Na última sexta-feira, 30 de junho, participei de uma mesa no 18º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), mediada pela repórter especial da Folha de S. Paulo Cláudia Collucci. O tema era “Saúde pública no pós-pandemia: por que você não deve abandonar essa pauta?”, e meus colegas de sala, Renato Tasca, consultor do Instituto de Estudos de Políticas para Saúde (IEPS) e pesquisador da FGV-Saúde, e Evelyn Santos, coordenadora de projetos na Associação Umane, fizeram apresentações sólidas, baseadas em dados, apontando a centralidade do SUS para a sociedade brasileira e, por tabela, estabelecendo seu valor perene como tema de cobertura jornalística.
Eu, de minha parte, fiz não uma apresentação, mas uma palestra; não trouxe dados duros, mas valores e desejos; e meu foco foi menos o SUS pós-pandemia e muito mais o estado do jornalismo de ciência e saúde pós-pandemia. O que disse foi mais ou menos o que vem escrito a seguir:
A pandemia de COVID-19 trouxe inúmeras lições para a cobertura de temas de saúde pública pela imprensa, algumas duramente aprendidas – por exemplo, o imperativo de priorizar a comunicação precisa e responsável dos fatos médicos mais bem estabelecidos e das melhores recomendações da ciência, em detrimento do cacoete clássico do jornalismo de buscar manter uma aura cosmética de “pluralidade” ou “neutralidade”, de privilegiar o declaratório no lugar do factual. Quando ficou claro que o apelo automático ao rotineiro “outroladismo” em questões como vacinas ou distanciamento social custaria vidas, uma onda de sobriedade tomou conta da profissão – com apenas algumas poucas e lamentáveis exceções.
Conquistada no calor da batalha, no entanto, essa consciência de uma responsabilidade pública que se coloca acima dos trejeitos usuais da prática já parece estar sumindo. Notícias e reportagens endossando tratamentos e medicamentos “da moda”, com base apenas na palavra de pacientes supostamente satisfeitos e de profissionais de saúde desejosos de vender serviços, voltam a multiplicar-se. Estudos epidemiológicos de qualidade duvidosa ou ainda preliminares são leonizados para aumentar a paranoia do leitor com os percalços da vida moderna. Supostas curas e possíveis contaminantes até agora só testados em camundongos são noticiados com fanfarra como novas panaceias ou ameaças iminentes.
O papel crítico da boa evidência científica, a necessidade de separar joio do trigo na hora de trazer resultados do laboratório para a atenção do público, tão destacados durante a pandemia, são cada vez mais postos de lado. Voltamos ao "business as usual".
Seria uma pena se a única lição realmente duradoura da COVID-19 fosse a tomada de consciência da importância, a excepcionalidade e o valor do SUS. Porque sem uma visão clara da centralidade da boa evidência científica na formulação de políticas e na alocação de recursos de saúde pública, toda e qualquer defesa do SUS será imperfeita e incompleta.
A questão da evidência fala diretamente à incorporação de tecnologias, práticas, procedimentos e medicamentos no sistema, processo que durante a pandemia foi abusado – com a emissão, em março e depois maio de 2020, de diretrizes do Ministério da Saúde sobre o uso de cloroquina e outros elementos do infame “tratamento precoce” na saúde pública. Mas bem antes disso ele já se mostrava altamente vulnerável à captura por interesses políticos e econômicos que se sobrepõem à análise imparcial da evidência do que é realmente melhor para o povo brasileiro.
E já que este é um congresso de jornalismo investigativo, gostaria de sugerir o Plano Nacional de Práticas Integrativas e Complementares, o PNPIC do Ministério da Saúde, como terreno fértil – e inexplorado – para a investigação do papel desses interesses na formulação das políticas de saúde. O plano foi concebido sob o pretexto de integrar ao sistema saberes populares e práticas que, a despeito da falta de boas evidências, contariam com algum lastro cultural ou histórico dentro da sociedade brasileira. Trata-se de uma diretriz questionável, e da qual eu, pessoalmente, e o Instituto Questão de Ciência, do qual sou integrante e fundador, somos críticos ferrenhos.
Mas essa é uma discussão à parte. Mesmo supondo, por hipótese, que a diretriz seja válida: o que há de popular, cultural ou histórico, em relação à realidade brasileira, em práticas como ozonioterapia, quiropraxia ou constelação familiar, todas incluídas no bojo do PNPIC?
Ozonioterapia consiste na introdução de um gás tóxico, corrosivo e altamente reativo, o ozônio, no corpo humano. Extremamente violento, o ozônio pode ser usado legitimamente para esterilizar equipamentos, desinfetar superfícies ou mesmo feridas externas. Não há evidência crível de que sua aplicação interna seja benéfica para qualquer condição, ou mesmo segura. Trata-se de uma intervenção tecnológica: o gás é gerado por um aparelho elétrico. Não há nada de “tradicional” aí. Nem mesmo o Conselho Federal de Medicina, que tanto apreço mostrou ter pela cloroquina e pelo tratamento precoce, endossa seu uso, reservando a terapia apenas para estudos experimentais. E, no entanto, a ozonioterapia não só faz parte do SUS, por meio do PNPIC, como há projeto de lei, em tramitação no Senado, que pretende autorizar seu uso indiscriminado, fora de condições experimentais, em todo o território nacional.
Quiropraxia, por sua vez, poderia até reivindicar o título de “tradicional” – se o PNPIC fosse um programa do governo dos Estados Unidos. Criada naquele país no fim do século 19, a prática, que consiste na manipulação muitas vezes violenta, e perigosa, da coluna espinhal criou raízes na cultura americana, mas no Brasil é puro produto de importação. Mesmo em sua terra natal é combatida por quem preza o respeito pelas evidências científicas na promoção da saúde.
Já a Constelação Familiar, presente no SUS, por obra e graça do PNPIC, e que vem colonizando o Judiciário sob o nome de Direito Sistêmico, foi criada na Alemanha décadas atrás – seu fundador faleceu em 2019 – sendo, portanto, difícil encontrar razões para considerá-la “tradicional”, “cultural” ou “nacional”. Baseia-se em concepções pseudocientíficas sobre mente e consciência, requerendo algum tipo de transmissão de pensamento e até mesmo contato com os mortos, e preconiza uma ideologia machista, violenta, patriarcal: vítimas da prática já se manifestaram várias vezes na imprensa.
É preciso não só não perder de vista a lição que a pandemia trouxe sobre a importância do respeito à evidência científica em saúde – e aplicá-la cada vez mais daqui para a frente – mas também usá-la como lente para avaliar o que foi feito no passado.
Quando se fala em defesa da saúde pública em geral, e do SUS em particular, o principal ponto levantado costuma ser o do subfinanciamento do sistema. Há bons motivos para isso, mas também uma certa dose de conforto – é fácil e popular pedir mais dinheiro para a saúde.
Gostaria de deixar aqui a sugestão de que também é importante, essencial mesmo, dar atenção à questão do respeito pela evidência na formulação das políticas de saúde, na incorporação de práticas e produtos e, retomando o tema do jornalismo investigativo, aos lobbies e interesses que impõem à saúde pública o fardo de terapias pseudocientíficas, inseguras e ineficazes, terapias que então usam a chancela de um sistema que, por ótimas razões, é amado e respeitado pelo povo brasileiro para legitimarem-se.
Como cidadão brasileiro e consumidor de bom jornalismo, adoraria conhecer a verdadeira história, a história profunda, da incorporação da ozonioterapia, da constelação familiar, da quiropraxia e de muitas outras práticas, ditas integrativas e complementares, ao nosso Sistema Único de Saúde.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)