A onda de medo e delírio vista nas estradas brasileiras ao longo da semana sugere que o bolsonarismo está se transmutando numa teoria conspiratória de contornos pré-milenaristas, à semelhança de QAnon ou do pessoal que acredita que corpos alienígenas foram resgatados por militares americanos em Roswell, Novo México, em 1947.
Quem adere a esse tipo de mentalidade conspiratória fica à espera de algum Grande Evento depois do qual “nada mais será como era antes”, os humildes (isto é, os conspiracionistas) serão exaltados e os príncipes e potestades do mundo (isto é, os adversários de quem têm inveja e por quem se sentem perseguidos ou desprezados) serão humilhados.
No caso de QAnon, o Grande Evento aguardado é a Tempestade, quando os líderes do Partido Democrata serão finalmente desmascarados e presos por controlarem um esquema internacional de pedofilia satânica. No caso dos ufólogos conspiracionistas, o que se aguarda ansiosamente é a Disclosure (“Revelação”, “Divulgação”), quando os governos do mundo finalmente confessarão que têm tecnologias e corpos alienígenas estocados há décadas.
O Grande Evento aguardado pelos bolsomínions é a tomada do poder supremo pelas Forças Armadas e sua transferência para Jair Messias Bolsonaro, ativando uma cláusula mítica e não existente da Constituição Federal. Assim como acontece com os fiéis de QAnon e dos extraterrestres, a adesão a esse tipo de ideologia transforma a realidade visível num texto cifrado, onde nenhum fato corresponde a si mesmo, mas na verdade simboliza ou codifica algo que acontece numa camada mais profunda do real, oculta dos olhos: eventos históricos são apenas vislumbres momentâneos e sintomas de uma grande batalha travada nas trevas.
Num ambiente desses, a atividade intelectual se reduz à atividade oracular, à interpretação de sinais e presságios. A imaginação conspiratória devora a razão. Uma expectativa apocalíptica domina o cenário – o que faz perfeito sentido, porque essa coisa toda começa, exatamente, com o Apocalipse.
Raízes cristãs
“Milenarismo” é o nome dado à crença, doutrina, ideia etc. de que a história humana caminha inexoravelmente rumo a uma utopia que durará por um longo período (“mil anos”, daí o termo). O conceito tem base mítica e religiosa. Na cultura ocidental, deriva de um trecho do Apocalipse, último livro da Bíblia, onde se lê:
“Depois disso vi um Anjo descer do céu. Nas mãos tinha a chave do Abismo e uma grande corrente./ Ele agarrou o Dragão, a antiga Serpente, que é o Diabo, Satanás. Acorrentou o Dragão por mil anos,/ e o jogou dentro do Abismo. Depois trancou e lacrou o Abismo, para que o Dragão não seduzisse mais as nações da terra, até que terminassem os mil anos”. (Ap. 20: 1-3).
Há três principais interpretações teológicas para a passagem. Existe o amilenarismo, que vê esse tempo sem mal, essa era de ouro de mil anos, como uma metáfora ou um fenômeno estritamente metafísico; o pós-milenarismo, que acredita no Milênio como uma profecia de coisas que terão lugar no mundo físico, aqui na Terra, e que depois desse período haverá a Segunda Vinda de Cristo e a batalha derradeira entre o Bem e o Mal; e o pré-milenarismo, que vê a Segunda Vinda e a Batalha Final acontecendo antes de a utopia se instalar, e como pré-requisito para ela.
Tudo isso poderia ser apenas curiosidade mitológica, mas esses sistemas de crença, e a forma como afetam o pensamento e o comportamento das pessoas, têm consequências sociais importantes. Como explica o cientista político Thomas Milan Konda (que faleceu em janeiro deste ano), em seu livro “A Conspiracy of Conspiracies”, historicamente as denominações cristãs pós-milenaristas tenderam a se envolver em obras sociais, auxílio aos pobres e, nos Estados Unidos do século 19, na luta pela abolição da escravatura: se Jesus só vai voltar depois da utopia, era importante construí-la.
Nas palavras de Kunda: “Deus cumpre sua vontade melhorando mundo, não o destruindo. As igrejas podem apressar o milênio por meio de evangelização, prece e reformas sociais (...) pós-milenaristas combinam uma escatologia profética com uma visão da história que é essencialmente progressista e otimista”.
