Não está exatamente clara a motivação por trás do constrangedor espetáculo de necrofilia em torno do coração de D. Pedro I, cuja presença no Brasil vem sendo promovida como o “ponto alto” das celebrações dos 200 anos da Independência (supondo que haja mesmo algo a celebrar, mas essa é outra história). Existe, é verdade, o caso de amor entre bolsonaristas e monarquistas – que talvez adulem o atual presidente por tê-lo como prova viva de que a República não deu certo –, mas essa não parece ser explicação suficiente.
A médica Nise Yamaguchi, apontada com autora original da ideia, cita o fato de Pedro I do Brasil (Pedro IV de Portugal) ter sido um “ícone do liberalismo” em seu tempo, aparentemente subentendendo algum tipo de identidade imaginária entre o liberalismo europeu das primeiras décadas dos 1800s e o protofascismo dos autoproclamados “liberais” brasileiros hoje no poder. Acrescenta ainda que considera importante manifestar “a gratidão que temos pela Família Real no Brasil, por ter nos concedido a liberdade e também, antes disto, a liberdade dos escravos”.
Existe uma chave ideológica aí – a visão do desfecho de processos sociais complexos, tal como os que levaram à Independência e à Abolição, como “dádivas” de monarcas por direito divino –, algo que harmoniza bem com o caráter quase-sacerdotal do presente governo, e com a afinidade, comum em regimes autoritários, pelo sobrenatural.
Somando isso às falas de Bolsonaro e família que denotam adesão profunda a uma teologia rústica, pedestre, que vê a relação entre o humano e o sagrado em termos mágicos e supersticiosos – como se os favores da Graça pudessem ser comprados ou extorquidos por meio de subornos, encantamentos (repaginados como “orações”) e rituais –, chegamos a uma motivação extra para o interesse oficial na presença do músculo cardíaco luso entre nós, e para a pompa e solenidade com que foi recebido: feitiçaria.
A vinda do coração de Pedro I é, talvez, parte de uma tentativa de mobilizar forças metafísicas para salvar o presidente da derrota nas urnas. Não nos esqueçamos de que o pai ideológico do bolsonarismo, o falecido Olavo de Carvalho, acreditava piamente na existência de poderes mágicos e entidades sobrenaturais (para quem quiser conferir, as notas de rodapé 58 e 157 de “O Jardim das Aflições” são esclarecedoras – ou estarrecedoras, dependendo de ponto de vista).
Poder das relíquias
Nesse sentido, o coração do imperador pode ser visto como uma relíquia, da qual o bolsonarismo místico espera extrair pelo menos parte da energia cósmica necessária para manter viável o bolsonarismo político. A viagem do coração, sua recepção solene e a exibição pública em local de honra são todas etapas de um mesmo ritual herético de necromancia.
O cristianismo medieval sustentava uma profunda crença supersticiosa no poder das “relíquias” – pedaços de cadáveres de santos – para operar milagres. Essa veneração fez do cadáver de Santo Tomás de Aquino, por exemplo, alvo de intensa disputa religiosa e política logo após a morte do teólogo, no século 13. Hoje há pedaços do corpo do santo espalhados por toda a Europa (incluindo dois crânios “autênticos”).
A fascinação mórbida gerou um mercado lucrativo que deu lugar a uma verdadeira indústria. Mesmo fontes históricas católicas reconhecem que, no início do século 9, a exportação de corpos de mártires cristãos para fora de Roma havia assumido as proporções de um “comércio regular”.
De início, a Reforma Protestante era crítica do que via como excessos supersticiosos dos católicos, exatamente porque lembravam práticas mágicas pagãs, mas as denominações neopentecostais da atualidade tendem a ser mais flexíveis – ou sensíveis ao fluxo de caixa – quanto às fronteiras entre religiosidade cristã e superstição pagã, ofertando itens supostamente dotados de poderes milagrosos a seus fiéis, e promovendo rituais que, se despidos da roupagem teológica e do linguajar bíblico, são pouco mais do que encenações de cerimônias mágicas.
Réquiem
A esta altura, o leitor mais sensível talvez esteja incomodado com meu tratamento das categorias de religiosidade, mágica e superstição, como se fossem todas uma coisa só. Não são: em geral, cumprem funções sociais e psicológicas diversas, que podem até se sobrepor em alguns momentos, mas que costumam preservar identidades próprias. Do ponto de vista operacional, a religiosidade trabalha mais com a súplica e a expectativa (pede-se a intervenção da divindade, que pode vir ou não), enquanto a superstição lembra mais uma tecnologia (três batidas na madeira, e o azar está automaticamente afastado).
