Se você tem um modelo de negócio que vende algo que parece bom demais para ser verdade, ou tem uma pegada meio hipster, ou oferece uma boa desculpa para filmar peças publicitárias em locais exóticos, pode ser uma boa ideia incluir “produção de série documental para a Netflix” no seu portfólio de marketing. A gigante do streaming já forneceu doses generosas de tempo de tela para Gwineth Paltrow vender suas bobagens estético-esotéricas, para Graham Hancock promover as ideias de seus livros a respeito de supercivilizações do passado e, agora, abre espaço para que o empresário Dan Buettner empurre goela abaixo do público sua receita de longevidade, supostamente baseada na sabedoria das chamadas “zonas azuis” (que não são as de estacionamento).
A série documental em quatro partes “Como Viver Até os 100”, produzida e apresentada por Buettner (fundador e CEO da companhia Blue Zones LLC), estreou como uma das mais assistidas do serviço e, embora já tenha caído no ranking de audiência, ainda consta como uma das “mais curtidas”. “Zonas Azuis” (ou “Blue Zones”, expressão da qual a firma de Buettner possui copyright e marca registrada) seriam regiões do planeta onde a expectativa de vida é extraordinariamente alta.
A Blue Zones LLC vende produtos (incluindo chás de ervas, mel orgânico, camisetas e assinatura de aplicativos de cardápio e dieta) baseados naquilo que Buettner supostamente aprendeu visitando esses locais. A série da Netflix é um longo passeio turístico pela Ásia e pelo Mediterrâneo, com paradas esporádicas na América Central e nos Estrados Unidos, ao longo do qual o empresário entrevista idosos felizes, prova comidas (e vinhos) artesanais e, dramaticamente, “deduz” os segredos da longevidade – incluindo, claro, os chás de ervas e o mel orgânico que você pode comprar no site dele.
(Buettner não diz no documentário que sua empresa fatura vendendo vários dos alimentos que ele recomenda, diante da câmera, como “segredos” da longevidade, mas não posso dizer que encontrá-los na lojinha do site Blue Zones tenha sido lá uma grande surpresa.)
Errado e errado
Conflitos de interesse à parte, toda a abordagem sobre “zonas azuis” – procurar lugares onde as pessoas vivem muito, descrever seus estilos de vida, perguntar por que acreditam que vivem tanto, e tomar essas informações como conclusivas – é logicamente inválida: representa apenas uma repetição da falácia do viés de sobrevivência, a falsa ideia de que é possível encontrar relações de causa e efeito em sistemas complexos, principalmente sociais, de saúde e econômicos, fazendo “engenharia reversa” de casos de sucesso. Citando algo que escrevi em um artigo anterior:
“Viés de sobrevivência” é um erro muito comum na literatura de negócios e autoajuda, e representa uma influência importante na capacidade que falsas curas e terapias alternativas têm, de impressionar pessoas e angariar adeptos: consiste no hábito de listar casos de desfecho feliz (ou, na linguagem dos negócios, “cases de sucesso”) e tentar abstrair dali o que teriam em comum — qual seria o “fator X” por trás do bom resultado.
O problema com essa abordagem é que, ao selecionar apenas quem já obteve êxito (quem já “sobreviveu”), ela deixa de olhar para quem também talvez tenha o tal “fator X”, mas deu com os burros n’água. O viés pega o que talvez não passe de coincidência (ou sorte) e fantasia de mérito.
Outro modo de entender isso é prestar atenção nas respostas que pessoas de sucesso dão para explicar como conseguiram progredir na vida. A maioria vai mencionar coisas como “otimismo”, “visão”, “trabalho duro”. Poucas se lembrarão de citar fatores, em geral, muitíssimo mais importantes: acaso, acesso a amigos influentes, apoio financeiro da família.
O viés de sobrevivência é epidêmico no mundo dos negócios, e há tempos que inspira uma indústria de best-sellers na área de saúde. O caso mais absurdo e cruel talvez seja “Radical Remission”, de Kelly Turner, que descreve uma “pesquisa” baseada em entrevistas com pessoas que se recuperaram “milagrosamente” de câncer. Na introdução, Turner escreve:
“Essa pessoa realmente superou o câncer avançado sem usar a medicina convencional? Se sim, por que não apareceu na primeira página de todos os jornais? Mesmo que tivesse acontecido apenas uma vez, ainda assim foi um evento incrível. Afinal, essa pessoa, de alguma forma, encontrou a cura para o câncer”.
