Ano Novo Chinês e a globalização das superstições

Apocalipse Now
25 jan 2020
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Roda do ciclo dos anos chineses

O dia 26 de janeiro de 2020 marca o início o ano novo chinês, que segundo o folclore será o Ano do Rato de Metal. Além de um ciclo de 12 anos, em que cada volta da Terra em torno do Sol é regida por um animal diferente, a contagem tradicional chinesa tem outro ciclo, de cinco anos, cada ano dominado por um dos cinco elementos da doutrina Wuxing: madeira, fogo, terra, metal e água.

Essa tradição chinesa é comumente chamada de “astrologia”, mas a alusão é imprecisa, já que não há estrelas ou planetas na história. De qualquer modo, a ideia básica – de que um certo intervalo de tempo imprime características específicas às pessoas – é próxima o suficiente da crendice ocidental para permitir a analogia. Um exemplo é esta descrição da personalidade do nativo de Rato de Metal, publicada pela revista “Marie Claire”, que não fica nada a dever à retórica típica – “é bom, menos quando não é” – de um manual astrológico ocidental:

"Todo nascido desse signo é cativante, tem elevado carisma e faz com que as outras pessoas naturalmente queiram cuidar dele. Porém, tem uma característica ainda mais persuasiva, pois são dotados de pensamento rápido e extrema eloquência. Isso pode ser uma característica ruim, pois será fácil esconder os sentimentos difíceis em sorrisos largos, dando espaço para defeitos como inveja, egoísmo, ciúme, egocentrismo e possessividade”.

Como ocorre, em geral, com crenças intrigantes, errôneas ou infundadas, a linha entre “uso recreativo” e dano objetivo é muito fácil de cruzar – e, muitas vezes, difícil de perceber. Já comentei, em outro artigo, sobre a chamada “Maldição do Cavalo de Fogo” que afligiu o Japão no século passado, então aqui vai um extrato, com poucos acréscimos e modificações:

Em setembro de 1966, o jornal japonês “Japan Times” noticiou uma queda de 27% na taxa de natalidade no país, aparentemente porque aquele era um ano do “Cavalo de Fogo”, e meninas nascidas sob essa configuração são consideradas “difíceis para arranjar marido”. A solução encontrada por muitos casais foi evitar filhos no ano ruim: a taxa de natalidade em 1967 deu um salto de 42% em relação à de 66.

É provável que meninas também tenham sido mortas por causa da superstição. Artigo publicado por um pediatra japonês, em 1975, apontava uma elevação na taxa de mortalidade de meninas recém-nascidas – mas não de meninos – por violência ou acidente, em 1966. 

A superstição envolvendo a má sorte de meninas nascidas num ano do Cavalo de Fogo (o próximo será 2026) é tão antiga e marcante que há relatos de suicídios de mulheres nascidas nesses anos – principalmente em 1906.

Estudo de 2012 aponta que tanto homens quanto mulheres, nascidos no Japão em 1966, encontraram mais dificuldade em se casar do que os nascidos em outros anos, mas não fica claro se por causa do preconceito ou se pelo simples fato de que a geração de 66 já havia começado menor.

Um artigo publicado por duas pesquisadoras japonesas no blog do Banco Mundial sugere que o impacto de superstições assim é maior em culturas com alta prevalência de casamentos arranjados – onde os pais decidem com quem os filhos devem se casar, e que “a maldição do Cavalo de Fogo não deve afetar muito casamentos de amor”.

O efeito oposto também acontece: em 2014, na China, houve uma elevação súbita da natalidade, causada por uma procura frenética por cesáreas nos últimos meses do ano. Casais queriam evitar que seus filhos nascessem no “impróspero” Ano da Ovelha, iniciado em 19 de fevereiro de 2015.

Dado o aumento da penetração e difusão da cultura chinesa no mundo atual, pode ser interessante conhecer um pouco mais sobre as crendices peculiares do país e seus impactos sociais e econômicos. 

O psicólogo americano Stuart Vyse, uma das principais autoridades mundiais em superstição, aponta que fatores como feng-shui (que dita a disposição “harmônica” de objetos e construções num ambiente ou paisagem) e números de sorte (ou azar) podem ter efeitos notáveis na avaliação de um imóvel, por exemplo. 

Residências localizadas em ruas sem saída, perto de viadutos, perto de templos ou cemitérios, e com o número 4 (ou localizadas no quarto, ou quadragésimo quarto, andar) tendem a sofrer desvalorização no mercado de Taiwan ou de Hong Kong. “No geral, os efeitos do feng-shui nos preços dos imóveis são maiores para as propriedades mais caras”, escreve ele. Se isso sugere que os ricos são mais crédulos ou que os pobres têm menos escolha, é uma questão em aberto.

