Jung, poder dos astros e poder estatístico

Apocalipse Now
2 dez 2023
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tarot e horóscopo

 

Um livro de 2018, de autoria da astróloga e psicóloga Liz Greene, “Jung Studies in Astrology”, traduzido e lançado neste ano, no Brasil, com título de “Jung, o Astrólogo”, acusa biógrafos e estudiosos da obra do psicólogo suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) de tentar esconder a paixão desse pensador pela astrologia, a fim de blindar sua obra contra acusações de obscurantismo – o que me soa meio ridículo, já que o obscurantismo está lá em perfeita evidência, com ou sem astrologia, algo que críticos como Richard Noll e Don McGowan apontam há décadas.  

Em discussões sobre astrologia, o nome de Jung, criador do sistema conhecido como “psicologia analítica”, uma dissidência da psicanálise freudiana, é citado tanto por defensores quanto por detratores da prática. Isso ocorre porque em seu trabalho é possível encontrar elucubrações teóricas altamente positivas em relação ao poder dos astros, algo que astrólogos agradecem até hoje (a edição de marco/abril de 2021 do Astrological Journal trazia a transcrição de uma conferência sobre as contribuições de Jung à prática), mas também evidência empírica claramente negativa.

Que evidência é essa? Uma tentativa de Jung de buscar aspectos astrológicos harmônicos, nos horóscopos de centenas de casais casados, produziu resultados negativos, que contrariavam as previsões da astrologia – embora o psicólogo tenha tentado reinterpretar os dados de modo, digamos, “criativo”.

 

Sincronicidade

Jung discorre longamente sobre astrologia nos dois principais textos que escreveu a respeito de um de seus filhotes intelectuais favoritos, o conceito de “sincronicidade”: a ocorrência de coincidências significativas.

Num deles, uma palestra proferida na Suíça em 1951, durante uma conferência com outros cientistas e intelectuais, Jung disse que a astrologia “está em vias de se tornar uma ciência”. Ele citou a palestra, dada na mesma conferência, por Max Knoll (1867-1969), um engenheiro elétrico. Jung disse que Knoll “demonstrou que a radiação solar de prótons é influenciada de tal maneira pelas conjunções, oposições e quadraturas planetárias” que há “provavelmente” uma lei natural por trás da astrologia.

No entanto, a palestra Knoll, publicada em “Man and Time: Papers From The Eranos Yearbooks”, não “demonstrou” nada do tipo: nela, o engenheiro discute os possíveis efeitos do ciclo das manchas solares na magnetosfera terrestre e, por tabela, na saúde humana.

Ele afirma que a maioria dos cientistas acreditava que esse ciclo era provocado por mecanismos internos do Sol, mas que “uns poucos acreditam que as manchas solares são causadas por mudanças na configuração dos planetas”.

Como Jung concluiu que a mera constatação de uma posição minoritária equivaleria à demonstração cabal de um efeito determinante? É um mistério. De qualquer modo, hoje em dia, a hipótese de relação entre atividade solar e aspectos planetários não passa de uma obscura nota de rodapé na história da ciência.

Em sua fala, Jung prometia desenvolver o tema da sincronicidade de modo mais detalhado numa monografia. Esse trabalho apareceu em 1952, com o título “Sincronicidade: Um Princípio de Conexão Acausal”.

Definir sincronicidade – “a ocorrência de coincidências significativas” – é bem mais simples do que entender onde Jung queria chegar com a ideia. O subtítulo da monografia dá uma pista: “princípio de conexão acausal”. Jung pretendia incluir, entre os três modos “clássicos” de conectar eventos – no tempo, no espaço, por causa e efeito – um quarto, o sincronístico.

Os eventos que tomam parte em coincidências, ponderava ele, não têm nenhuma ligação causal – isto é, não são causa ou efeito um do outro, e nem são ambos efeitos de uma causa comum. Coincidências significativas, no entanto, são formadas por eventos ligados, exatamente, pelo significado.

O problema disso tudo é, claro, como justificar a ideia de que coincidências “significativas” podem ser algo além de meras coincidências a que atribuímos significados subjetivos. As leis da probabilidade garantem que coincidências fantásticas, cedo ou tarde, acabam acontecendo. Mas Jung diz ter encontrado “coincidências ligadas de modo tão significativo que sua ocorrência concomitante ‘por acaso’ representaria um grau astronômico de improbabilidade”.

O raciocínio oferecido por Jung – sincronicidade é um princípio universal tão valioso quanto a causalidade porque contém significado; e se a sincronicidade é um princípio universal valioso, então o significado tem de ser algo fundamental, cósmico, para além da subjetividade humana – é constrangedoramente circular. Numa tentativa de quebrar o círculo vicioso, trazendo dados empíricos, Jung apela para a astrologia e para a parapsicologia.