Dá para ver o que a autora fez aí? “Afinal, essa pessoa, de alguma forma, encontrou a cura para o câncer”. Sem nenhum tipo de explicação, desculpa, evidência ou argumento, descartam-se milhares, ou milhões, de possibilidades em potencial – de erro de diagnóstico a pura sorte, passando por algum tratamento convencional que finalmente mostrou resultado, predisposição genética e um monte de outras coisas – para deixar apenas uma, curiosamente a que mais ajuda a vender livros: foi algo que a pessoa fez, que sabe que fez, que contou para mim e que posso ensinar a você.
Vazio do ponto de vista racional, é também um discurso especialmente cruel, porque deixa os pacientes que não alcançam “remissão radical” carregando a culpa pelo próprio sofrimento, seja porque não quiseram aprender os segredos, seja porque, tendo-os aprendido, não tiveram força de vontade ou competência para usá-los.
Ética e mídia
A disposição da Netflix em oferecer, sem alertar o espectador, plataforma para produtos audiovisuais que não passam de propagandas maldisfarçadas de produtos comerciais levanta questões éticas. O serviço de streaming não é uma plataforma jornalística, onde a separação completa entre conteúdo editorial (publicado por, supostamente, servir ao interesse público) e conteúdo publicitário (publicado porque serve ao interesse do anunciante) seria de rigor, mas misturar infomerciais a documentários de verdade só serve para rechear os bolsos dos espertos ao custo de, aos olhos do público em geral, manchar a reputação da categoria “documentário” como um todo.
Mas a pressão por esse tipo de “flexibilidade” ética se faz sentir muito além do universo do streaming. Mesmo nas mídias jornalísticas, o tradicional muro de separação entre o editorial e o publicitário vem sendo sistematicamente minado por sapadores que sempre se apresentam como tendo as melhores das intenções.
Na grande imprensa, que costuma (ou costumava) aspirar a um certo grau de profissionalismo e seriedade, até algum tempo atrás, as chamadas matérias pagas – textos com cara de jornalismo, mas produzidos com pauta e verba de anunciantes – costumavam ser publicadas dentro de grossas molduras, encabeçadas pela frase "INFORME PUBLICITÁRIO" em negrito, e com uma identidade visual claramente distinta do restante do jornal. Algumas empresas tinham "redações comerciais", equipes encarregadas de produzir conteúdo sob encomenda para anunciantes. Fruto de necessidade econômica, a coisa toda era vista como um embaraço.
Hoje em dia, no entanto, vivemos uma era de glamourização da matéria paga: as redações comerciais viram "núcleos de projetos especiais". Sumiram as molduras pretas. "INFORME PUBLICITÁRIO" agora aparece, quando aparece, em letras miúdas e em cantos insuspeitos. As distinções gráficas – tipo de letra, desenho de página, identidade visual – entre o material pago e o editorial tornam-se cada vez mais sutis.
E a matéria paga nem se chama mais “matéria paga”. Depois de passar por um lifting pós-moderno, incluindo a aplicação de um botox ideológico que paralisa os músculos da vergonha facial, virou “publieditorial” ou, para os íntimos, “publi”. Notemos que o neologismo “publieditorial” funde exatamente as duas esferas que a ética jornalística da velha guarda mandava manter separadas – a “publicidade” e o “editorial”.
Se nem a imprensa tradicional leva mais a sério o dever de distinguir claramente entre o interesse público e o interesse comercial, talvez fosse demais esperar que as jovens plataformas online tivessem algum escrúpulo.
Mas um mundo onde infomerciais e publieditoriais misturam-se ao conteúdo legítimo sem distinção nenhuma, ou com distinções tão sutis que se reduzem a exercícios de escárnio e má-fé, é um mundo onde o público acaba sendo deseducado em seu consumo de mídia. Essa deseducação, por sua vez, pode exacerbar tanto a credulidade ingênua (quando a publicidade é confundida com notícia) quanto o cinismo conspiratório (quando a notícia é confundida com publicidade). Os dois caminhos tornam a sociedade mais vulnerável a toda forma de manipulação.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)