Nostradamus!

Apocalipse Now
17 dez 2022
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Nostradamus

 

Fim de um ano, início do outro, a mídia sempre cai na esparrela de promover “previsões” e “profecias” para o ciclo que se inicia – e nesse processo é inevitável que o nome do médico e astrólogo francês Michel de Nostredame (1503-1566), o Nostradamus, apareça, citado com reverência, envolto numa nuvem de mistério. Já escrevi, meio que de passagem, a respeito dele antes, mas ainda não havia dedicado um artigo inteiro à sua vida e obra. Vamos lá, então.

(A maior parte das informações a seguir vêm do livro “Nostradamus and His Prophecies”, de Edgar Leoni – publicado originalmente em 1961 e com mais de 800 páginas, incluindo longas sequências com textos originais de Nostradamus apresentados em forma bilíngue, no francês-provençal original e em inglês, esta é a obra mais completa sobre o vate – e “The Mask of Nostradamus”, de James Randi, de 1993, a melhor avaliação crítica).

Michel de Nostredame nasceu na região de Provença, na França, filho de um tabelião e neto de Guy Gassonet, mercador judeu que, ao ser forçado a se converter ao cristianismo, adotou o nome de Pierre de Nostredame. Segundo a lenda particular da família Nostradamus, repetida por Leoni mas repudiada por Randi, Pierre havia sido um dos médicos pessoais do conde de Provença René de Anjou (1409-1480). Conde René, conhecido como René, o Bom, era tolerante com os judeus e havia feito da Provença um refúgio seguro para esse povo, que vinha sofrendo perseguições graves em outras partes do mundo latino (os judeus seriam expulsos na Espanha em 1492).

Com a morte de René e depois de seu sobrinho e herdeiro, Carlos de Maine, o controle da Provença reverteu para a coroa francesa, e em 1501 o rei Luís XII determinou que todos os judeus da província deveriam se converter ao cristianismo ou partir para o exílio. Os avós e os pais de Michel optaram pela conversão. O futuro Nostradamus, filho mais velho do casal, nascido em dezembro de 1503, foi o primeiro da família a já chegar cristão ao mundo.

Michel de Nostredame obteve uma licença para praticar medicina na Universidade de Montpellier em 1523, mas foi impedido de conquistar o grau seguinte – o título de doutor – por uma nova irrupção da peste negra. A praga, em uma forma especialmente virulenta, atingiu a França seguidas vezes no período de 1520 a 1600, com cerca de 400 surtos, registrados pela história em diferentes partes do país, apenas durante o tempo de vida de Nostradamus.

 

Conservas

Michel tinha o hábito de criar seus próprios remédios, e isso pode ajudar a explicar o relativo sucesso que teve contra a peste: a medicina da época, baseada em purgativos e sangrias, tendia a enfraquecer o paciente e torná-lo ainda mais vulnerável à doença.

Se os preparados de Nostradamus eram menos violentos do que a média do que seus colegas andavam prescrevendo, ele pode muito bem ter obtido uma taxa excepcional de “curas”. Nesse período, Michel de Nostredame interessou-se por alquimia e gastronomia, tornando-se um inventor de receitas de conservas e geleias. Sua principal obra publicada, fora do universo profético-esotérico, “Moult Utile Opuscule” (“Opúsculo Muito Útil”), de 1552, mistura receitas culinárias a prescrições médicas e a fórmulas de cosméticos (cosmética viria a ser seu principal campo de atuação na medicina).

Quando a praga diminuiu, ele, que havia deixado Montpellier para atender aos doentes em outras partes da França, retornou para completar o doutorado, que obteve em 1529. Na década de 1530, encontramo-lo em Agen, casado e com um par de filhos pequenos. No entanto, uma epidemia local – talvez outro surto de peste – levou toda sua família e destruiu sua reputação como médico na cidade. Em 1538, Nostradamus abandona Agen e inicia um périplo pelo sul da Europa.

