As teorias sobre as teorias da conspiração

Dossiê Questão
23 jun 2024
Autor
mulher pedindo segredo

 

Teorias da conspiração não são uma novidade de nossos tempos. Das caças às bruxas medievais aos "Protocolos dos Sábios do Sião", ao longo da História, foram frequentemente usadas para fomentar ou justificar atos hediondos contra pessoas, comunidades ou mesmo etnias inteiras. E apesar de pesquisas recentes indicarem que a crença em teorias da conspiração não está aumentando na população, hoje parecem cada vez mais visíveis e presentes no imaginário coletivo e, pior, no debate político, com potenciais consequências negativas em diversos setores da vida pública.

Diante disso, também vem crescendo o interesse de acadêmicos em torno das teorias da conspiração, suas origens e efeitos, os processos que levam as pessoas a acreditar e agir segundo seus preceitos, e como combater sua disseminação e impactos, especialmente os negativos, na sociedade. Mas enquanto muitos estudos focam na exposição às teorias da conspiração como ponto de partida para a crença e consequentes comportamentos prejudiciais, clamando por uma maior regulação das redes sociais e reforço nos seus mecanismos de moderação, ou propondo estratégias como a inoculação psicológica e a educação midiática para ajudar o público a identificar e resistir ao apelo da desinformação que está na base de sua elaboração, alguns pesquisadores sugerem um modelo sob o qual são as predisposições e características psicológicas, sociais e políticas dos indivíduos que moldam sua exposição e crença em teorias da conspiração específicas, exigindo uma abordagem mais ampla para a compreensão, e impondo obstáculos ao seu efetivo combate.

Desafio que começa pela própria definição do que vem a ser uma teoria da conspiração. Apesar de terem uma história antiga, o estudo sistemático dessas teorias é relativamente recente, e só ganhou maior ímpeto nos últimos 20 anos, lado a lado com uma de suas principais ferramentas de fabricação, a desinformação, e envolvendo uma diversidade de campos, como as ciências sociais, política e da informação, psicologia, história e comunicação.

Em um estudo recente sobre a (in)capacidade das pessoas em identificar suas crenças como teorias da conspiração, por exemplo, a autora, Julia P. Prims, professora-visitante do Departamento de Psicologia da Universidade de Illinois em Chicago (UIC), aponta e usa o que são consideradas três características básicas delas do ponto de vista acadêmico: a de que pessoas ou organizações poderosas estão trabalhando em conjunto para atingir um objetivo (1); às custas de outras pessoas ou da sociedade (2); enquanto tentam manter suas ações e intenções em segredo (3).

Note-se que nada disso diz respeito à sua veracidade ou falsidade. De fato, apesar do caráter mirabolante da maioria das teorias da conspiração, a História está repleta de conspirações reais. Do assassinato de Júlio César (100 AEC - 44 AEC) ao do arquiduque Ferdinando (1863-1914) - e até de alguns papas -, líderes políticos e religiosos foram alvos frequentes de bem-sucedidas maquinações de adversários ou ações de extremistas e descontentes.

Por outro lado, por exemplo, as muitas hipóteses levantadas em torno do assassinato do ex-presidente americano John F. Kennedy (1917-1963), envolvendo de mafiosos à CIA, a agência de espionagem dos EUA, se distinguem pelo seu cunho altamente especulativo, ganhando assim o rótulo de "teoria da conspiração" não apenas por "revelar" uma suposta conspiração, mas também por constituir uma tentativa de entender e explicar um evento, uma "teoria", construída de maneira que vai contra a narrativa de consenso em torno dele.

Desta forma, "teorias da conspiração" também podem eventualmente deixar de ser consideradas como tal, quando se prova que correspondem a conspirações reais. Casos como o conluio da indústria do petróleo para esconder e negar a influência das emissões da queima de combustíveis fósseis pela Humanidade no aquecimento global e mudanças climáticas, a insistência da indústria do tabaco em semear dúvidas sobre a relação de seus produtos com o câncer, ou mesmo sobre programas experimentais de controle da mente da CIA.