Mas também é verdade que, longe dos teólogos sofisticados, no calor das ruas, a distinção operacional se perde com muita facilidade, e práticas religiosas passam a ser vistas e usadas, implicitamente, como equivalentes a rituais mágicos e gestos supersticiosos.
James George Frazer, no clássico “O Ramo Dourado”, publicado originalmente em 1890, descreve como “entre as classes ignorantes da Europa moderna, a mesma confusão de ideias, a mesma mistura de religião e mágica, aparece de diversos modos (...) por exemplo, camponeses franceses costumavam acreditar, e talvez ainda hoje acreditem, que padres podem celebrar, com certos ritos especiais, uma missa do Espírito Santo cuja eficácia é tão miraculosa que jamais encontra oposição na vontade divina; Deus é forçado a conceder o que quer que se peça dessa maneira”.
O historiador Richard Cavendish, em sua “Enciclopédia do Inexplicado”, de 1974, cita o uso de missas de réquiem – cerimônias em homenagem aos mortos – para tentar causar mortes por meios sobrenaturais. No século 16, aponta, começou a circular na Europa o “Grimório de Honório”, atribuído (apocrifamente) ao Papa Honório III (1148-1227), livro reunindo uma série de feitiços de “magia negra” que requerem, como etapa inicial, que se reze uma missa.
Embora essas referências históricas digam mais respeito ao catolicismo dos períodos medieval e moderno – e sem esquecer que o bolsonarismo também seduz e incorpora católicos ultradireitistas, saudosos do que fantasiam ter sido a Idade Média –, é preciso voltar a enfatizar que o neopentecostalismo contemporâneo também tem uma grande afinidade pelo pensamento mágico e tende a manter uma fronteira difusa entre fé e feitiço.
E daí?
É verdade que o falecido imperador nunca foi canonizado, logo seu coração não representa uma “relíquia” legítima no sentido do catolicismo conservador dos monarquistas e da própria autointitulada “Família Real”, mas esses detalhes denominacionais devem pesar pouco nas preocupações de alguém que, sem se desligar da Igreja Católica, fez-se batizar por um pastor evangélico nas águas do Rio Jordão. O que importa, com o perdão da palavra, é a “energia”.
O historiador Thomas J. Craughwell, na introdução de sua enciclopédia sobre relíquias “Santos Preservados”, escreve que “qualquer um que pense que o culto das relíquias de santos é, ele mesmo, uma relíquia da Idade Média deveria entrar no eBay. Todos os dias, o comprador online encontrará um ambiente de negócios pujante para a venda de relíquias, de poeira da tumba de Cristo a farpas da Verdadeira Cruz e pedaços dos ossos de inúmeros santos”.
Craughwell lembra que relíquias “seculares” também são comuns, e cita, como exemplo, as luvas que a esposa de Abraham Lincoln usava na noite em que o presidente americano foi morto e que, manchadas com o sangue do marido, são preservadas até hoje.
Claro, a hipótese de que o candidato à reeleição aqui no Brasil, ou seu núcleo próximo, espera vantagens esotéricas da presença do coração de Pedro I no Brasil não implica que tais vantagens existam.
Não, a menos, fora da imaginação de gente que vive num mundo governado por um caça-níqueis cósmico, ativado por louvores, donativos e sacrifícios; povoado por espíritos, demônios e mergulhado em forças sobrenaturais; transido por batalhas épicas, invisíveis, do Bem contra o Mal, onde o lado das trevas é identificado com tudo aquilo que ameace a “utopia do normal”: um mundo altamente hierarquizado, onde cada um reconhece e aceita seu devido lugar, homens são homens, mulheres são mulheres, manda quem pode, obedece quem tem juízo.
Mas chama a atenção para a face transcendente do bolsonarismo ou, melhor dizendo, para aquilo que o bolsonarismo entende como transcendência, uma dimensão frequentemente negligenciada nas análises do fenômeno nefasto que assola o Brasil e que, não importa o resultado das urnas deste ano, continuará a assombrar a consciência nacional por muito tempo.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)