Em 1544, Michel de Nostredame está de volta à França, mais uma vez combatendo um grande surto de peste na Provença. A partir de 1546, passa a tratar as vítimas da praga com suas “pílulas de rosa” – pastilhas feitas de uma mistura de serragem, cravos, aloé, cálamo e “trezentas ou quatrocentas rosas frescas, colhidas antes do amanhecer, pulverizadas” – obtendo resultados muito superiores aos dos médicos que insistiam no tratamento ortodoxo à base de purgantes e sangrias.

É interessante notar que tanto a má fama de Nostradamus em Agen (quando foi incapaz de salvar a mulher e os filhos da epidemia que assolava o local) quanto a boa reputação conquistada na peste de 1546 (com as pílulas de rosa) nada tiveram a ver com sua perícia, a eficácia dos remédios usados ou conhecimento médico – que na época, tanto no caso de Nostradamus quanto no de seus colegas ortodoxos, era quase inexistente, ainda mais no que dizia respeito à causa e tratamento de doenças infecciosas. Ele apenas teve azar num caso e sorte no outro. Essa é uma lição que médicos e pacientes modernos fariam muito bem em assimilar.

 

Best-seller

Flutuando na nuvem de fama e glória que o sucesso contra a peste lhe trouxera, Michel de Nostredame estabeleceu-se, nos anos finais da década de 1540, como o médico favorito da alta sociedade da cidade provençal de Salon. Ali passaria as últimas duas décadas de vida e, morto, viria a ser sepultado com honras especiais (o que não o poupou de ser vítima da Revolução Francesa: em 1791, alguns revolucionários de Marselha vandalizaram seu túmulo, e diz-se que um deles usou o crânio do profeta como taça para beber vinho).

A entrada oficial de Nostradamus no mercado de prognósticos e adivinhações deu-se com a publicação da primeira edição de seu Almanaque, em 1550. Com exceção de 1556, Nostradamus publicou um por ano, até sua morte (o último trazia previsões para 1567).

Nostradamus

 

Esses trabalhos não eram muito diferentes dos almanaques astrológicos e anuários esotéricos que se vendem em bancas de jornal hoje em dia, trazendo listas de feriados, datas de eclipses e previsões vagas o suficiente para encaixar em qualquer coisa (por exemplo, no almanaque para 1563 lê-se que no dia 1º de novembro, feriado de Todos os Santos, o Sol estará em Gêmeos e algo importante acontecerá graças a uso de “força pacífica”), além de previsões um pouco mais específicas para cada mês e também para o ano como um todo. Essas profecias em geral envolviam pragas e guerras. Nas palavras de Leoni, “poucas se cumpriram no ano e no mês previstos, ou em quaisquer outros”. De qualquer modo, os almanaques tornaram-se best-sellers.

 

Grandes previsões

Em 1555 ele inicia a publicação da obra que o tornaria famoso por toda a Europa, ainda em vida, e lhe garantiria fama na posteridade: as “Centúrias”, séries poemas enigmáticos de quatro versos cada, contendo profecias cifradas. Hoje em dia existem cerca de 940 quadras consideradas autênticas, além de diversas falsificações, imitações e distorções (incluindo algumas praticadas pela propaganda nazista).

A poesia das quadras é execrável, cheia de erros gramaticais e construções sintáticas sem sentido. Com base em textos deixados pelo próprio autor e pressupondo que Michel de Nostredame fosse um profeta sincero (isto é, não estivesse inventando bobagens deliberadamente), Leoni sugere que, para compô-las, Nostradamus entrava num estado alucinatório, de livre-associação de ideias e imagens, provavelmente induzido pela contemplação, por longas horas, do reflexo da chama de uma vela na superfície de uma tigela com água, que ele agitava usando uma “varinha mágica” de madeira aromática.

Depois de anotar as fantasias mais vívidas que lhe ocorriam, Nostradamus recorria à astrologia para dar sentido ao que havia visto – por exemplo, se lhe tivesse aparecido a imagem de uma ilha em chamas, ele poderia calcular o mapa astral do rei da Inglaterra, e buscar ali alguma previsão compatível.

Uma vez satisfeito de ter encontrado a resposta correta, Nostradamus escrevia uma quadra a respeito em latim, usando metáforas e alusões para tornar o texto obscuro, e então convertia o latim em uma mistura de francês e provençal sem se preocupar em adaptar a gramática e a sintaxe – a tradução era literal, palavra por palavra.