Esses casos deixam claro também que, sejam verdadeiras ou fantasiosas, as teorias da conspiração e a crença nelas têm impactos no mundo real. Assim, em artigo para o Annual Review of Psychology publicado no ano passado, Karen Douglas e Robbie Sutton, da Escola de Psicologia da Universidade de Kent, Reino Unido, expandem o conceito de teoria da conspiração a "uma crença que dois ou mais atores coordenaram ações em segredo para atingir um objetivo e que sua conspiração é de interesse público, mas não de conhecimento público" e acrescentam:

"Teorias da conspiração (a) são 'contrariantes', no sentido de que elas contrariam os entendimentos publicamente aceitáveis de eventos; (b) descrevem atos malevolentes ou proibidos; (c) atribuem a ação a indivíduos ou grupos no lugar de forças impessoais ou sistêmicas; (d) são epistemiologicamente arriscadas, no sentido de que apesar de não serem necessariamente falsas ou implausíveis, tomadas coletivamente são mais propensas à falsidade do que outros tipos de crenças; e (e) são construtos sociais que não são meramente adotados por indivíduos, mas compartilhados com objetivos sociais em mente, com o potencial não só de representar e interpretar a realidade, mas de fabricar novas realidades sociais".

 

Onipresença e atenção

Diante disso, as teorias da conspiração emergem como narrativas multipropósito e multiúso, a depender da perspectiva adotada - psicológica, social, política ou comunicacional. São fundamentalmente "ideias", como resume Joseph Uscinski, professor de Ciências Políticas da Universidade de Miami, EUA. E, se parecem cada vez mais onipresentes, é porque estamos dando mais atenção a elas, considera.

"Parte da questão é que estamos prestando atenção agora, e uma vez que as teorias da conspiração estão em nossa mente, passamos a vê-las em toda parte", diz em entrevista à Revista Questão de Ciência (RQC). "Se voltarmos para dez anos atrás, por exemplo, as teorias da conspiração estavam em diversos lugares, mas não dávamos muita atenção a elas, e isso mudou, em parte, devido à cobertura da mídia sobre o tópico".

Segundo Uscinski, a entrada do ex-presidente americano Donald Trump na corrida eleitoral dos EUA em 2015 e o início das discussões do Brexit - a saída do Reino Unido da União Europeia - por volta da mesma época marcam um ponto de inflexão neste sentido, pelo menos nos países de língua inglesa, justamente pelo uso escancarado de teorias da conspiração como estratégia política.

"Outro problema é que nos últimos dez anos vimos muitos líderes políticos em países democráticos se engajarem numa retórica conspiracionista, Trump sendo o mais proeminente deles, mas certamente não o único", destaca. "E como o discurso de líderes políticos atrai mais atenção, pode parecer que temos mais teorias da conspiração por aí, ou que mais pessoas estão acreditando nelas, mas na realidade muito disso é que temos um líder contando teorias da conspiração, e sua retórica ganha muita cobertura da mídia".

De fato, estudo liderado pelo próprio Uscinski sugere que a crença em teorias da conspiração não aumentou nas últimas décadas, pelo menos entre a população americana em geral, e também em alguns países europeus. O levantamento, publicado em 2022 no periódico PLoS One, comparou respostas a afirmações de um conjunto de cerca de 50 teorias da conspiração com perguntas com enquadramento semelhante feitas em pesquisas de opinião remontando aos anos 1960. Os questionários incluíam desde teorias da conspiração mais "novas", como as relacionadas à pandemia de COVID-19 e ao movimento QAnon, a mais "antigas", como os assassinatos de J.F.K. e Martin Luther King, os pousos na Lua ou o ataque a Pearl Harbor, passando por outras muito comuns, como que humanos, ou especificamente o governo dos EUA, já tiveram contato com alienígenas e estão mantendo isso em segredo, as mudanças climáticas são um boato ou que ora a indústria farmacêutica, ora as autoridades sanitárias, ora os profissionais de saúde - ou todos juntos - estão "escondendo a cura do câncer", supostos malefícios da vacina ou inventando ou criando doenças para lucrar.

