Foi um dos fios mais inteligentes e interessantes que já vi no Twitter e, lerdo que sou, não me ocorreu, na época, salvá-lo (desde lá aprendi a lição, e agora tenho um enorme bookmark de fios interessantes, salvos até quando Elon permitir). Faz vários meses – talvez, até um ano. Minha negligência na época me impede de dar o devido crédito agora, mas o conteúdo foi tão marcante quer creio ser capaz de fazer uma paráfrase razoável.
O tema era o ciclo das falsas polêmicas sobre liberdade de expressão nas redes sociais. O assunto específico escolhido para servir de exemplo, racismo. O fio construía uma troca hipotética – eu diria, arquetípica – de tuítes entre alguém que Só Está Fazendo Perguntas (SEFP) e um Especialista Gente Boa (EGB). Ia assim:
SEFP: “Ei, será que desigualdade social não é causada por diferenças genéticas?”
EGB: “Boa pergunta. O assunto já foi muito bem estudado pela ciência, e a resposta é não, não é. Se quiser saber mais, tem esses artigos aqui e esses livros também”.
SEFP: “Mas eu realmente fico me perguntando se certas raças não são mesmo mais inteligentes ou trabalhadoras...”
EGB: “Cara, você deu uma olhada na literatura que sugeri? Tá tudo explicado lá. Essa questão já foi bem respondida, e já faz um tempão. Biologicamente, raça é um negócio que nem existe na espécie humana”.
SEFP: “Tudo bem, mas e se os negros ocupam menos posições importantes na academia porque têm menos genes de inteligência? Dá pra ter 100% de certeza que não é por isso?”
EGB: “Você entendeu alguma coisa do que eu disse? Desculpe, mas essa sua insistência em bater sempre na mesma tecla está começando a soar como uma obsessão meio racista”.
SEFP: “ELE ME CHAMOU DE RACISTA SÓ PORQUE OUSEI QUESTIONAR O DOGMA DO POLITICAMENTE CORRETO!”
Momento em que a brigada do bom-mocismo dialético materializa-se para pregar as virtudes do “livre debate”, pontificar que “não existe pergunta ruim”, reafirmar que “perguntar não ofende”, que “todo questionamento é bem-vindo”e se joga na defesa da pobre vítima da violência “woke”, alvo de um ignominioso ataque ad hominem por parte dos que querem censurar a liberdade de expressão na internet.
O exemplo canônico envolve racismo, mas dá para substituir por “resultado das eleições” (só mudando os detalhes da conversa e trocando o “racista” por “fascista” na última linha do pobre Especialista Gente Boa), por exemplo.
A estratégia geral foi desenvolvida e apurada durante décadas de debates públicos entre cientistas e negacionistas das mais diversas plumagens – criacionistas, principalmente, mas também negadores do aquecimento global e eugenistas-racistas-supremacistas – e busca extrair capital retórico e político da predisposição geral do público de ver com simpatia e boa vontade a figura do questionador curioso e inocente.
O problema, claro, é que nesse caso o questionador não é nem “curioso” (se fosse, iria buscar os textos recomendados antes de voltar à carga, e depois traria novas dúvidas, em vez de apenas reformular as iniciais) e tampouco “inocente” (seu objetivo é marcar pontos retóricos, não chegar à verdade).
E que estratégia é essa? Em linhas gerais, consiste em repetir à exaustão o que é, em essência, a mesma pergunta, seguidas vezes, mudando apenas a forma da frase e o vocabulário; ignorar sempre as respostas objetivas e as referências oferecidas; lançar questões que, embora irrelevantes para o ponto central da conversa, causam distração e demandam respostas trabalhosas; fazer cobranças impossíveis (“certeza absoluta”, “100% de segurança”) e, com isso, alimentar falsas controvérsias.
Se o “questionador inocente” conseguir irritar o especialista até o estágio em que ele perde a paciência, ganha pontos extras. Essa caixa de ferramentas retóricas ajudou a indústria do tabaco a manter a imprensa dando “outro lado” em reportagens e notícias sobre câncer de pulmão por quase 30 anos, os criacionistas a promoverem o slogan “ensine a controvérsia” vivo por décadas e a tornar análises racistas de dados enviesados, como as apresentadas no livro “A Curva do Sino”, parte de conversas sérias entre adultos que se imaginam bem informados.
