As falácias do terraplanismo eleitoral

Artigo
28 nov 2022
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terraplanista verde-amarelo

 

Uma das coisas que os conspiracionistas deveriam questionar antes de entrar de cabeça em alguma hipótese aloprada é o número de pessoas e instituições que seria necessário cooptar para que uma conspiração possa se manter em pé. A ausência, porém, de qualquer senso crítico faz com que existam narrativas questionando a chegada do ser humano à Lua e a esfericidade da Terra.

Os chiliques em torno do resultado das eleições presidenciais – nos EUA, em 2020, e em 2022 no Brasil –, embora possam ficar abaixo numa escala de gradação de histeria coletiva, comparando-se com as questões astronômicas envolvendo a Terra e a Lua, dão uma medida razoável de como o negacionismo é deletério para o dia a dia da sociedade.

Este artigo pretende trazer uma visão geral das conspirações que atualmente circulam no âmbito das eleições de 2022.

 

Lei de Benford

Quando analisamos resultados de loterias, vemos que a probabilidade de sair qualquer um dos números é a mesma. Na Mega-Sena, por exemplo, onde o sorteio é feito considerando apostas de seis números dentro de um conjunto de 1 até 60, a sequência 1, 2, 3, 4, 5 e 6 tem exatamente a mesma probabilidade de ser sorteada do que qualquer outra combinação de seis números. É como jogar um dado honesto de seis faces: a probabilidade de sair qualquer número de um a seis é exatamente igual.

Tem situações, porém, em que a probabilidade de sair um ou outro número é diferente. Imagine as ruas de uma cidade onde a sequência numérica das casas segue uma ordem crescente começando do 1 (1, 2, 3...). A quantidade de números 1 que apareceria, neste caso, é maior do que a quantidade de números 9, por exemplo. É só pensar que nem todas as ruas são grandes e que todas as ruas grandes contêm os números menores: é mais provável termos mais casas numeradas com números que começam com 1 (10...19) do que com 9 (90...99).

Curiosamente, a Lei de Benford foi observada pela primeira vez por Simon Newcomb, um astrônomo nascido em 1835 em Nova Escócia, Canadá. Newcomb observou que os livros que continham as tabelas de logaritmos eram mais sujos no começo do que no final. As primeiras páginas continham as tabelas com números começando por 1. Isso indicava que as tabelas com números menores eram mais utilizadas do que aquelas com números maiores – a sujeira das páginas ia diminuindo progressivamente até o final do livro. Newcomb publicou um artigo sobre isso em 1881.

Embora descoberta por Newcomb, a lei leva hoje o nome do físico Frank Benford. Benford trabalhava na General Electric e em 1935 notou o mesmo fenômeno nas tabelas logarítmicas. A diferença de Newcomb, porém, é que Benford sistematizou e estendeu o estudo para 20.229 dados, mostrando que havia uma fórmula matemática que descrevia a frequência com que os algarismos de 1 a 9 apareciam em 20 situações diferentes: comprimentos de rios, estatísticas de ligas de baseball, taxas de mortalidade etc. O artigo de Benford foi publicado em 1938.

A Lei de Benford pode também ser utilizada para verificação de fraudes em eleições, e é por isso que está mencionada aqui. Histórias fantasiosas envolvendo a Lei de Benford e supostas fraudes na eleição circularam por grupos bolsonaristas. Embora a Lei de Benford não possa atestar categoricamente alguma irregularidade nas eleições, a violação na distribuição da frequência dos primeiros algarismos dos resultados das urnas daria um indício bem forte para uma investigação mais detalhada da lisura das urnas.

Os resultados dos votos para Lula, Bolsonaro, Tebet e Ciro retornam aquilo que é esperado pela Lei de Benford para várias situações, considerando o primeiro e segundo dígitos, e também a média do último dígito. Fato: não existe indício de fraude de acordo com a Lei de Benford. O link para o cálculo detalhado pode ser encontrado nesta matéria do Estadão.   

 

Formato das curvas

Outro conto da carochinha das eleições, que pipocou nas redes sociais, foi a narrativa que questionava a evolução temporal dos votos. A argumentação, de ingenuidade “papainoélica” (mas que deve ter feito algum acampamento patriótico sair pulando por aí), dizia que um percentual de votos era somado a Lula e outro era subtraído de Bolsonaro a cada 12% dos votos apurados. Uma checagem dessa notícia pode ser encontrada aqui.

A estratégia utilizada nesta mentira é envolver números e correlações para engambelar uma população despreparada e inclinada a aceitar factoides. Qualquer pessoa um pouco mais versada em matemática não consideraria uma análise numérica tão rasa, e que não prova nada.