Os resultados mostraram que embora o endosso a algumas teorias da conspiração tenha crescido entre os períodos analisados, seu número foi bem menor do que os das teorias da conspiração em cuja crença se manteve estável ou diminuiu. Além disso, a magnitude dos aumentos observados foi bem menor do que das quedas, e nenhum deles envolveu teorias da conspiração mais "recentes", como as relativas à pandemia ou o QAnon.

 

Impactos

Isso não quer dizer, no entanto, que as teorias da conspiração não são um fenômeno preocupante, sejam como influenciadoras ou justificativas para comportamentos individuais, como não se vacinar, ou, pior, para decisões de políticas públicas. Uscinski cita como exemplo disso o atual governador da Flórida, estado americano onde mora, o republicano Ron DeSantis. Recentemente, DeSantis promulgou lei proibindo a distribuição e venda de carne produzida em laboratório na Flórida. Segundo ele, para "combater o plano da elite global para forçar o mundo a comer carne produzida em placas de petri ou insetos para alcançar seus objetivos autoritários", encabeçado pelo "Fórum Econômico Mundial", como diz o comunicado oficial divulgado pelo seu governo. Nada a ver, claro, com o apoio político e financeiro que recebe do lobby do setor agropecuário em seu estado, destaca o pesquisador.

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"Minha maior preocupação agora não é tanto com em que o público acredita, embora isso ainda me preocupe em certo grau", diz. "O que me preocupa mesmo são os políticos. Primeiro porque quando um político faz uso de uma teoria da conspiração, ele atrai muito a atenção e amplia o alcance desta mensagem para as massas, muito mais que uma pessoa qualquer nas mídias sociais. E também porque os políticos têm o poder real para agir. Ele (DeSantis) já ia fazer isso (aprovar lei contra a carne artificial)? Sim. Então o que me preocupa agora é que temos uma proibição à ciência, ao progresso na produção de alimentos melhores e mais saudáveis. Uma teoria da conspiração está envolvida nisso, mas não foi a teoria da conspiração que provocou isso. Foi um político, por suas próprias razões e interesses".

Neste ponto, porém, a visão de Uscinski do problema também começa a divergir de alguns de seus colegas estudiosos das teorias da conspiração e da desinformação. Segundo ele, embora muitos estudos na área partam de medições sobre a crença dos participantes em uma variedade de teorias da conspiração, é muito difícil, se não impraticável, medir o quanto de seus comportamentos e decisões são causados por uma teoria da conspiração específica e, assim, seu real impacto na sociedade.

"É muito difícil traçar uma conexão causal entre uma teoria da conspiração, que é apenas uma ideia, e um determinado desfecho", argumenta. "Mesmo quando as pessoas acreditam em uma teoria da conspiração e agem segundo ela, frequentemente seu comportamento é algo que já iriam fazer de qualquer jeito, e a teoria da conspiração é apenas a maneira como racionalizam ou justificam seu comportamento. Então, o impacto de uma teoria da conspiração nunca está exatamente claro".

Segundo o pesquisador, é preciso parar de pensar as teorias da conspiração como agentes e focar nos fatores que levam as pessoas a endossar e propagar estas ideias.

"Creio ser uma boa ideia nos afastarmos de pensar nas teorias da conspiração fazendo alguma coisa, de que fazem as pessoas agir desta ou daquela forma", defende. "Precisamos focar nas pessoas. Algumas pessoas realmente gostam de teorias da conspiração, porque elas acham que é assim que o mundo funciona. E alguns políticos usam teorias da conspiração porque acham que isso os ajuda. Os atores não são as ideias, são as pessoas. Ideias não puxam as pessoas para os buracos do coelho de Alice, as pessoas que pulam nestes buracos. Ideias não agem, pessoas agem".

 

Caindo no buraco de Alice

Mas o que leva pessoas a acreditarem em teorias da conspiração, algumas delas tão estapafúrdias que por vezes é difícil entender como alguém pode crer que tal narrativa é verdade? Embora ainda haja muitas dúvidas e divergências entre os especialistas sobre como e porquê se constroem estas crenças, numa coisa eles parecem concordar: a melhor maneira de prever se uma pessoa acredita em determinada teoria da conspiração é saber se ela acredita em outra teoria da conspiração. Mesmo não relacionada ou até contraditória, como que a princesa Diana foi morta a mando da família real britânica e que ela forjou a própria morte para escapar do escrutínio público.