“É improvável que o feng-shui e outras superstições chinesas desapareçam no futuro próximo, porque elas saturam por completo o ambiente econômico”, aponta Vyse. “É muito difícil combater uma superstição apoiada no motivo do lucro”. Corretores de imóveis e incorporadores interessados em fazer negócio na China (ou com empresários chineses que buscam se estabelecer no ocidente) levam vantagem quando levam o feng-shui bem a sério.

Outro efeito registrado pelo autor é a preferência pelo número oito: ele cita estudos que mostram que, em Xangai, Hong King e Taiwan, 40% dos produtos anunciados em jornais têm preços que terminam com o dígito oito (um número de sorte), e apenas 1% no dígito quatro (um número funesto). Corretores na bolsa de valores de Hong King preferem ações designadas por códigos numéricos terminados em oito. E em 2003, uma empresa aérea pagou o equivalente a US$ 280 mil (R$ 1,1 milhão) pelo privilégio de ter o telefone com número 8888-8888.

O feng-shui passa por ondas periódicas de alta e baixa popularidade no ocidente. Nos últimos dias o “New York Times” apresentou um novo modismo – talvez um concorrente? –, de feição ocidental, a “astrocartografia”, o uso de horóscopos para escolher um lugar para morar.

De cá pra lá

Influência cultural é uma via de mão dupla, e crendices ocidentais também vêm encontrando caminhos para penetrar na China. A “nossa” astrologia parece ser um produto de especial sucesso, ao menos de acordo com reportagem de 2017 do “New York Times”. E os resultados, claro, estão longe de ser positivos: discriminação contra certos signos, principalmente Virgem, tanto no mercado de trabalho quanto em relacionamentos, passou a ser um fato da vida. 

“Horóscopos na China podem influenciar decisões importantes sobre quem contratar, quem namorar, de quem ficar amigo”, apontava a revista “The New Republic” em 2014. “E nesta versão astrológica da seleção natural, ninguém sofre mais que os virginianos”, considerados “exigentes, mimados, perfeccionistas ao ponto da obsessão”.

A reportagem diz que muito da discriminação direta contra virginianos acontece em tom de brincadeira, mas que a discriminação indireta – por exemplo, com anúncios de emprego que citam os signos preferidos pelo empregador, eliminando virginianos por omissão – é (ou era, na época) um problema real. 

A “New Republic” dizia, então, que os chineses estavam levando esse negócio de horóscopo muito mais a sério que os americanos, mas isso talvez não seja mais tão verdade assim. Texto publicado há poucos dias, num popular site americano, traz astrólogos preocupados que pedem às pessoas que parem de usar divisões zodiacais para promover ódio e discriminação. Aqui no Brasil, já aparecem artigos sobre “o perigo de cada signo”. Antes de dar de ombros e achar que discurso de ódio baseado em astrologia parece irracional demais, vamos nos lembrar de que todo discurso de ódio é irracional, por princípio.

Superstições são estratégias de redução de ansiedade: dizem-nos como agir ou como fazer sentido do mundo quando não temos tempo, meios ou oportunidade de encontrar pistas suficientes que nos permitam proceder racionalmente. 

Bater na madeira não serve para nada numa emergência, mas reduz a tensão e abre espaço mental para considerações mais ponderadas. Classificar as pessoas em signos dá a ilusão de que as entendemos, e talvez abra espaço mental para pensarmos a respeito de nossa relação com elas de forma mais tranquila. 

Esses são os possíveis benefícios: os riscos surgem quando o processo escapa do controle, estratégias que deveriam servir como pontes provisórias sobre lacunas temporárias da racionalidade se convertem em estruturas rígidas, fixas, e perenizam as lacunas que se propõem a atravessar. Um dos principais popularizadores da ciência do início do século passado, Edwin Slosson, escreveu que era preciso "eliminar todos velhos retalhos de superstição", para evitar que eclodissem uma "combustão espontânea de fanatismo". Dado o devido desconto ao tom excessivamente positivista e triunfalista típico da época, a preocupação geral segue não só válida, como cada vez mais urgente.

Quando o estado de ansiedade se prolonga – por exemplo, em momentos de rápida mudança social ou tecnológica, como os vividos tanto pela China quanto pelo ocidente nas últimas duas décadas – esses riscos se exacerbam, e a “fertilização cruzada” de superstições, que sempre existiu, exacerba-se também.

Como disse no início, a linha entre o “uso recreativo” de bobagens e o ponto em que passam a causar danos objetivos à vida das pessoas é sempre muito fácil de cruzar. Dada a velocidade do mundo moderno, o momento em que isso acontece está cada vez mais difícil de perceber em tempo real: só nos damos conta do que se perdeu quando já é tarde demais.

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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