Desinformação e a lei

Apocalipse Now
21 jan 2023
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No mundo da propaganda política e da guerra psicológica, “desinformação”, palavra que veio parar no centro do debate atual sobre liberdade de expressão no Brasil, tem um significado técnico, que pode ser encontrado em livros-texto sobre o assunto (por exemplo, “Propaganda & Persuasion”, de Jowlett e O’Donnel). Fazendo uma síntese de diversas formas de expressar a ideia, encontradas em diferentes fontes, dá para chegar a algo assim:

Desinformação é um tipo de propaganda oculta, consistindo em informação falsa, incompleta ou enganosa que é disseminada, passada ou confirmada para um alvo, individual ou coletivo, com o propósito de produzir, nesse alvo, uma reação que faça avançar os objetivos do desinformador.

 

Vamos olhar mais de perto os vários conceitos envolvidos.

Propaganda oculta significa que o caráter propagandístico da mensagem fica escondido. Ela se passa por comunicação isenta, imparcial e objetiva, ou como opinião sincera e desinteressada. Isso geralmente acontece por obscurecimento da fonte – o mecanismo clássico é o uso de notas plantadas na imprensa, onde o jornalista ou articulista se presta ao papel de moleque de recados. Mas hoje também se vale de robôs, perfis falsos de rede social, influencers mercenários e milícias digitais.

Informação falsa, incompleta ou enganosa: em essência, mentira, seja por afirmação (dizer algo falso), omissão (dizer algo que corresponde aos fatos, mas escondendo parte da informação necessária para que os fatos possam ser compreendidos ou interpretados corretamente) ou descontextualização (usar fatos reais como ingredientes de argumentos falaciosos).

Disseminada, passada ou confirmada para um alvo – a desinformação tem destinatário. É construída para influenciar pessoas ou coletividades específicas.

Reação que faça avançar os objetivos do desinformador: o iniciador da desinformação, a “fonte primária”, por assim dizer, tem objetivos que dependem de, ou podem ser facilitados por, mudanças na opinião ou no comportamento do alvo, e a desinformação existe para estimular essa mudança. A gama de metas é quase infinita – eleger um candidato, vender um tratamento médico ou produto, influenciar o mercado, paralisar processos deliberativos etc. Quando há interesses geopolíticos em jogo, o objetivo mais comum da desinformação é exacerbar as divisões, contradições e rivalidades internas do inimigo: semear a cizânia.

Talvez o mais importante disso tudo seja notar que desinformação é uma forma antiética de propaganda. É prima-irmã do comercial de cigarro “light” (que insinuava, enganosamente, que seu produto era menos prejudicial à saúde do que os cigarros comuns) e do iogurte que “vale por um bifinho” (sem haver equivalência nutricional nenhuma). A principal diferença é que os comerciais não eram ocultos: seu caráter propagandístico estava explícito (exceto, claro, quando os slogans desses produtos eram repetidos por protagonistas de telenovelas).

 

A liberdade

E, ora bolas, no Brasil regulamentamos propaganda. A publicidade de produtos baseados em tabaco e álcool é severamente restrita. E embora alguns publicitários tenham tentado sacar do argumento da liberdade de expressão para contestar a proibição de anúncios de cigarro na TV e em jornais e revistas, no início do século, a conversinha não colou.

Fomos, como sociedade, capazes de concordar que liberdade de expressão não inclui o direito de ganhar dinheiro tentando convencer as pessoas a se viciar num produto que causa câncer, e fizemos isso sem ficar com medo de que a decisão representasse o início de um declive escorregadio que levaria “inevitavelmente” à proibição da charge política ou coisa pior.

A disputa em torno da regulamentação da liberdade de expressão, em geral, e do combate estatal à desinformação, em particular, quando ocorre de boa-fé, envolve diferenças de percepção de risco: o risco de legitimar um poder controlador do discurso público, de um lado, versus o risco de permitir que a desinformação campeie, de outro. Democracias sempre foram, e sempre serão, vulneráveis a desinformação. Nos anos 1960, um oficial da KGB encarregado de promover dezinformatsiya brincou que “se eles não tivessem liberdade de imprensa, nós precisaríamos inventá-la”. Regimes totalitários têm menos problemas com isso porque, neles, o Estado exerce o monopólio da mentira.

O primeiro risco não deve ser minimizado: desde a redemocratização e da abolição formal da censura pelo Poder Executivo, casos de censura judicial às artes e à imprensa vêm se repetindo com frequência perturbadora no Brasil, além do uso de “lawfare”, principalmente, por autoridades do Judiciário contra jornalistas incômodos. Exemplos recentes incluem a tentativa de impedir que o jornal “O Globo” publicasse reportagens sobre o escândalo da proxalutamida, bem como os processos movidos contra Conrado Hubner e Rubens Valente pelo procurador-geral da República e por ministro do STF, respectivamente.

bigorna amarela

A história parece validar o pressuposto, comum às democracias liberais, de que os perigos de dar ao Estado poder de censura tendem a ser maiores do que os de deixar as pessoas falarem as bobagens que quiserem. Mas “tendem a ser” é diferente de “sempre são”, e mesmo as culturas mais liberais reconhecem algumas restrições como necessárias (a negação do Holocausto, por exemplo, é ilegal em 16 países, incluindo Canadá e Alemanha). Mesmo nos Estados Unidos, onde a Primeira Emenda dá a impressão de reinar absoluta, existe jurisprudência que prevê exceções, de acordo com o perigo iminente que o discurso traz.

Mas é preciso reconhecer que o segundo risco, ainda mais numa sociedade imersa na cacofonia das redes sociais, também está longe de ser desprezível. Há evidência empírica de que a desinformação gestada no Palácio do Planalto, durante o governo de Jair Bolsonaro, custou vidas durante a pandemia.