Este fenômeno levou muitos pesquisadores a se preocuparem com a questão da exposição a teorias da conspiração, ecoando a máxima atribuída ao ministro da Propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels, de que "uma mentira dita mil vezes torna-se verdade". Sob esta perspectiva, o contato com estas ideias abre caminho para a crença que, por sua vez, leva a decisões de comportamento, em um modelo linear de ação.

"Isto é característico de um sistema de crença 'monológico', ou autossustentado, em que explicações sobre os eventos mundiais não são processadas segundo uma deliberação racional das evidências, mas em termos de consistência com uma visão de mundo conspiracionista mais ampla", resume Sander van der Linden, psicólogo social holandês hoje na Universidade de Cambridge, Reino Unido, em estudo publicado em 2015 no qual observou que a exposição a teorias da conspiração sobre o aquecimento global reduziu o engajamento em comportamentos pró-sociais e a aceitação do consenso científico em torno do tema, entre os participantes de seu experimento. "Desta forma, a crença em teorias da conspiração parece ser uma 'bola de neve' em que a crença em uma teoria pode levar rapidamente ao endosso de outras teorias da conspiração, mesmo quando tais teorias são fantasiosas ou mutualmente inconsistentes".

Antes ainda, Karen Douglas e o colega Daniel Jolley, também da Universidade de Kent, já haviam detectado este que Van der Liden chamou de "efeito-conspiração". Em uma sequência de experimentos relatados em estudo publicado em 2014, a dupla verificou que a exposição a teorias da conspiração e crenças antivacina reduziu a intenção de pais em vacinarem seus filhos, e de voluntários em se vacinarem.

"Especificamente, elas (as teorias da conspiração) parecem reduzir a intenção em vacinar ao induzir preocupações indevidas sobre os riscos das vacinas, e aumentando sentimentos de impotência, desilusão e desconfiança (das autoridades)", concluem.

A pandemia de COVID-19 trouxe ainda mais indicações da influência da exposição na construção da crença e adoção de comportamentos de acordo com teorias da conspiração, em especial em um cenário de crise e propagadas via rede sociais. Em artigo publicado ainda em 2021, por exemplo, um grupo de pesquisadores de diversas instituições americanas desenvolveu um modelo argumentando como a pandemia perturbou as estruturas cognitivas e sociais da população, afetando os padrões de uso e consumo de redes sociais, que forneceram uma plataforma alternativa para estas estruturas.

Isto, por sua vez, aumentaria o "contágio" (velocidade de propagação) e a "aderência" (resistência à mudança) a teorias da conspiração, radicalizando crenças. E, à medida que as teorias da conspiração vão sendo reforçadas nestas comunidades online, novas normas sociais são adotadas, levando as crenças conspiracionistas a ações no mundo real, como a recusa em usar máscaras ou se vacinar. Estes comportamentos antinormativos, por sua vez, são relatados de volta nas redes sociais, em um ciclo que amplifica seu alcance. Isto, por fim, atrai a atenção da população em geral para estas teorias da conspiração e as pessoas que as endossam, alimentando uma percepção de que elas talvez não sejam tão limítrofes e potencializando até uma "normalização" destas crenças.

"Mesmo reações que a primeira vista pareçam negativas - como ser confrontado em uma loja por não usar máscara - pode agir como um reforço positivo ao prover tanto atenção quanto a confirmação de que o indivíduo sendo confrontado está tendo um impacto no mundo social em torno dele", escrevem os autores.

 

Predisposições e motivações

Uscinski, da Universidade de Miami, é um crítico mordaz deste foco na exposição:

"Recebo muitas ligações de jornalistas sobre teorias da conspiração que me dizem: 'ei, Joe, acabei de ver esta teoria da conspiração no Twitter'. E eu respondo: 'e daí?'. Aí eles me dizem que ela vai se espalhar e tudo quanto é pessoa vai acreditar. Então eu respondo: 'bom, você viu?'. Eles me dizem: 'sim'. Eu digo: 'então você acredita?'. Eles dizem: 'não, claro que não. Eu não!'. Então eu pergunto: 'e o que faz de você tão especial? Que poder mágico que você tem que te ajudam a resistir a uma teoria da conspiração tão sedutora que todos nós outros, bobos, aparentemente não temos?'".

