A ascensão da conspiritualidade

Apocalipse Now
22 jul 2023
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espiritualidade

 

A imprensa americana não sabe bem o que fazer com Robert F. Kennedy Jr. Tratado, durante décadas, como uma figura folclórica, incômoda e marginal da cena política, um propagador de teorias malucas de conspiração e ativista antivacinas que, para constrangimento de muitos, carrega o nome “Kennedy” e o legado de ser filho do ex-procurador-geral e ex-candidato à Presidência Robert F. Kennedy, assassinado em 1968, RFK Jr. emergiu, nas últimas semanas, como adversário do presidente Joe Biden na disputa pelo direito de ser o candidato do Partido Democrata na eleição presidencial do ano que vem.

Pesquisas de opinião iniciais mostravam Kennedy com apoio significativo dentro do partido – em alguns casos, com até 20% das intenções de voto. Isso bastou para que RFK Jr. se tornasse tema de longos perfis publicados em revistas de prestígio, como Atlantic e New Yorker, e de repente passasse a ser “levado a sério” (como líder político viável ou ameaça, dependendo do ponto de vista) por gente que até então só pensava nele, se é que pensava, como uma nota de rodapé tragicômica na história de uma família ilustre.

Analistas políticos logo ponderaram que ainda é muito cedo para avaliar a viabilidade real de Kennedy como candidato à Presidência, e é possível que o escrutínio recente que tem recebido da mídia – por exemplo, relembrando seu papel como um dos instigadores da onda de hesitação vacinal que acabou levando a um surto de sarampo na ilha de Samoa, e que deixou mais de 80 mortos, ou seus recentes comentários racistas e antissemitas sobre a origem da COVID-19 – faça sua base de apoio mais ampla, fora das margens paranoico-conspiracionistas da sociedade, derreter.

Isso, pressupondo que o sentimento paranoico-conspiracionista ainda esteja restrito às “margens”.

 

MAGA sucesso

Há um debate em andamento sobre se a onda inicial de apoio a RFK Jr., tal como detectada pelas pesquisas de opinião do mês passado, refletem adesão a sua visão peculiar do mundo ou uma mistura de reconhecimento de marca (o cara é um Kennedy, afinal) com sentimento genérico antissistema, o impulso, cada vez mais comum no mundo atual, de apoiar o “outsider” só porque é um “outsider”, danem-se os detalhes.

A discussão fica complicada porque não é fácil definir a “visão peculiar de mundo” do pré-candidato. RFK Jr. destila paranoia contra a indústria farmacêutica e o grande capital, mas também defende um Estado pequeno e um mercado desregulamentado, porque (como tuitou em abril), “as regras são escritas por bilionários e grandes corporações”. Já disse também que criptomoedas são “uma antepara contra o totalitarismo”, slogan típico da direita libertária.

Seu histórico de ataques a vacinas, intensificados durante a pandemia recente (que, segundo ele, foi “exagerada” para promover a venda de imunizantes) e sua queda por “fatos alternativos” fazem dele o democrata favorito do movimento MAGA (“Make America Great Again”) e dos entusiastas da teoria de conspiração QAnon, dois grupos intimamente ligados ao ex-presidente republicano Donald Trump. Magnatas de tecnologia como Elon Musk e o cofundador do Twitter Jack Dorsey já manifestaram simpatia pelo candidato.

 

Espiritualidade conspiratória

Assim como o jornalista Tucker Carlson, RFK Jr. abraça teorias de conspiração e apela para a estratégia retórica de “apenas fazer perguntas” (que já trazem as respostas embutidas, claro) em torno de temas que têm apelo tanto para a esquerda quanto para a direita. Um estudo europeu publicado em 2021 apontava que teorias de conspiração “de cima para baixo” – que estipulam a existência de elites secretas manipulando os eventos – tendem a ser abraçadas em ambos os extremos do espectro político (já as “de baixo para cima”, que teorizam a existência de minorias subversivas, são patologias mais restritas à mentalidade conservadora).

