Astrologia ocidental chega à China: estudo de caso

Apocalipse Now
18 fev 2023
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Assistir a uma superstição tomar de assalto uma cultura onde até então era desconhecida ou irrelevante é como ver uma colisão de trens de passageiros em câmera lenta: tecnicamente fascinante, humanamente trágico. Para o psicólogo ou cientista social, é a oportunidade de fazer um trabalho semelhante ao dos epidemiologistas, acompanhando o espalhamento de um patógeno velho conhecido numa população ainda virgem, vendo os diferentes sintomas e suscetibilidades que surgem à medida que o organismo se adapta aos novos hospedeiros.

Algum tempo atrás mencionei, em outro artigo, que a popularização da astrologia ocidental na China vinha criando novas formas de discriminação no país. Mal sabia eu que, praticamente ao mesmo tempo, um grupo de pesquisadores baseados no gigante asiático e nos Estados Unidos preparava-se para publicar um artigo científico exatamente sobre isso – como a disseminação da superstição ocidental, filtrada pela cultura chinesa pré-existente, estava levando à criação de novos estereótipos negativos que prejudicam o acesso de certas pessoas ao mercado e trabalho (e à vida amorosa, também).

A série de estudos, publicada em 2020, tem como principal conclusão a de que estereótipos podem surgir, exercer influência perceptível sobre a sociedade e perdurar mesmo sem ter nenhuma base na realidade. Isto é, sem conter nem mesmo o proverbial “grão de verdade” que estaria “lá no fundo” da generalização. Como os autores escrevem: “é difícil separar estereótipos da realidade social porque a maior parte dos estereótipos bem estudados (...) existe há muito tempo, o que permite que estereótipo e realidade social reforcem-se mutuamente”.

 

Estereótipos

A astrologia ocidental (que começou a se popularizar na esfera cultural chinesa nos anos 1990, transformando-se numa verdadeira mania durante a década passada) foi escolhida como fonte de estereótipos desprovidos de base na realidade social. Como a astrologia não tem base na realidade, estereótipos astrológicos são totalmente imaginários.

E para garantir mesmo que a astrologia realmente não tem base na realidade, os autores submeteram mais de 170 mil voluntários (recrutar voluntários não parece ser problema num país de mais de 1,4 bilhão de habitantes!) a um teste de personalidade online, e conduziram análises estatísticas para ver se alguma característica (por exemplo, extroversão) aparecia especialmente ligada a algum signo (por exemplo, Áries). Não acharam nada.

Depois, cruzaram as avaliações de performance no trabalho e datas de nascimento de mais de 32 mil funcionários de uma grande empresa, para ver se algum signo se destacava, de modo positivo ou negativo. Outra vez, nada.

 

Inferno astral

Na China, as principais vítimas do estereótipo astrológico são os virginianos. Os autores explicam que a palavra chinesa para “virgem” tem conotações culturais negativas, que foram transmitidas ao signo e, por tabela, aos nativos do período entre 23 de agosto e 22 de setembro. Enquanto a definição, digamos, canônica da personalidade virginiana é de alguém “lógico, prático, sistemático, perfeccionista e detalhista”, para os chineses versados em astrologia o virginiano é visto como alguém desagradável, excessivamente crítico dos outros e cheio de manias.

O estudo, numa série de pesquisas de opinião, mostra que o estereótipo duplamente imaginário (porque baseado numa interpretação equivocada de uma doutrina equivocada) tem impacto real sobre a vida dos chineses virginianos. Numa dessas pesquisas, um dos autores criou três perfis num aplicativo de namoros, todos idênticos – a única diferença era o signo. Os perfis ficaram disponíveis por nove dias. Enquanto as versões leonina e libriana tiveram mais de 40 matches cada uma, a virginiana amargou apenas 15.