Diante disso, ele propõe um modelo no qual são predisposições e motivações prévias que levam uma pessoa a endossar esta ou aquela teoria da conspiração e agir sobre ela.

"A questão é que a maior parte das pessoas não está entrando online ou em qualquer outro lugar procurando por ideias com as quais já não concordam", acrescenta o pesquisador. "As pessoas não passam seus dias procurando por teorias da conspiração a não ser que queiram, e mesmo que sejam expostas a uma teoria da conspiração isso não quer dizer que vão ser, de algum forma, persuadidas por ela. As pessoas tendem a procurar e se engajar com ideias que já combinam com suas visões de mundo, e cabe a elas decidir se agem ou não. São suas identidades e visões de mundo que as levam tanto a adotar crenças quanto a agir".

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A observação de que algumas pessoas podem acreditar em teorias da conspiração mutuamente contraditórias também enfraqueceu a noção entre os acadêmicos de que a crença em uma ou mais delas resulta de uma perspectiva monológica do mundo. Como explicação alternativa, emergiu a ideia de que crenças conspiracionistas só se relacionam até o ponto em que são coerentes com um sistema cognitivo de ordem mais alta, no qual satisfazem motivações psicossociais do indivíduo. Estas podem ser caracterizadas como "epistêmicas" (o desejo de entender e explicar o mundo a sua volta, reduzindo a incerteza), "existenciais" (o desejo de controle e segurança) e "sociais" (o desejo de manter uma imagem positiva de si mesmo ou do grupo), conforme detalharam Douglas, Sutton e a colega Aleksandra Cichocka, também da Universidade de Kent, em mais um artigo sobre o assunto, publicado em 2017.

Esta proposta levou o cientista comportamental holandês Jan-Willem van Prooijen, da Maastricht University e da Vrije Universiteit Amsterdam, a investigar os potenciais benefícios psicológicos para os indivíduos de sua crença em teorias da conspiração. Em artigo publicado em 2022, ele argumenta que as teorias da conspiração promovem a construção de uma realidade alternativa que (1) ajuda a defender a identidade e autoestima do indivíduo e seu grupo, ao enquadrá-los como importantes e influentes, (2) permitem racionalizar qualquer de suas crenças ou ações como legítimas, ou até "necessárias", (3) e são "divertidas", no sentido de que dão a oportunidade de desvendar um "mistério" e participar de uma história emocionante. Van Prooijen ressalta, porém, que estes aparentes "benefícios" muitas vezes são de curto prazo, e custosos no longo prazo, tanto do ponto de vista individual quanto coletivo.

"Embora a construção de uma realidade alternativa possa parecer sedutora como aqui descrito, há o risco de a realidade eventualmente alcançar os crentes. Muitos dos efeitos prejudiciais das teorias da conspiração surgem com a promoção de escolhas que podem ter consequências negativas na vida real para eles ou outros", lembra. "Estas considerações sugerem que as teorias da conspiração fornecem um tipo de gratificação instantânea para as pessoas. De certa forma análogas a fumar ou apostar, as crenças conspiracionistas podem ser psicologicamente recompensadoras no curto prazo, mas os crentes e a sociedade pagam um preço por elas no longo prazo".

E apesar de estudos indicarem uma correlação entre a crença em teorias da conspiração e tendências narcisistas, muitos pesquisadores rejeitam a ideia de que exista algo como uma "personalidade conspiracionista", pessoas mais sujeitas a elaborarem ou vulneráveis a aderir a este tipo de narrativas.