Em especial, a ideia de que se pode deduzir a existência de um algoritmo subjacente à apuração dos votos a partir da inspeção das curvas de resultados é um raciocínio circular. Dada uma representação gráfica de um fenômeno do mundo real, sempre é possível deduzir um algoritmo que a descreva, o que não significa que o fenômeno descrito foi gerado pelo algoritmo. Usando um exemplo clássico de ensino médio, a equação da parábola descreve, mas não causa, a queda da bala de canhão.

Outro ponto a considerar é que se houvesse uma conspiração no Judiciário para fraudar um pleito com base num algoritmo implantado nas urnas, o que envolveria um grau elevado de sofisticação técnica e a corrupção de um sem-número de agentes públicos e averiguadores externos, seria improvável que os responsáveis corressem o risco de pôr todo esse esforço a perder usando um algoritmo estúpido o bastante para ser “descoberto” por um tio do zap.

 

100% de votos

É comum encontrarmos a visão de que apenas o letramento científico é suficiente para eliminar o negacionismo. É uma visão ingênua, derivada da chamada teoria do déficit, como pontua Carlos Orsi: “a ideia de que a divulgação científica se faz, e se completa, com a comunicação dos fatos científicos. Fumar causa câncer. Transgênicos são seguros. Aquecimento global é real. Vacinar é importante. É a ideia de que o cientista sabe o que as pessoas precisam saber e seu trabalho, enquanto comunicador, termina assim que ele conta isso para elas. É ver o mundo como a versão ampliada de uma sala de aula de curso de graduação”.

Este exemplo de urnas com votos unânimes mostra que a instrução apenas não é capaz de extinguir que pessoas propaguem desinformação: não é possível afirmar que Marcos Cintra (candidato a vice-presidente neste ano), doutor em economia por Harvard, não tenha uma boa formação. Todavia, teve a conta do Twitter suspensa por levantar dúvidas sobre a idoneidade das urnas que registraram 100% de voto para um candidato, ajudando a tumultuar ainda mais o processo eleitoral.

Como mostrou o jornal Folha de S.Paulo, as urnas com 100% dos votos em Lula ou Bolsonaro corresponderam somente 0,03% do total das urnas. A Folha analisou os resultados dos segundos turnos desde 2002 e a situação da integralidade de votos ocorreu em todas as outras eleições para os dois candidatos que disputavam.

É importante mencionar que a maioria das urnas que registrou 100% dos votos para um candidato teve menos de 100 pessoas votando. Urnas com votos somente para Lula ficavam no Nordeste ou Norte do país em áreas com grande presença indígena e quilombola – nenhuma surpresa, portanto, com dados disponíveis para quem quiser fazer uma análise séria do assunto.

 

Viés de confirmação

A mais recente tentativa de tumultuar o processo eleitoral partiu de uma representação do Partido Liberal (PL). O documento aponta uma suposta falha em modelos mais antigos de urna eletrônica, que impediria uma auditoria de votos nessas urnas. A argumentação gira em torno da ausência de um código identificador nos arquivos de saída dessas urnas, o que, alegam os queixosos, impossibilitaria estabelecer uma correspondência entre um arquivo de controle, com detalhes da urna e votação, e a respectiva urna, afirmação que é falsa.

A representação, porém, escancara explicitamente a sua malícia ao pedir a anulação dos votos somente do segundo turno – as mesmas urnas foram utilizadas no primeiro turno. Sob risco de indeferimento, o ministro Alexandre de Moraes solicitou corretamente que o primeiro turno fosse incluído na petição.

O pedido de anulação seletiva contido na ação movida pelo PL também é um claro exemplo de viés de confirmação. Esta falácia lógico-argumentativa consiste em escolher somente os fatos que corroboram a sua conclusão – desconsiderando-se todas as vezes que saiu cara, é possível concluir que só sai coroa quando se joga uma moeda para cima.

O problema apresentado na petição não compromete a identificação das urnas, conforme declara o professor da USP Marcos Simplício em matéria no Estadão: “É como se você tivesse três documentos: o RG, o CPF e um registro no INSS, mas você não tivesse esse INSS em mãos. Isso não compromete a sua identificação porque eu consigo dizer quem você é a partir do seu RG e do seu CPF”.

Todos os factoides criados até agora funcionaram apenas como combustível para fomentar as manifestações bolsonaristas – nenhuma delas tem um mínimo de razoabilidade para levantar dúvidas sobre a lisura do processo eleitoral. É importante mencionar que o questionamento sem critério e com claras intenções de tumultuar a sociedade não se encaixa no escopo do ceticismo, mas de um negacionismo estúpido que visa atentar contra a democracia do país.

Com pessoas que pareciam pedir intervenção extraterrestre, sabe-se lá aonde chegarão as sandices dos derrotados na eleição. A ver.

Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência

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