Já que os postulantes na disputa pela Prefeitura da maior cidade do país – e a Justiça Eleitoral, e os partidos políticos, e parcela significativa dos eleitores – parecem claramente dispostos a reabilitar ou, no mínimo, a fazer vistas grossas para o uso da violência física como modo de resolução de disputas sobre “honra”, talvez seja hora de reexaminar uma antiga tradição do Ocidente, criada exatamente para esse fim, o de preservar a honra por meio da violência: o combate singular ou, para os íntimos, o duelo.
Para quem considera a prática anacrônica, vale lembrar que o último duelo entre celebridades travado na França – que envolveu um coreógrafo e um diretor de balé – ocorreu em 1958 (quatro assaltos de dois minutos, com espadas). Já o último duelo entre políticos franceses, provocado por uma troca de insultos na Assembleia Nacional, aconteceu em 1967, também com espadas. Uma imagem do embate ilustra este artigo.
No Uruguai, a lei que autorizava e regulava a prática de duelos, aprovada em 1920, só foi revogada em 1992.
Há duas formas clássicas de duelo: espadas ou pistolas. Mas nada impede que sejam usados cadeiras, facas, punhos (o boxe, em sua forma moderna, nasceu do duelo com espadas – uma vez removidas as espadas), ou quaisquer outros implementos capazes de machucar (ou destruir) o corpo humano. O jornalista americano Benjamin C. Truman conta a história de dois franceses que, em 1843, enfrentaram-se com bolas de bilhar, arremessadas a uma distância de doze passos. Logo no primeiro arremesso, um deles foi atingido com violência no meio da testa. Caiu morto.
A despeito das consequências potencialmente fatais, existe alguma evidência de que duelos, desde que devidamente codificados e ritualizados, podem ser uma política pública eficiente, evitando muito gasto do erário e trabalho burocrático em ações judiciais fúteis de “defesa da honra” e, paradoxalmente, salvando vidas.
A lei uruguaia que regulamentava a prática do duelo, impondo regras rígidas (que incluíam o recurso das partes a um comitê de conciliação antes das vias de fato), surgiu num momento em que o país vivia uma verdadeira epidemia de combates singulares. Segundo pelo menos uma fonte, o estatuto acabou tendo efeito salutar: durante seu período de vigência, foram emitidos mais de 500 desafios, trinta dos quais resultaram em duelos – que, por sua vez, causaram uma única morte. O que põe todo o debate sobre “regular ou proibir” numa nova perspectiva.
Baixa letalidade
Artigo publicado em 1984 no Journal of Legal Studies argumenta que duelos podem ser um meio eficiente de resolução de disputas, desde que dadas duas condições: baixa letalidade e alta valorização social dos conceitos de “honra” e “reputação”, não apenas como sentimentos pessoais, mas como fonte de acesso a recursos valiosos, como redes de contatos, parceiros de negócios, influência política, etc. Os pesquisadores notam que as regras de duelo adotadas no sul do Estados Unidos no período pré-Guerra Civil determinavam o uso de pistolas de cano curto e sem estrias, um tipo de arma com chance relativamente baixa de atingir o alvo.
Um autor da época estimou que o tiro de uma pistola de duelo de qualidade média teria um desvio de até nove centímetros a uma distância de dez metros do alvo, e pôs em 16% a chance de um duelista ser atingido, e em 7%, de ser morto. Isso significa que alguém teria de disputar cerca de dez duelos para ter uma chance maior de 50% de perder a vida.
Antes do século 19, armas de fogo eram ainda mais imprecisas e menos letais. No século 18, George Robert “Briguento” Fitzgerald, talvez o mais notório duelista irlandês de todos os tempos – estima-se que tenha participado de pelo menos 30 duelos, e há autores que põem o total em 46 – foi atingido na testa por um tiro durante um de seus primeiros combates, mas a bala não penetrou fundo, foi extraída com sucesso e o crânio reparado com uma placa de prata.
Mas nem todo ferimento com pistola de duelo é trivial: em suas memórias (e, de forma ficcionalizada, na novela “O Duelo”), Giacomo Casanova descreve os danos graves causados por sua troca de tiros com um nobre polonês em 1766. O nobre, Conde Branicki, recebeu o tiro do abdome e esteve por dias às portas da morte. Casanova foi atingido na mão, que infeccionou e quase teve de ser amputada.
