Com eleições se aproximando, o debate sobre “fake news”, o grau de desinformação circulante nas redes e na imprensa, e o que fazer a respeito volta a esquentar na mídia, nas mesas de bar, na academia e no Judiciário – e, mais uma vez, fica de fora, da maioria das formulações, abstrações e pronunciamentos a respeito, um dos componentes essenciais do sistema: o público.
Desinformação, mentira, distorção, etc. são problemas em si e precisam ser combatidas: é fato. Esta Revista Questão de Ciência dedica-se a esse combate desde que entrou no ar, em novembro de 2018, com uma reportagem especial sobre falsas curas do câncer.
Mas há muito mais coisas no mundo que precisam ser combatidas, e que nem por isso contam com inquérito especial no Supremo Tribunal Federal, monopolizam o debate público qualificado ou geram clamores por medidas que tangenciam perigosamente a violação de direitos fundamentais, como a livre circulação de informação de interesse público e a livre prática do jornalismo.
Uma coisa é combater desinformação fazendo a informação correta circular, afiando e ajustando as ferramentas retóricas, cobrando ética e responsabilidade no debate público; outra, com mordaça e cadeia.
A desinformação deixa de ser mais um problema e torna-se o problema por excelência quando se detecta nela o potencial real de afetar o comportamento do público, e de maneiras que sejam deletérias para as próprias pessoas e para a sociedade como um todo.
A surpreendente vitória, com consequências trágicas, de duas grandes campanhas baseadas quase que exclusivamente em alegações não só mentirosas, como demonstravelmente falsas – a do Brexit e a de Donald Trump, ambas em 2016 – deixaram uma forte impressão de que a desinformação mereceria ser promovida, de um problema, para o problema. Uma mudança radical de status, por assim dizer.
Essa impressão, de que era chegada a hora de levar a desinformação, não apenas para um patamar superior no elenco das preocupações da Humanidade, mas direto para o topo da lista, só foi reforçada pelos eventos da pandemia de 2020-2023. E muita teoria, e muito choro e ranger de dentes, muita lamúria jornalística e muito ativismo judicial foram produzidos com base nessa impressão. Mas...
Causa e efeito
O diagnóstico que põe, nos ombros das “fake news” e da desinformação, a responsabilidade total (ou maior) pelas agruras da última década tem dois problemas: um é de relação causal – não foi necessariamente porque as campanhas do Brexit e de Trump mentiram que essas causas, o rompimento do Reino Unido com a União Europeia e o trumpismo, triunfaram. Não foi necessariamente por causa das mentiras que se contaram sobre vacinas, máscaras e distanciamento social que o combate e a contenção da pandemia foram tão difíceis.
No contexto da pandemia, por exemplo, há indícios de correlação entre apoio a Jair Bolsonaro (um importante vetor de desinformação sobre comportamentos seguros e vacinas durante a crise da COVID-19), taxas de mortalidade e recusa a vacinas. Mas não é possível saber se isso aconteceu porque bolsonaristas engoliram as mentiras do então presidente da República sobre as vacinas, ou se apenas reagiram por emoção ou outro motivo.
Como o filósofo Bertrand Russell certa vez alertou, às vezes é mais correto dizer que as pessoas creem de acordo com suas ações, e não que agem de acordo com suas crenças.
O segundo problema, que já se insinua no exemplo acima, é um modelo que põe o público no papel de vítima passiva: assume a premissa de que o mero contato com a desinformação é suficiente para alterar comportamentos ou, em outras palavras, de que a desinformação circulante é sempre eficiente.
O modelo do público passivo, ingênuo e maleável pode ser (como eu e alguns colegas apontamos neste artigo) útil, dentro de certos limites, e também pode ser politicamente conveniente para quem prefere evitar respostas desagradáveis para questões incômodas (como problemas com a popularidade do governo), mas modelos simplificados deixam de ser úteis quando, em vez de dissipar complexidades desnecessárias, obscurecem a realidade de fundo.