"Características individuais, como personalidade ou algum tipo de tendência cognitiva, são insuficientes para entender este tipo de fenômeno", diz Ronaldo Pilati, professor de Psicologia Social da Universidade de Brasília (UnB). "Temos que inserir outros fatores, sobretudo de relacionamento interpessoal e pertencimento a grupos. E temos que olhar estes fatores não de maneira isolada, mas combinada. É a interação de características dos indivíduos, do que eles carregam, do que aprendem e do ambiente que vai estruturar esta crença. É uma questão multifatorial".

Pilati lembra que embora as teorias da conspiração não sejam um fenômeno novo e algumas delas já terem experimentado ampla circulação antes do surgimento da internet e das redes sociais, hoje as tecnologias de comunicação facilitam o encontro com outras pessoas que compartilhem das mesmas ideias, ampliando e reforçando o aspecto social do endosso a estas crenças.

"Esses conteúdos estão vinculados a identidades sociais bastante demarcadas sobretudo graças às estratégias de comunicação mediada e individualizada de redes sociais e grupos de troca de mensagem, e a crença conspiratória é uma forma dele expressar este pertencimento social", acrescenta. "Nos estudos contemporâneos no tema, essa dimensão social de expressão de filiação e identidade grupal tem um papel muito importante, inclusive no recrudescimento da própria crença. Não que identidade social já não tivesse associada a este fenômeno em um momento pré-internet, mas os meios digitais de comunicação permitiram o fortalecimento, e a multiplicação até, das narrativas conspiratórias, e a identificação de outros pares, outros indivíduos que pensam na mesma forma, de uma maneira muito mais fácil, facilitaram esse encontro".

Pilati dá como exemplo um tanto anedótico disso o terraplanismo:

"A ideia de um modelo de uma Terra plana tem mais de dois mil anos na história da Humanidade, mas as vendas de cruzeiros marítimos para viajar até a borda da Terra só surgiram só nos últimos cinco, seis anos. E o que aconteceu nos últimos anos é que essa dinâmica de comunicação permitiu que uma crença conspiratória como essa alcançasse um número grande de pessoas com identidade social suficiente para bancar um cruzeiro destes".

 

Ação necessária ou exercício fútil?

Mas se o terraplanismo é motivo de piada, o mesmo não pode ser dito de outras crenças conspiracionistas. E ainda que acreditar que a Terra é plana e que a Lua é como um "holofote" no céu que nunca foi visitada por seres humanos pareçam ideias "inofensivas", este pode ser um passo de entrada em bolhas informacionais onde circulam teorias mais extremistas e radicais associadas a comportamentos, escolhas e atitudes prejudiciais para o indivíduo e a sociedade, quer fomentem ou sirvam de justificativa ou racionalização para eles.

Assim, muitos pesquisadores da área defendem ações de combate, mitigação ou prevenção à desinformação, ferramenta no cerne de muitas teorias da conspiração. Ultimamente, estratégias como o debunking - o "desmascaramento" de informações como mentirosas ou enganosas via checagem de fatos e outras técnicas jornalísticas e comunicacionais - e o prebunking - como a educação midiática e outros exercícios de inoculação psicológica para capacitar o público a identificar e reconhecer desinformação antes de serem expostas a informações mentirosas ou enganosas - têm ganhado força neste sentido, além de propostas de regulação das redes sociais, como melhorias na moderação e mais transparência dos algoritmos.

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É o que aponta um grupo com alguns dos mais respeitados especialistas no tema em texto de comentário publicado em edição recente da revista científica Nature que destacou o problema das notícias falsas. Tendo como pano de fundo a sequência de eleições previstas para acontecer este ano - incluindo os recém-realizados pleitos para o Parlamento Europeu e as eleições gerais na Índia -, Ullrich Ecker, Jon Roozenbeek, Sander van der Linden, Li Qian Tay, John Cook, Naomi Oreskes e Stephan Lewandowsky alertam para o perigo que a desinformação e as notícias falsas representam para o futuro da democracia. Eles citam como exemplo pesquisa realizada nos EUA em julho de 2023 que mostrou que quase 40% dos americanos - e cerca de 70% dos republicanos - ainda negam a legitimidade das eleições presidenciais de 2020 no país, na qual Trump foi derrotado pelo atual presidente Joe Biden.