Diferentemente dos duelos de filmes de Velho Oeste, que tendem a começar de modo impulsivo – xerife e bandido saindo às pressas do bar para trocar tiros na rua empoeirada, tudo num piscar de olhos –, o duelo clássico entre “cavalheiros” é um ritual cuja preparação pode consumir vários dias e envolve, além dos duelistas, a figura dos “padrinhos”, ou “segundos”, que atuam como árbitros e, muitas vezes, conseguem negociar uma conciliação entre as partes, antes que se chegue às vias de fato.
Caso o combate de fato ocorra, o duelo é acompanhado pelos padrinhos e por pelo menos um médico (no século 19, era comum cada duelista se fazer acompanhar por um cirurgião de confiança). Nos duelos de espada, principalmente, a divisão do embate em assaltos e a presença do médico tendem a reduzir bastante a letalidade.
Regras como o Código de Duelo da Irlanda definem o momento em que a “honra está satisfeita”, e que não precisa necessariamente vir após a morte de um dos duelistas. Por exemplo, a “satisfação” pode ser dada quando ocorrer o primeiro ferimento a tirar sangue, ou depois de cada participante ter disparado três tiros, ou após um tiro seguido de um pedido de desculpas.
Política
Políticos e jornalistas tendem a encabeçar as listas de pessoas envolvidas em duelos. Nos anos que se seguiram à Revolução Francesa, principalmente após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815, duelos foram usados como arma política – uma forma de, literalmente, eliminar a oposição.
A lei uruguaia de 1920, que regulamentou a prática, foi aprovada depois que um ex-presidente do país, José Batlle, matou em duelo o editor do jornal El País, Washington Beltrán. Benito Mussolini, antes de se tornar ditador da Itália, havia sido um exímio duelista, enfrentando políticos socialistas, anarquistas e mesmo outros fascistas em combates de sabre.
Mussolini era um mestre da propaganda, e fazia questão de que esses duelos fossem amplamente divulgados, com descrições minuciosas publicadas em seu jornal Il Popolo d’Italia, projetando para si uma imagem de homem galante e destemido. Seu duelo com o deputado socialista Francesco Ciccotti chegou a ser noticiado no Times de Londres. O combate foi interrompido quando Ciccotti teve o que pareceu ser o início de um ataque cardíaco, causado pelo intenso esforço físico da refrega.
Da honra ao ridículo
Duelos não deixam de acontecer porque a lei os proíbe (“duelar foi ilegal durante a maior parte da história da atividade, mas as leis tinham pouco efeito”, escreve Paul Kirchner, autor de “Dueling with Sword and Pistol”), mas porque a sociedade se cansa deles.
As duas condições (baixa letalidade e alto apreço pela honra) que podem, em certas circunstâncias, tornar os duelos “eficientes” – considerações de ordem moral à parte – existem em tensão permanente, e essa tensão tende a reduzi-los ao ridículo: se a letalidade é baixa o bastante para que a prática não descambe em carnificina, a ideia de defesa da honra, supostamente por meio de uma exibição de coragem e da disposição de pôr a vida em risco, vira piada.
“Sem o elemento de risco fatal, duelar ganha um sabor de grandiloquência, de honra barata. Torna-se um golpe publicitário, com o intuito de derramar tinta, não sangue”, escreve Kirchner. A longa lista de duelos de sabre de Mussolini logo vem à mente – bem como os socos e cadeiradas da campanha eleitoral paulistana.
Mas, com o risco fatal presente, o duelo se torna um playground para bullies (ou bretteurs, como eram chamados na França) e assassinos em série. Num livro sobre a história da esgrima publicado em 1901, “The Sword and the Centuries”, Alfred Hutton dedica uma seção especial ao “Bully de Bordeaux”, o Conde de Larillière, “que sofria de um tipo de doença mental, sob a forma de uma sede de sangue insaciável”, provocando duelos por motivos fúteis apenas, aparentemente, pelo prazer de matar os adversários, na primeira metade do século 19. Hutton conta a história de sua morte, num duelo contra um jovem militar cujo nome se perdeu na história, mas que, segundo um relato publicado em 1881, foi homenageado em todas as igrejas da cidade.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)