Também, muitos apoiadores da ideia de um golpe militar contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva acreditam que a ruptura seria legítima por causa “da forma como a eleição se deu” – o que sugere que foram convencidos pelo espectro de desinformação que vai de uma suposta “parcialidade” do TSE durante a campanha eleitoral (ignorando as vistas grossas ao uso de verba pública para compra de votos e as decisões de censura favoráveis à campanha de Jair Bolsonaro) e chega à paranoia da fraude (inexistente) nas urnas eletrônicas.

 

O Estado

Desinformação é, em essência, propaganda mentirosa disfarçada, o tipo de coisa que só os mais extremistas dos apóstolos da liberdade de expressão defenderiam como “direito” de alguém. Isso, em termos de princípio. Na prática, apelar para a força do Estado para coibir desinformação traz uma série de armadilhas.

Uma delas é que, mesmo em democracias, o próprio Estado pode ser fonte de desinformação, como visto no Brasil durante a pandemia.

Se existisse durante o governo Bolsonaro, a Procuradoria de Defesa da Democracia proposta agora na Advocacia-Geral da União para coibir a disseminação de “fatos inverídicos ou supostamente descontextualizados levados ao conhecimento público de maneira voluntária com objetivo de prejudicar a adequada execução das políticas públicas” poderia ter sido facilmente mobilizada para assediar os críticos da política pública do tratamento precoce.

Claro, as críticas ao coquetel idiota cloroquina-antibiótico-zinco-antitérmico-arruda-boldo não eram baseadas em “fatos inverídicos ou supostamente descontextualizados”, mas até o Judiciário decidir que focinho de porco não é tomada, tempo, dinheiro e paz de espírito (recursos, todos, em geral escassos) de cidadãos inocentes teriam sido consumidos em quantidades cavalares. O assédio judicial contra quem diz o que figuras poderosas não gostam de ouvir é um fato cotidiano neste país. Não me parece sábio ampliar o arsenal.

Mesmo que você ache que o governo atual é bonzinho e jamais faria mau uso da prerrogativa, ninguém tem bola de cristal para saber o que virá depois. Se desse para confiar na bondade eterna e na sabedoria profunda dos governantes, a monarquia absoluta por direito divino seria um sistema ótimo.

Outro problema são os conceitos de propaganda “mentirosa” e “disfarçada”. O caso da negação do Holocausto oferece um bom contraste: é obviamente mentira (o Holocausto é um dos eventos mais bem documentados do século 20) e o disfarce (preconceito antissemita fantasiado de pesquisa histórica) é transparente. Mas, em termos de desinformação, essa visão límpida, essa clareza solar, é a exceção, não regra.

 

O que fazer?

Talvez a desinformação, em geral, possa ser tratada pela lei da mesma forma que a propaganda enganosa e a fraude. Isso depende, no entanto, de obter evidências sólidas de falsidade, penetrar os disfarces e encontrar o beneficiário, o originador oculto da mentira. É trabalho de investigação, tarefa para a polícia e o Ministério Público, sob supervisão rigorosa e (espera-se) imparcial do Judiciário. Operações de desinformação são conspirações clássicas – um grupo de pessoas agindo em segredo para obter vantagens ou causar danos de forma ilegal ou imoral. É muito fácil investigadores afoitos imaginarem conspirações onde não existe nenhuma.

A linha entre vigilância e paranoia é tênue. Como aponta o cientista político Thomas Rid, “desinformação, quando bem executada, é difícil de identificar”. Ironicamente, manter agentes públicos correndo atrás do próprio rabo ou hostilizando cidadãos inocentes é exatamente o tipo de efeito irritante e polarizante, de desgaste do tecido social, que os propagadores de desinformação política costumam buscar. O combate institucional à desinformação imaginária faz o trabalho da desinformação real.

bigorna vermelha

O Brasil também poderia construir uma doutrina jurídica menos amorfa sobre comunicação, desinformação, risco. Isso se faz necessário para coibir os casos de censura a material jornalístico legítimo, que se repetem tediosamente cada vez que algum figurão bem-relacionado imagina que uma reportagem ameaça seus negócios ou reputação; também, para embasar o bloqueio emergencial da circulação de desinformação que efetivamente traga perigo real e imediato à vida, à saúde ou às instituições – delimitando com clareza os critérios a serem aplicados para definir esses “estados de emergência” comunicacionais.

Fora das emergências claras e da apuração da responsabilidade criminal bem definida, no entanto, o braço repressivo do Estado é um instrumento inadequado para lidar com a circulação de desinformação: é uma marreta, quando em geral o que se requer é um bisturi. E quem tem o bisturi nas mãos são as plataformas – jornais, revistas, redes sociais – onde a desinformação é plantada, germina e floresce.

Já escrevi sobre isso antes (aqui e aqui), mas vale repetir: qualquer sistema que atue amplificando o alcance de mensagens destinadas a consumo público tem um dever ético de curadoria que, se quisermos uma democracia saudável, precisa sobrepor-se ao imperativo da audiência. Não importa se a amplificação é implementada por um algoritmo: alguém lá dentro disse ao algoritmo o que otimizar. Não importa se a página de opinião é “pluralista”: alguém lá dentro traça a linha onde acaba o plural e começa a putaria.

Podemos pensar em sistemas de incentivos – leis aprovadas no Congresso, esquemas de autorregulamentação, grupos de pressão organizados na sociedade civil – que façam as empresas e influencers sentirem de modo mais agudo o peso dessa responsabilidade. Porque, se ela não passar a ser levada muito mais a sério do que atualmente é, logo estaremos prensados entre a marreta da censura e a bigorna do caos.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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