Indo além do anedótico, levantamento feito com uma amostra de 508 chineses, selecionada de uma base chinesa de voluntários internautas comparável ao Mechanical Turk da Amazon, determinou que 83% acham astrologia ocidental um assunto interessante, 72% consideram-se familiarizados com ela e 30% definem virgem como o signo menos valorizado socialmente, seguido por escorpião (10%). Nos Estados Unidos, em comparação, o signo mais desvalorizado é câncer, mas com apenas 7,7% de “desaprovação”, seguido por escorpião (7,3%). Entre os chineses, parcela considerável se declarou disposta a discriminar contra o signo visto como mais negativo, sendo tanto em relações amorosas (46%), quanto em contato social (42%) e também na hora de oferecer um emprego (22%).

 

No RH

Dois outros levantamentos buscaram medir o impacto de ser do signo de virgem no mercado de trabalho. Um mesmo currículo, de um profissional do sexo masculino formado por uma universidade de boa reputação, foi preparado em quatro diferentes condições. Duas apenas mencionando datas de nascimento, e duas mencionando data de nascimento e signo (virgem ou libra). Cópias dos currículos foram distribuídas aleatoriamente a um grupo de 768 voluntários, cada um dos quais deveria se imaginar encarregado do RH de uma empresa e dar uma nota ao resumo profissional, indo de 1 (“sem intenção de contratar”) a 6 (“alta intenção de contratar”).

Resultado: a versão do currículo onde o signo de virgem é explicitamente mencionado foi a que recebeu a menor nota (média de 4,77) enquanto todas as demais tiveram nota 5 ou superior.

O experimento final da bateria de testes foi uma versão modificada e mais específica da análise de currículos, variando o sexo do suposto candidato e eliminado a condição em que os signos eram omitidos: todos os currículos vinham com um signo zodiacal explicitado. Desta vez, leão foi usado como como signo-controle. O teste foi aplicado a uma amostra composta apenas por verdadeiros profissionais de Recursos Humanos (amostra de 351). O sexo do candidato não afetou a nota dada aos currículos, fazendo com que, ao final da análise, o signo fosse a única variável significativa, com a nota média dada aos virginianos (4,28) menor que a dos leoninos (4,55), diferença considerada estatisticamente significativa.

 

Que mal que tem?

Para os autores dessa série de estudos, a principal conclusão é que mesmo estereótipos sem base na realidade social podem criar raízes no imaginário e, assim, interferir nessa realidade. Mas eles não deixam de advertir que “embora os signos astrológicos possam ser divertidos e criar conexões sociais, usá-los para inferir características de personalidade ou tomar decisões é irracional. Por exemplo, é injusto e irracional discriminar contra pessoas de virgem”.

É uma constatação um tanto quanto óbvia, mas que muita gente supostamente esclarecida se esforça em ignorar. Os dados levantados no estudo indicam que, ao menos no momento atual, a rejeição a signos específicos, no Ocidente (máxima de 7,7% nos Estados Unidos), tende a ser menor do que na China (máxima de 30%), mas notícias de discriminação astrológica também pipocam deste lado do mundo – onde multiplicam-se “consultorias” de RH que usam o mapa astral como arma.

Não existe pseudociência – expressão entendida aqui como discursos autoritativos sobre a realidade empírica, sem base em evidências válidas dessa mesma realidade – inofensiva. Todas são, no frigir dos ovos, mentiras arrogantes sobre como o Universo funciona. Quem assimila mentiras a seu modo de agir e de pensar no mundo expõe a si mesmo e aos demais a erros, dores e injustiças perfeitamente evitáveis.

 

P.S.

Recebi, há poucas semanas, um exemplar do livro “Understanding Astrology”, obra monumental de um grupo de pesquisadores encabeçado por Geoffrey Dean que compila e analisa os resultados de mais de mil estudos científicos sobre astrologia conduzidos de 1990 a 2020. O resultado geral é, como seria de se imaginar, negativo – mas a viagem, em mais de 900 páginas, é maravilhosa. O livro pode ser baixado em PDF (quatro arquivos enormes) neste link, onde também há instruções sobre como adquirir a edição capa-dura.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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