de +1 (confiança plena) a -1 (fala sério!), o levantamento mostrou perda na confiança do público nos médicos (queda de 0,13, para 0,72), nos cientistas (perda de 0,17, para 0,66), jornalistas (tombo de 0,18, para 0,18), religiosos (tombo de 0,23, para 0,18). Os únicos grupos que se tornaram mais confiáveis aos olhos do público no intervalo entre o pré e o pós-pandemia foram os políticos e os artistas: ambos já tinham nível de confiança negativo, bem próximo de -1, em 2019, e em 2023 ficaram levemente “menos piores” (artistas subiram 0,2 ponto, para -0,64; políticos, 0,07, para -0,89).

Talvez até mais relevante, como possível efeito residual do trauma pandêmico, seja a série histórica das respostas à questão “os governantes devem seguir as orientações dos cientistas”: depois de uma queda brutal no nível de concordância em 2015 (59% no agregado dos que concordam total ou parcialmente, com apenas 18% concordando por completo), em 2023 o índice chegou ao maior nível da série, com 75% na concordância agregada e 40% de concordância plena, também um recorde. Já os que “discordam totalmente” foram de uma máxima de 18% em 2015 para 9% em 2023, a primeira vez na série em que essa taxa ficou abaixo de 10%.

 

Qual cientista?

Se as pessoas esperam, ou pelo menos aprovam, que o governo siga orientações de cientistas, fica em aberto uma questão grave – quais cientistas, exatamente? Quem conta, perante o público, como cientista legítimo para aconselhar governos?

Os dados mostram que pesquisadores de instituições públicas têm melhor reputação do que os de instituições privadas (índices de confiança de 0,66 e 0,30, respectivamente), mas isso não é um selo de qualidade tão grande quanto o velho viés corporativista da academia nacional (segundo o qual todos os campi públicos contêm nada menos do que 100% de Prêmios Nobel esperando para acontecer) pode levar os desavisados a imaginar. Basta lembrar que dois dos cientistas vinculados a universidade pública mais populares ou politicamente influentes da última década ficaram famosos empurrando uma falsa cura para o câncer e promovendo cloroquina para COVID-19.

(Curiosamente, o questionário deste ano inclui a pergunta “você se lembra do nome de algum cientista brasileiro importante?”, presente também em edições anteriores, mas desta vez nem o resumo executivo, nem os dados divulgados na apresentação publicada online, mostram as respostas, que em geral são mesmo meio vexaminosas: em 2019, tinha dado “Marcos Pontes” na cabeça.)

A questão dos modos de construção da legitimidade das “vozes públicas” da ciência é uma que eu já havia, de certa forma, levantado no comentário de 2019 sobre a edição anterior do trabalho, e que ganha mais importância quando se combinam os resultados da atual Pesquisa de Percepção aos de outra, também publicada recentemente pelo CGEE, A Ciência em Diferentes Arenas, sobre a disseminação e consumo de conteúdo sobre ciência em diferentes mídias, incluindo os jornais Folha de S. Paulo e O Globo (o Estadão deve estar se sentindo discriminado) e mídias sociais.  

No trabalho sobre percepção pública, vê-se que as fontes mais frequentes de informação sobre ciência, para o público brasileiro, são redes sociais, aplicativos de mensagem e plataformas digitais (excluindo-se os sites de jornais, revistas e redes de TV, que aparecem em categorias próprias).

Já em “Ciência em Diferentes Arenas”, lemos o seguinte:

 

“(...) nas redes sociais, as palavras ‘ciência’ e ‘cientista’ também são utilizadas de forma comercial, ou seja, como um mecanismo de legitimação para vender produtos. A autoridade envolvida na profissão de ‘cientista’ aparece até em publicações relacionadas a games, nos quais pesquisadores são retratados como personagens. Em outras palavras, associar-se à ciência parece ser algo vantajoso junto ao imaginário do público, ainda que nem sempre esteja claro para os usuários o que é, de fato, fruto de produção científica”.

 

De fato, entre os perfis com mais postagens “científicas” do Instagram, os autores encontraram um chamado “Numerologia da Prosperidade”, e entre os mais comentados, “Lei da Atração”.  

Contemplando esses dados sobre o ambiente das redes sociais, mais o fato de que é lá que parcela significativa do público “se informa” sobre ciência saúde, e juntando a constatação do estado lastimável da alfabetização científica e da aplicação do pensamento crítico, temos uma visão sóbria, se não sombria, de o que o apreço do brasileiro por algo chamado “ciência” – rótulo que, no imaginário coletivo, parece incluir o uso de antibióticos contra vírus e a crença em conspirações sobre curas secretas do câncer – pode implicar na realidade.

Não existe, afinal, nenhuma conexão mágica ou lógico-necessária entre o que diz o rótulo da garrafa e seu conteúdo. Lidar com adulteração e falsificação de produtos é algo que preocupa, diuturnamente, os serviços de defesa do consumidor, e deveria preocupar os defensores da ciência, também.

Garantir que o rótulo “ciência” se mantenha vistoso, atraente e admirado é uma obsessão constante da comunidade científica; obsessão refletida, aliás, em boa parte das perguntas elaboradas na pesquisa de percepção. Já lutar para garantir que esse rótulo só seja aplicado ao produto legítimo é uma prioridade negligenciada há tempos – inclusive por pressão de interesses entranhados na economia, na política e também na academia. Mas, como mostram as duas recentes pesquisas, trata-se de uma batalha que quem acredita estar “sabiamente” evitando ou adiando está, na verdade, perdendo.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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