Invasão marciana
O exemplo clássico de “público ingênuo manipulado por fake news” é o da Invasão Marciana de 1938. A história é bem conhecida: em 30 de outubro – Dia das Bruxas – de 1938, o “Mercury Theatre on the Air”, programa dramático de rádio transmitido pela rede CBS, pôs no ar uma adaptação do romance “A Guerra dos Mundos”, de H.G. Wells. O roteiro, escrito por Orson Welles, transportava o enredo de 1897 para o presente, e sob a forma de uma série de boletins jornalísticos: quem sintonizasse o programa no meio, tendo perdido a introdução do radioteatro, correria o risco de confundir a peça com um evento legítimo, sendo transmitido em tempo real.
A versão, digamos, “oficial” do que teria ocorrido em consequência da fabulação radiofônica de Welles diz que multidões correram às ruas em pânico, que serviços públicos e negócio privados foram seriamente prejudicados, que houve uma convulsão nacional. A perspectiva histórica recente, no entanto, sugere um cenário bem diverso.
De fato, a narrativa do desespero generalizado e irracional foi construída depois, pela mídia impressa. Por razões diversas – sensacionalismo para o atrair público, exagero criado no afã de contar uma história mais interessante, desejo de atacar uma mídia concorrente – artigos e notícias de jornal criaram a lenda do grande pânico radiofônico.
Lição número um: o pânico imenso causado por “fake news” foi, ele próprio, “fake news”.
Sim, alguns ouvintes se assustaram. Sim, houve focos de reação irracional. Mas, como relata o historiador A. Brad Schwartz no livro “Broadcast Hysteria”, “a imensa maioria dos ouvintes entendeu a transmissão corretamente, e os poucos que se assustaram não acreditaram passivamente no que vinha pelas ondas do rádio. Muitos tentaram conferir a informação da melhor maneira a seu alcance (...) O ‘pânico’ (...) só começou quando alguns ouvintes passaram a notícia falsa adiante, disseminando medo e confusão”.
Lição número dois: o maior impacto da “fake news” veio não de sua veiculação primária, mas de seu compartilhamento irresponsável.
Virada otimista
Até pouco tempo atrás, o cenário parecia desolador: a desinformação emergia como uma ameaça avassaladora e invencível, que só poderia ser contida ou vencida por medidas de força ou grandes transformações regulatórias. Mas isso vem mudando, à medida que pesquisadores se aprofundam no tema e fazem o resgate das duas lições deixadas pela história da Guerra dos Mundos de 1938.
Existem estratégias viáveis para combater desinformação dentro do debate público. A prevalência de teorias de conspiração talvez não seja um problema tão grande quanto imaginávamos – ou, pelo menos, não pelas razões que imaginávamos: mais importante do que as teorias em si talvez sejam os novos usos políticos que o populismo encontrou para elas.
Crucialmente, a produção e circulação de desinformação pode ser muito mais um sintoma do que uma causa da polarização virulenta e da divisão social profunda que ameaçam as democracias modernas: vêm se acumulando evidências de que as pessoas consomem desinformação mais compatível com aquilo em que já acreditam. Em outras palavras, a desinformação não parece surtir um grande efeito no sentido de alterar ou transformar comportamentos e opiniões: ela “prega para os convertidos”.
Também há alguma evidência de que, por dificuldades metodológicas, alguns estudos que buscam medir o impacto da desinformação podem estar também medindo junto – sem discriminar de forma adequada – o impacto da ignorância, ou da simples falta de informação.
Responsabilidade
Nada disso significa que a desinformação tenha deixado de ser um problema. Por definição, desinformação é uma mentira construída para mudar comportamentos. O fato de ter baixa eficácia, e de seu caráter viral possivelmente ser mais um sintoma do que uma causa dos males sociais a ela associados, é um alívio, mas o combate segue sendo necessário; bem como a responsabilização de agentes maliciosos. Propaganda enganosa é crime, afinal.
A questão que fica em aberto é de intensidade, método e estratégia. Também, a possibilidade de o impacto da ignorância estar sendo subestimado reforça a necessidade de garantir que a informação correta possa circular sempre, e muito, de forma ampla e acessível.
E não devemos perder de vista a segunda lição de 1938: o papel de membros do público – de cada um de nós – na produção dos efeitos da desinformação. Se a eficácia da mentira é baixa, ela precisa primeiro atingir um número enorme de pessoas antes de, realmente, afetar alguém de modo significativo.
Reflexão crítica antes de compartilhar qualquer coisa talvez seja o imperativo ético mais importante trazido pela era digital.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)