Ao mancomunar Bill Gates (capital privado) e Anthony Fauci (poder do Estado) em seus delírios de conspiração, Kennedy adquire o potencial de agradar às duas pontas da ferradura, mas sua base de apoio no Partido Democrata tem raízes mais profundas, envolvendo o fenômeno que os autores Derek Beres, Matthew Remski e Julian Walker chamam de “conspiritualidade”, a fusão da mentalidade conspiratória e de uma série de paranoias típicas da extrema-direita com a sensibilidade “New Age”, tão comum e popular entre setores da esquerda.

Beres, Remski e Walker mantêm um podcast com o título “Conspirituality”, mesmo do livro que lançaram neste ano e que contém um capítulo sobre RFK Jr. Os três tiveram experiências pessoais no universo do yoga e das curas naturais/detox que os deixaram convencidos de que esse universo abre janelas para formas de narcisismo que podem estimular um autoritarismo e uma mentalidade fechada, de pensamento único, que são quase fascistas, além daquilo que chamam, ironicamente, de “eugenia gentil” – afinal, se o estado do corpo reflete a saúde do espírito, um corpo tenso, ou fora de forma, ou fora do padrão...

 

Karma

Os autores escrevem que “enquanto os entusiastas da New Age são atraídos por explicações baseadas em conspiração para entender por quê não existem evidências que apoiem suas crenças paranormais ou de saúde alternativa, teóricos da conspiração flertam com a ideia de que denunciar e derrotar as forças do mal inevitavelmente levará a uma utopia”. E mais adiante: “A New Age exalta valores que o conspiracionismo pode facilmente capturar”.

Beres, Remski e Walker enumeram três temas comuns da espiritualidade alternativa – a lei do karma, a ideia de que a realidade percebida é um “véu de ilusão” e a interdependência holística entre todas as coisas e seres vivos – podem muito facilmente degenerar nos clichês conspiratórios de que nada acontece por acaso, estamos sendo enganados o tempo todo e existem padrões ocultos por trás de tudo.

A mentalidade conspiratória, por sua vez, alimenta-se facilmente das obsessões, presentes no universo New Age e no da extrema-direita, por pureza – dos alimentos, do meio ambiente, das emoções e do corpo, num caso, e do sangue, do solo e da pátria, no outro –, obsessões que, também com facilidade, acabam se confundindo entre si (“sangue limpo” pode ser tanto uma referência à alimentação “correta” e a procedimentos “detox” quanto à “pureza” racial, por exemplo). Transformada em fetiche, a “pureza” vira trampolim para sentimentos antivacinas – resultando em aberrações grotescas como o mercado de sêmen de homens não vacinados.

 

Tendência?

Robert F. Kennedy Jr. se posiciona no olho desse tornado semântico-simbólico-ideológico, pronto para tentar aproveitar os ventos da paranoia purificadora antissistema, não importa de que lado venham, se dos antivaxxers namastê, dos supremacistas brancos de academia ou dos libertários de bitcoin. Dada a influência que os modismos de marketing político da América do Norte têm exercido sobre a cena brasileira – o bolsonarismo basicamente clonou o populismo trumpista e as guerras culturais dos Estados Unidos em solo nacional –, será interessante ver se alguma liderança local tentará usar RFK Jr. como gabarito.

A cultura da “conspiritualidade” existe no Brasil, mas não parece contar com números ou relevância comparáveis aos que tem no mundo desenvolvido. Aparências, no entanto, podem enganar. É difícil medir a força de um grupo até que ele de fato se reconheça como tal e se organize para atuar politicamente. Beres, Remski e Walker lembram que o mundo “conspiritual” é essencialmente um mundo de comércio, girando em torno da venda de cursos, seminários, sessões, livros, vídeos, terapias, suplementos etc. Esse mercado com certeza já está bem estabelecido no Brasil.

A conspiritualidade é insidiosa porque pode usar como chamariz preocupações legítimas (com questões ambientais ou com os abusos da “Big Pharma”, para ficar em apenas dois exemplos), mas no lugar de debates sérios, soluções reais ou ações eficazes oferece paranoia, pressão tribal e fascismo “gentil”.  Se a candidatura de RFK Jr. se concretizar, ou mesmo se apenas o fenômeno de mídia se sustentar, é bom ficarmos de olho aberto para plagiadores locais.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto).

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