Já os pré-milenaristas, esperando a Batalha Final a qualquer momento, davam (e dão) muito mais ênfase ao proselitismo, à conversão, à manifestação pública de fé: se o fim está próximo, não importa se a pessoa é pobre, passa fome ou vive na escravidão, porque tudo isso vai acabar logo, de qualquer forma. O que importa é que sua alma seja salva. Agora, já, enquanto ainda dá tempo. O fundamentalismo evangélico é, em geral, pré-milenarista.
Milênios seculares
O, digamos assim, gabarito mental oferecido pelo pré-milenarismo, o esquema narrativo de “grande evento apocalíptico seguido de utopia”, é adaptável, pegajoso e transborda facilmente para o mundo secular, seduzindo até mesmo intelectuais de forte inclinação antirreligiosa.
Karl Marx (1818-1883), em sua visão de uma revolução universal seguida de um mundo comunista sem classes, estava se deixando levar por uma fantasia de contornos pré-milenaristas. O clássico debate nas esquerdas entre “reformistas” e “revolucionários” pode muito bem ser enquadrado como uma projeção, refratada através do prisma da política secular, do debate escatológico entre cristãos pós e pré milenaristas.
Também há milenarismos étnico-genocidas, como o Reich de Mil Anos dos nazistas, onde o “grande evento” que abre caminho para a utopia é o extermínio das “raças inferiores”.
Falando em nazismo, a análise da ascensão de Adolf Hitler (1889-1945) pelo historiador especializado em movimentos milenaristas Richard Landes traz uma série de pontos que deveriam chamar a atenção dos brasileiros de hoje. Em seu livro “Heaven on Earth”, Landes escreve:
“Estudos milenaristas focam em como crenças viajam das margens ilegítimas de uma cultura para seu centro. No caso de Hitler, essa questão reveste-se de particular importância, já que ele e seu Partido Nazista pareciam tão ridículos no começo, no início dos anos 1920, e os resultados de seu sucesso foram tão catastróficos”.
Um líder e um movimento que vão do “ridículo” ao “catastrófico”. Lembram alguém? Landes segue afirmando que, em termos milenaristas, o sucesso de Hitler dependeu de convencer o povo alemão de quatro “fatos”:
- Que a batalha apocalíptica tinha começado;
- Que os alemães precisavam de um Führer brutal para liderá-los nessa batalha;
- Que Hitler era o homem certo para a tarefa;
- Que a vitória traria um reino utópico.
Difícil imaginar que esses quatro pontos, com algumas atualizações mínimas de personagem e contexto histórico, não estejam na mente dos mínions afugentados pela Galoucura, pela Gaviões da Fiel e dos que ainda esbravejam nas redes sociais, aguardando a ativação do Artigo 142 da Constituição imaginária lá da cabeça deles.
Depois de explicitar as quatro metas, Landes passa várias páginas explicando como Hitler conseguiu persuadir a Alemanha a aceitá-las: explorando conspiracionismo, ressentimento, desejo por ordem e hierarquia, messianismo, nacionalismo e a fusão entre política e religião. Escreve o autor:
“O nazismo é um fenômeno religioso em si: uma religião política que, independentemente do conteúdo, apelava para as mesmas questões e emoções cruciais da religião: fé, sentido profundo, redenção”.
Na Alemanha, o processo que levou o homenzinho ridículo da franja ilegítima da sociedade para o poder absoluto durou cerca de 15 anos, de 1919 a 1934. Em novembro de 1922, um perfil publicado em The New York Times assegurava que, segundo fontes altamente confiáveis, “o antissemitismo de Hitler não é tão genuíno ou violento quanto soa, e que apenas usa propaganda antissemita como isca para capturar seguidores”. Em 1923, ele acabou preso por tentar um golpe de Estado, mas foi anistiado e libertado em 1924.
Enfim, a história ensina que mostrar complacência e leniência para com homenzinhos ridículos que sofrem de delírios de grandeza, cospem ódio e desafiam a democracia configura uma estratégia perigosa (para dizer o mínimo). Mas a história também ensina que a Humanidade não aprende nada com a história. A nós, resta esperar que o apocalipse mínion jamais chegue porque, se chegar, o milênio que encontraremos do outro lado certamente não será nada utópico.
Se, por outro lado, tivermos sorte e a aurora do milênio mínion (assim como a Tempestade e a Disclosure) jamais vier a se materializar, é muito provável que os fascistas esperançosos continuem conosco ainda por muito tempo, aguardando portentos e presságios, e essa é uma realidade a que o corpo político brasileiro terá de se acomodar. O número de comunidades, tradições e grupos sociais que existem apenas pela expectativa de um Grande Momento que nunca chega já é, afinal, incontável.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)