Segundo eles, a ascensão de movimentos políticos populistas, associada à crescente desconfiança de parte do público na palavra de especialistas, está deixando os pesquisadores da desinformação numa posição parecida com a que os cientistas climáticos e os especialistas em saúde pública enfrentaram ao falar dos perigos do aquecimento global ou de pandemias como a de COVID-19, respectivamente, sendo "por vezes retratados como árbitros não eleitos da verdade" e acusados de provocar um tipo de "pânico moral".

A questão, argumentam, é que embora a "verdade" não seja um conceito absoluto e algumas alegações não possam ser prontamente estabelecidas como verdadeiras ou falsas, certos fatos e ocorrências são inquestionáveis dos pontos de vista científico e histórico. Não é, por exemplo, porque nossa descrição do Universo não é perfeita - afinal, sabemos que a matéria e a energia escuras existem e podemos observar seus efeitos, mas sua natureza permanece desconhecida - que qualquer hipótese é cabível, como a de que a Terra é sustentada por quatro elefantes sobre o casco de uma tartaruga. O modelo heliocêntrico do Sistema Solar, a cosmologia baseada no Big Bang e a Teoria da Evolução pela Seleção Natural de Charles Darwin (1809-1882) permanecem factuais, por mais que terraplanistas ou criacionistas tentem negar.

"O conhecimento científico não pode ser visto como absoluto, mas isto não implica que as descobertas científicas são arbitrárias ou não confiáveis, ou de que não existem padrões válidos para corroborar alegações científicas", escrevem. "E padrões similares existem para domínios fora da ciência, em que o conhecimento pode ser acumulado via processos como jornalismo investigativo, procedimentos judiciais, investigações empresariais ou inquéritos públicos formais".

Diante disso, o grupo critica a hesitação em classificar determinadas informações como falsas ou enganosas, e que assim seria muito cedo para concluir que um problema existe e requer atenção. Eles lembram que foi justamente disso que se aproveitaram as indústrias do tabaco e, mais recentemente, a dos combustíveis fósseis para atrasar regulamentações e ações de mitigação.

"Os pesquisadores sabem que alegações falsas ou enganosas são mais críveis quanto mais são repetidas, e podem ter impactos mensuráveis em crenças, atitudes e comportamentos, tanto direta quanto indiretamente, ao moldarem narrativas ideológicas, e que correções e checagens de fatos são apenas parcialmente efetivas, mesmo quando as pessoas não têm motivações para se agarrarem a uma peça de informação falsa", afirmam. "Se a falsidade objetiva de uma alegação é conhecida, e a desinformação já foi comunicada, a checagem de fatos e rebater uma alegação específica retroativamente - ou 'debunking' (desmascarar) - é a intervenção de escolha. Mas isso requer que a desinformação alvo seja identificável e falseável, o que limita sua escalabilidade. Por definição, esta intervenção também é reativa no lugar de pró-ativa".

Assim, os especialistas defendem a adoção ações preventivas, que se antecipem à disseminação da desinformação. Entre elas, a inoculação psicológica, que pode ser baseada em fatos ou na lógica. No primeiro caso, o público é alertado para peças de desinformação que já circulam, mas com que ainda não teve contato, ou que devem começar a circular em breve. Eles são como exemplo o que fez o governo do presidente americano Joe Biden ao antecipar que o presidente da Rússia, Vladimir Putin, faria uma série de alegações falsas para justificar a iminente invasão da vizinha Ucrânia por seu país no início de 2022.

Outro exemplo disso é estudo feito por Karen Douglas e o colega Daniel Jolley três anos depois de sua pesquisa inicial sobre o "efeito conspiração" do discurso antivacina. Publicado em 2017, a mesma dupla observou que a exposição prévia a alertas anticonspiracionistas sobre as vacinas anulou a influência que as teorias da conspiração tinham na intenção de vacinar e hesitação vacinal dos pais e voluntários. Mas a intervenção só funcionou se os argumentos contra as teorias da conspiração antivacina foram apresentadas antes da exposição a elas e que, "uma vez que elas estão estabelecidas, estas teorias da conspiração podem ser difíceis de corrigir".

