Ao longo da última semana saíram do forno (ou da gráfica, ou do servidor) as edições em papel e digital do terceiro livro que assino em coautoria com Natalia Pasternak desde que nossas vidas se uniram há cinco anos – desta vez, depois de “Ciência no Cotidiano” e “Contra a Realidade”, o título é “Que Bobagem!”. Nele, tratamos de uma dúzia de sistemas/doutrinas/crenças que têm em comum a característica de fazer afirmações falsas sobre como o Universo, ou ao menos o canto que o Homo sapiens ocupa nele, funciona.
Algumas são pseudociências clássicas. Outras se revestem de ar místico ou artístico. Outras ficam pulando de lá para cá: são misticismo ou arte quando recebem críticas da ciência, são científicas quando chega a hora de se vender para os clientes. Mas todas oferecem retratos da realidade física e biológica que contradizem os fatos do mundo, tal como estabelecidos pela melhor ciência disponível. Retratos enganosos que, se levados a sério, podem causar graves prejuízos financeiros, emocionais e de saúde. São mapas que mantêm o viajante andando em círculos ou, pior, levam-no à direção oposta à desejada.
Exemplos das ficções apontadas e desnudadas no livro incluem o efeito potencializador das diluições infinitesimais da homeopatia, o inconsciente psicodinâmico da psicanálise, a energia vital do reiki, os vestígios arqueológicos dos deuses astronautas e a influência astrológica sobre a personalidade humana. Não faz muito sentido repetir, neste espaço, os fatos e argumentos que permitem afirmar que todas essas coisas são ficções – se fosse possível, não teríamos tido de escrever quase 400 páginas –, mas pode valer a pena discutir um pouco as escolhas envolvidas no projeto.
“Polêmico”
É claro de sabemos que se trata de um livro “polêmico”, e em pelo menos quatro sentidos.
No primeiro, mais óbvio, muito do que se diz lá vai a contrapelo do senso comum e, até mesmo, de certos consensos acadêmico-intelectuais. E já que usei “contrapelo”, aqui vai outro clichê: é um livro que tira o leitor da zona de conforto. Não fazemos isso por manha, birra ou para chocar a burguesia, mas porque é necessário. Pessoas que estão navegando suas interações com o mundo a partir de mapas ruins e bússolas desajustadas merecem algum aviso, mesmo que os mapas e bússolas sejam de um tipo normalmente protegido da crítica mais incisiva por aquele misto de senso de conveniência social com preguiça intelectual que às vezes passa por boas maneiras.
No segundo, derivado do primeiro, estamos expondo, numa plataforma de alta visibilidade, fissuras e fraturas sérias nas bases teórica e prática de sistemas que são fonte de renda ou de prestígio social (ou de ambos) para muita gente. Parafraseando aqui a epígrafe de nosso segundo livro, “Contra a Realidade”, é difícil convencer alguém de uma verdade quando seu ganha-pão depende, crucialmente, de que a verdade seja ignorada. Sobre isso, o melhor a dizer é que não inventamos nada – todas as afirmações factuais feitas em “Que Bobagem!” são baseadas em trabalhos científicos de qualidade e vêm referenciadas. As opiniões e conclusões oferecidas, por sua vez, decorrem desses fatos. Também, é no mínimo justo que o público tenha acesso a uma avaliação crítica das terapias e sistemas discutidos no livro, que oferece uma visão alternativa ao bombardeio de promessas mirabolantes e autoelogios rasgados com que os promotores, defensores e vendedores dessas ideias saturam o ambiente de mídia e as redes sociais. “Que Bobagem!” é uma gota de sobriedade em meio a um verdadeiro oceano de marketing embriagante.
Um terceiro ponto de potencial polêmico é o suposto “tom agressivo” do título: como assim, “Bobagem”? Quem vocês esperam convencer, chamando as crenças queridas das pessoas de “bobagem”? O título tem uma história ligada a uma experiência pessoal da Natalia, que contamos no livro, e que dá à escolha um toque suave e até meio engraçado – mas, claro, é preciso ler a obra para saber os detalhes.
Além do fundo autobiográfico, a opção por “Que Bobagem!” vem, em parte, de uma de nossas inspirações, a coleção de livros espanhola ¡Vaya Timo! E em parte do desejo de causar impacto cultural e trazer o tema mais geral da pseudociência para o debate público: um livro chamado “Crenças Correntes Pseudocientíficas ou Empiricamente Injustificadas” provavelmente não chamaria tanta atenção.