 

Cartas na mesa

No caso da parapsicologia, ele se apoia no trabalho de Joseph Banks (J.B.) Rhine (1895-1980), o fundador da moderna pesquisa sobre fenômenos paranormais e o criador da expressão “percepção extrassensorial”, cujo teste clássico é a tentativa de um voluntário adivinhar qual será a próxima carta a sair de um baralho especial ou, após a carta ser retirada, “ler”, na mente da pessoa que está olhando para ela, qual a figura apresentada. Rhine afirmava que alguns de seus voluntários obtinham séries de acertos muito maiores do que seria esperado por mero acaso. Em pleno ano de 1952, Jung afirmava que “até o presente, nenhum argumento crítico que não possa ser refutado foi levantado contra esses experimentos”, o que já na época era patentemente falso.

Rhine iniciou seus experimentos nos Estados Unidos, ao lado de Carl Zener, em 1930, e já em 1938 o psicólogo Joseph Jastrow publicava, na revista “American Scholar”, uma crítica demolidora de todo o trabalho, expondo falhas metodológicas gravíssimas e apontando o fracasso de outros pesquisadores em reproduzir os resultados. As críticas de Jastrow apenas se confirmaram nos anos e décadas seguintes, à medida que foi ficando cada vez mais claro que os “sucessos” relatados por Rhine eram fruto de protocolos falhos, controles inadequados e fraude, por parte tanto de seus colaboradores quanto de alguns dos voluntários testados.

Ignorando tudo isso, Jung propunha que o aparente sucesso dessas pesquisas indicava não só sincronicidade em ação, como ainda sugeria que o inconsciente humano era, de alguma forma, capaz de captar, ou talvez influenciar, as emanações dessa misteriosa rede de sorte e significado que rege o fenômeno: é como se determinados estados mentais, principalmente os movidos por entusiasmo e expectativas positivas, permitissem a alguém “surfar” nas ondas sincrônicas.

Tudo muito interessante, mas o fato é que hoje em dia, exceto por um pequeno grupo de devotos entusiastas, ninguém mais leva os resultados de J.B. Rhine a sério.

 

Horóscopos

Para uma segunda prova empírica de sincronicidade, o suíço foi buscar a astrologia. O psicólogo suíço deu-se ao trabalho de coletar três conjuntos de horóscopos de casais casados – um contendo 180 pares, outro 220 e o último, 83 – e submetê-los a uma série de análises estatísticas, elaboradas por um amigo matemático, em busca de algum sinal da predominância de aspectos astrológicos favoráveis à união amorosa, envolvendo o Sol, a Lua, os planetas Vênus e Marte e as posições ascendente e descendente do mapa astral.

Além de estudar os casais casados, ele também usou os horóscopos para formar pares ao acaso, na expectativa de que os aspectos astrológicos das duplas formadas aleatoriamente se distinguissem dos presentes nos casais reais.

O resultado? Quantos mais horóscopos eram adicionados, mais as frequências dos aspectos encontrados se aproximavam das esperadas por puro acaso. O que constitui uma prova prática de um princípio conhecido da teoria das probabilidades, a chamada Lei dos Grandes Números: quanto maior o número de casos analisados, mais as frequências observadas na amostra se aproximam das frequências do mundo real. É por isso que testes científicos de medicamentos e pesquisas de opinião pública, por exemplo, tornam-se mais confiáveis à medida que aumenta o número de voluntários (ou de entrevistados).

Em outras palavras: Jung detectou um efeito estatístico perfeitamente normal e, por tabela, demonstrou que os aspectos astrológicos são irrelevantes para o matrimônio.

“Nossa investigação mostrou que não apenas os valores de frequência se aproximam da média com o aumento do número de casais, mas que quaisquer pareamentos ao acaso produzem proporções estatísticas similares”, escreveu ele, em seu tratado sobre sincronicidade. “No caso de números grandes, as diferenças entre os valores de frequência dos aspectos favoráveis ao casamento, entre casais casados e pares não casados desaparecem por completo”.

Numa manobra de contorcionismo intelectual explícito, Jung houve por bem fixar-se no fato de que, no início da análise, dois aspectos astrológicos positivos haviam se destacado, causando uma impressão momentânea de que a expectativa astrológica seria, afinal, confirmada.

 

Probabilidade

Os números “imitaram, acidentalmente, a resposta ideal segundo a astrologia”, escreveu ele, embora o efeito tenha desaparecido com a inclusão de mais e mais casais. Para o psicólogo, isso mostrava que “existiu uma conivência mútua entre o material e o estado psíquico”. 

No entanto, há outra explicação, infelizmente muito mais comezinha do que alguma inefável “conivência” psíquica: a amostra inicial, pequena, produziu uma coincidência sugestiva, que foi eliminada à medida que mais casais chegavam, exatamente como a teoria ortodoxa das probabilidades prevê.

É por causa do risco de amostras pequenas produzirem falsos positivos que o “poder estatístico” de um estudo – que tende a crescer à medida que mais voluntários são inscritos – é definido como a chance de se detectar um efeito real, ênfase em “real”. Um efeito significativo encontrado numa amostra muito pequena sempre é suspeito; não há nada esotérico nisso. Postular um fenômeno extra (“sincronicidade”) para explicar algo do tipo é tão necessário quanto postular duendes para explicar a força da gravidade.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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