Já a inoculação baseada em lógica pode ser usada quando não há uma desinformação específica a ser rebatida ou desmascarada ou incluir exercícios que instruem o público a identificar quando os argumentos têm falhas lógicas - como falsos dilemas, falsas equivalência ou incoerências internas - ou usam táticas enganosas - como apelos à emoção e raciocínios motivados por ideias conspiracionistas.

São exemplos disso jogos virtuais como o “Go Viral!”, desenvolvido por pesquisadores da Universidade de Cambridge, Reino Unido - entre eles Roozenbeek e Van der Linden, autores dos texto na Nature -, para combater a infodemia em torno da COVID-19, o “Get Bad News", também de autoria de Roozenbeek e colegas, e "Cranky Uncle", criação de Jon Cook - outro autor do texto na Nature - que aborda desinformação sobre o aquecimento global e as mudanças climáticas.

"Outras contramedidas compatíveis com as normas democráticas incluem alertas de acurácia, que buscam focar a atenção dos usuários na veracidade da informação para reduzir o compartilhamento de material enganoso online, e a implementação de elementos de fricção que brevemente atrapalhem uma pessoa quando ela está interagindo com uma informação online para evitar que ela compartilhe conteúdo sem ler", acrescentam. "A promoção de normas sociais (como não fazer alegações em evidências) e intervenções educacionais mais gerais, como ensinar técnicas de verificação de informações e fontes, também são úteis. E apesar de algumas destas intervenções poderem ter efeitos pequenos, serem rechaçadas por plataformas que preferem compartilhamentos sem fricções e requererem um forte engajamento dos consumidores de informação, todas elas enriquecem as ferramentas à disposição dos comunicadores".

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Nem todos especialistas, porém, estão convencidos da ética e eficácia destes tipos de intervenção. E entre os que divergem, mais uma vez, está Uncinski. Segundo ele, educação midiática e ensino de pensamento crítico são iniciativas boas e louváveis, mas pouco vão afetar pessoas cujas identidades e visões de mundo estão investidas em desinformação e teorias da conspiração, constituindo muitas vezes um exercício fútil.

"Sim, há coisas que você pode fazer com que algumas pessoas mudem de ideia sobre uma teoria da conspiração, mas frequentemente estas são pessoas que não creem tão fortemente nelas e provavelmente não iriam agir segundo elas", diz. "Mas para as pessoas que são crentes radicais e acreditam em um monte de teorias da conspiração, e para quem estas crenças são um reflexo de sua identidade, não há muito o que você possa fazer. Ninguém vai fazer ou deixar de fazer uma coisa só porque queremos. As pessoas vão continuar a acreditar no que quiserem. Mude a expressão 'teoria da conspiração' por qualquer outra coisa, 'Deus', 'anjos', 'demônios', 'fantasmas', o 'monstro do Lago Ness', 'Pé Grande', e veja como é difícil fazer isso".

Por isso, Uscinski também é radicalmente contra qualquer tipo de regulação das redes sociais e outras plataformas de comunicação digital. Para ele, isso seria justamente entregar nas mãos de políticos que já estão fazendo uso de desinformação e teorias da conspiração por razões ideológicas e em benefício próprio o controle sobre estes meios e a decisão sobre o que constituiria ou não a "verdade".

"Essencialmente estaríamos dizendo 'ei, governo, apesar de você ser responsável por espalhar muito das teorias da conspiração, queremos que você decida o que é uma teoria da conspiração, quais são verdadeiras ou falsas e quais precisam ser censuradas'. Parece loucura, e é. Por que dar aos políticos o poder de policiar nosso discurso quando muitas vezes são eles que estão espalhando estas besteiras? Para mim esta é uma ideia terrível", argumenta.

De acordo com o pesquisador, a única forma de efetivamente lutar contra as teorias da conspiração seria se inventássemos alguma maneira, uma máquina ou outra coisa, capaz de ler e alterar o pensamento das pessoas. Mas aí, mas uma vez, ficaria a questão de quem controlaria esta máquina e decidiria como e contra o quê ela deveria ser usada. E temos aí um bom mote para mais uma nova teoria da conspiração...

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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