Público
Voltando às perguntas de “a quem se destina” e “qual seu público”, a primeira resposta é à cultura em geral; queremos perturbar o “deixa-dissismo” epistêmico reinante e trazer certas questões que vinham sendo ignoradas, ou tratadas apenas entre entusiastas e especialistas, para uma arena mais ampla. Já a segunda depende de um entendimento da composição do público. Em relação a uma pseudociência qualquer, podemos dividir a população, de forma um tanto quanto grosseira, nos seguintes grupos: empreendedores, fanáticos, convictos, desinformados, curiosos, céticos e indiferentes.
Empreendedores têm um investimento sério na pseudociência – são seus criadores ou as pessoas que fizeram dela o centro de seus modelos de negócio e de suas vidas. Podem ser charlatões (sabem que estão vendendo bobagem) ou sinceros. Fanáticos são sempre sinceros, são os “fãs número um” e apóstolos dos empreendedores, têm um investimento emocional sério na doutrina. Convictos acreditam com firmeza na pseudociência, mas seu investimento emocional é sensivelmente menor que o dos fanáticos.
Desinformados são pessoas sem investimento (financeiro ou emocional) sério no assunto, mas que acreditam na pseudociência simplesmente porque nunca ouviram um bom argumento contrário, ou porque veem o assunto tratado de forma positiva na mídia o tempo todo, e ora bolas, se houvesse algo errado com isso, alguém já teria me avisado, certo?
Curiosos ouviram falar no tema e gostariam de saber mais. Céticos sabem que as bobagens são bobagens, mas preocupam-se com seus efeitos sobre o indivíduo e a sociedade. E Indiferentes ou não ligam ou nem sequer sabem que a pseudociência em questão existe.
Nesse escalonamento demográfico, nosso objetivo é prevenir os indiferentes, animar os céticos, saciar os curiosos, informar os desinformados e dar, aos convictos, farto material para reflexão. É improvável que sejamos ouvidos de forma honesta e imparcial entre os fanáticos e os empreendedores, mas talvez, apenas talvez, consigamos plantar uma semente de dúvida entre alguns deles.
Baixaria misógina
O quarto modo em que o livro provavelmente vai se mostrar “polêmico” será como combustível para tentativas toscas de trollagem, em aplicativos e em mídias sociais, por parte dos empreendedores e fanáticos mais arrogantes e desajustados. Se a história servir de guia, o tsunami de lama terá um alvo específico – Natalia Pasternak.
Ela é, obviamente, a figura mais notável, reconhecível, popular (e fotogênica) de nossa dupla autoral: já tivemos sessões de autógrafos em que o leitor pegou a assinatura dela, olhou para mim, o gorducho míope na mesinha ao lado, e perguntou “Mas quem é esse cara?”
Dada a diferença de visibilidade, é até certo ponto compreensível que a maior parte das críticas (assim como dos elogios) vá na direção dela. Mas a assimetria é muito mais do que quantitativa. O baixo nível das críticas dirigidas a Pasternak, que vão de trocadilhos infames com seu nome a mentiras grotescas sobre vida e carreira que, se não configuram crimes de calúnia e difamação, chegam bem perto – dá quase para ver o ódio escorrendo pelos cantos do tuíte – é abissal. Quanto a mim, quando se lembram de me atacar, é piadinha flácida e tentativas meio patéticas de desqualificação.
De novo, parte disso talvez se explique pelo alto perfil público que ela mantém, mas é difícil não detectar também o miasma da misoginia. Das quatro “polêmicas”, esta é a menos produtiva e a mais irrelevante – exceto talvez como objeto de estudo sociológico, psicopatológico e dado cultural.
Inspirações
“Que Bobagem!” não nasce num vácuo. Além dos livros espanhóis da série ¡Vaya Timo!, antecedentes óbvios são as coletâneas de artigos céticos de Martin Gardner, principalmente seu pioneiro “Fads and Fallacies in the Name of Science”, de 1957. A mais completa, reunindo textos escritos entre as décadas de 1930 e 1990, “The Night is Large”, é de 1997. Gardner morreu em 2010.
Se quisermos estender o pedigree, podemos chegar ao que é considerado às vezes o primeiro livro de divulgação científica da era moderna, “Pseudodoxia Epidemica” de Sir Thomas Browne, publicado em 1646, e que tinha como subtítulo “Investigações Sobre Verdades Comumente Presumidas”.
“A primeira, o pai de todas as causas dos erros comuns, é a doença comum da Natureza Humana, prova de cuja condição enganosa nenhuma outra é necessária para além dos erros que cometemos nós”, escreve Browne. A ciência nasce exatamente da constatação de que a falibilidade humana é uma condição universal – que nenhum gênio, líder, messias ou sacerdote é imune. Que, enfim, todos somos vulneráveis a bobagens.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)