O resultado é uma escrita truncada, alegórica e enigmática, perfeita para o jogo do encaixe retroativo – dado um fato consumado, não é difícil, com alguma engenhosidade e imaginação, encontrar uma, entre as centenas de quadras deixadas por Nostradamus, que pareça “prevê-lo”. São esses encaixes a posteriori, somados à adulação que o astrólogo recebeu da elite europeia em seu tempo, que estão na raiz de sua fama.

Há historiadores que argumentam que as quadras não são assim tão abertas à livre interpretação: afirmam que um conhecimento do contexto histórico, político e cultural em que Nostradamus viveu permite decifrar diversos dos poemas de forma plausível e aplicá-los a figuras, Estados e condições bem específicos de seu tempo. Nessa leitura, no entanto, quase nada do que ele estaria “prevendo de verdade” veio a se realizar, e nenhuma de suas previsões de aplica a eventos de fora do “mundo civilizado” medieval (Europa, Norte da África, partes da Ásia). Nada de Kennedy, Trump, Bolsonaro, Lula ou Torres Gêmeas, portanto.

Uma visão intermediária – de que parte das quadras é resultado sincero de inspirações e alucinações, parte foi inventada deliberadamente e dessas últimas, todas ou a maioria se referem ao contexto do século 16 – permite encontrar versos que soam como pura propaganda política, exaltando a grandeza da França e vaticinando desastres e miséria para a Inglaterra e a Espanha, e quadras que são inspiradas em eventos passados, como batalhas ou intrigas políticas, transplantados para o futuro.

Qualquer que fosse o grau de sinceridade e honestidade de Nostradamus na composição de (alguma parte) de suas quadras, há evidência documental clara de que ele dominava à perfeição o repertório do charlatanismo, e não hesitava em usá-lo: certa vez um bispo lhe pediu que usasse seus poderes para encontrar um cálice de prata, roubado de uma igreja. A resposta à consulta, enviada por carta ao prelado, é um amontoado de ambiguidades vagas que não faria feio num espetáculo mediúnico.

Por exemplo, neste trecho: “Não tenham dúvida, senhores, de que em breve tudo será descoberto, e se isso não acontecer, tenham certeza de que um destino infeliz aguarda [os ladrões]...”

 

Nostradamus

Usar expressões como “não tenham dúvida” e “tenham certeza” numa sentença que diz que algo e seu oposto podem talvez acontecer (ou quem sabe não), e que além disso falha em dar qualquer informação concreta ou verificável, sobre o que quer que seja, é o tipo de coisa que não ocorre por acaso – trata-se de uma forma de arte.

 

A profecia precisa

Crentes no poder profético de Nostradamus gostam de apontar versos que parecem extremamente específicos e que dão a impressão de se terem cumprido literalmente – um exemplo comum é a 49ª quadra da nona centúria, onde se lê que “o Senado de Londres mandará matar seu Rei”, tida como vaticínio da execução do rei Charles I por ordem do Parlamento, em 1649, quase cem anos após a publicação original das previsões.

A chave aqui é que a quadra que contém o verso não menciona datas. No prefácio da primeira coleção de centúrias, Nostradamus diz que suas profecias cobrem os anos de 1555 a 3797. Isso é tempo mais do que suficiente para que todo e qualquer evento imaginável venha a se concretizar, seja a execução de um rei ou (profecia que se repete ao longo de diversas centúrias, ainda não realizada pelo fluxo da história) a remoção do papado de Roma.

“O melhor que se pode dizer de Nostradamus enquanto profeta é que ele às vezes acerta o que vai acontecer, mas nunca quando vai acontecer”, escreve Leoni. A única previsão clara, precisa e objetiva deixada por Nostradamus, feita no prefácio das centúrias, também clara, precisa e objetivamente jamais se concretizou: a da quase extinção da raça humana, que seria reduzida a um mero punhado de sobreviventes... em 22 de junho de 1732.

Agora, para finalizar, uma previsão minha: a de que a próxima coluna neste espaço será publicada no domingo, 22 de janeiro de 2023. Boas Festas a todos!

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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