No mundo das redes, o mesmo ferramental tem seus efeitos potencializados e amplificados. Confrontos que antes tinham lugar em auditórios acadêmicos ou na literatura de nicho (revistas de popularização da ciência, periódicos especializados) e com uma eventual exposição pública quase estática e de ciclo longo (em geral, sob a forma de artigos na imprensa generalista, com alegações, réplicas e tréplicas sucedendo-se em intervalos de dias, semanas ou até mesmo meses) agora acontecem em tempo real, instante a instante, diante dos olhos de uma audiência que cai de paraquedas na refrega, sem ter tido acesso ao histórico ou ao contexto mais amplo das questões em debate.
Em inglês, o conjunto de técnicas recebeu o nome jocoso de “JAQing off”, um trocadilho entre a sigla JAQ (“Just Asking Questions”, ou “Só Perguntando”) e uma expressão chula para masturbação: “jerking off”. O que faz todo sentido.
A diferença entre a curiosidade honesta e o JAQing off é que a primeira busca a verdade, a segunda tem por objetivo reforçar os preconceitos da claque: a curiosidade desonesta é sempre uma performance para animar e divertir os fãs. Um objetivo extra é fazer o “outro lado” parecer intransigente, malvado e dogmático. O atleta do JAQing off goza – aos gritos – cada vez que é bloqueado numa rede social.
Lidar de modo eficaz com essa turma não é trivial. Do mesmo modo que o negacionismo científico e o marketing político aprenderam a subverter a gramática do jornalismo – transformando práticas e convenções estabelecidas para melhor informar o público, como a busca por pluralidade e neutralidade, em instrumentos de desinformação –, o masturbador retórico captura princípios normalmente associados à transparência e aos bons modos para gerar opacidade e grosseria.
Ele é capaz de fazer isso porque, antes mesmo de a conversa começar, já traz violados esses mesmos princípios, pois obscurece seus motivos (que não são diálogo ou esclarecimento, mas propaganda) e está disposto a desrespeitar as regras mais fundamentais do diálogo produtivo, ao ignorar ou distorcer deliberadamente qualquer informação ou cadeia de inferências que ponha seus preconceitos em xeque.
O melhor a fazer é não engajar – evitar a armadilha. Caso isso não seja possível, é importante lembrar que um debate com um adepto do JAQing off não é um diálogo, mas uma performance: ele está tentando usar você para marcar pontos retóricos, sinalizar virtude (seja lá o que se passa por “virtude” no clube dele) e atrair a simpatia dos desavisados. Se o enrosco é inevitável, o mínimo a fazer é aproveitar que o sujeito está lá e usá-lo também.
Num artigo famoso publicado em Nature Human Behavior, Cornelia Betsch e Philipp Schmid discutem, entre outras coisas, uma estratégia de debate que chamam de “technique rebuttal”, que consiste em expor a desonestidade intelectual do oponente, apontando para os espectadores os truques sujos, as manobras retóricas, etc.
“Technique rebuttal”, mostra o estudo, tem o mesmo potencial de eficácia que “content rebuttal” (isto é, desmentir as alegações do adversário com os fatos corretos). Numa situação em que o negacionista não faz alegações diretas, mas apenas perguntas e insinuações, “technique rebuttal” parece ser o melhor jogo.
Nada disso é contrário aos ideais da livre investigação, da dúvida sistemática e da liberdade de expressão, sem os quais a ciência é cerceada, a política, tiranizada e a cultura, sufocada. Perguntas existem dentro de contextos e muitas vezes embutem pressupostos, codificam pontos de vista, evocam emoções, telegrafam a resposta desejada ou, maliciosamente, impedem qualquer tipo de resposta razoável (“já parou de bater na sua mãe?”). Esperar que cientistas e comunicadores ignorem ou abstraiam tudo isso e aceitem sempre tratar toda e qualquer questão como “só uma perguntinha inocente” é muita ingenuidade – ou má-fé.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)