Epidemia de exorcismos

Apocalipse Now
12 jun 2022
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exorcista

 

A notícia chamou a atenção, primeiro, na revista semanal americana Newsweek: cerca de metade dos quase 300 padres católicos da Itália que atuam como exorcistas estão exaustos, sobrecarregados com excesso de trabalho. Alguns precisam lidar com até 50 casos ao dia. A nota na Newsweek referenciava material publicado originalmente pelo tradicional jornal Times, de Londres, então para lá me encaminhei.

O Times tratara do assunto no fim de maio. A reportagem (protegida por paywall) traz o título pitoresco de “Monges atacados, xingamentos gritados em latim: os exorcistas da Itália têm um trabalho dos diabos” e, em meio a entrevistas e depoimentos, apresenta resultados de um estudo sobre exorcistas conduzido por um instituto católico baseado em Roma, o Ateneu Pontifício Regina Apostolorum, que oferece cursos sobre exorcismo.

Infelizmente, o Times não oferece link para o estudo completo, mas apresenta algumas informações, como a alta prevalência de padres exorcistas na Itália (290) em comparação com outros países de maioria católica da Europa, como a Espanha (37), e ainda mais quando se compara a nações de maioria protestante (16 na Inglaterra e País de Gales, apenas três na Escócia). A Irlanda, outro país de cultura católica, tem apenas nove exorcistas católicos, mas sua população é muito menor que a dos outros países.

Em termos proporcionais, a Itália tem 0,5 exorcista por 100 mil habitantes; a Espanha, 0,07; Inglaterra e Gales, 0,03; Irlanda, 0,2.

Além dos números, a reportagem informa algumas indignidades sofridas pelos exorcistas (como as citadas no título do Times), às quais se somaram, durante a pandemia, “conduzir exorcismos em pessoas positivas para COVID-19”.

 

Revival

Não é exatamente novidade o fato de os exorcismos católicos estarem passando por um período de renascença e expansão nas últimas décadas. Nos anos 1970, o ritual de expulsão do demônio era tratado, mesmo dentro da Igreja, como uma espécie de curiosidade histórica (o que se reflete, por exemplo, no filme “O Exorcista”, que já discuti aqui, aqui e também no meu “Livro dos Milagres”). Em 1983, o Vaticano chegou a excluir do Código de Direito Canônico a exigência de que cada diocese – área sob jurisdição de um bispo – tivesse um exorcista nomeado; uma regra que, na prática, já havia se tornado letra morta em muitas partes do mundo.

Menos de dez anos depois, no entanto, a maré começou a virar. Em 1991, a Igreja Católica permitiu que o programa de TV americano 20/20 (uma espécie de Globo Repórter) televisionasse um exorcismo. Em 1999, o ritual de exorcismo foi atualizado – pela primeira vez desde seu estabelecimento formal, em 1614. Em 2004, a pedido do Papa João Paulo II (1920-2005), que teria conduzido pessoalmente pelo menos três exorcismos, uma carta recomendando que bispos voltassem a nomear exorcistas para suas dioceses foi enviada pelo Vaticano a várias partes do mundo. Naquele mesmo ano, o Ateneu Pontifício abriu a primeira turma do curso de expulsão de demônios.

Em 2019, uma reportagem indicava que, apenas na Itália, a demanda por exorcismos estava em 500 mil ao ano (o que dá uma média de cerca de cinco casos ao dia para cada um dos 290 padres exorcistas, 10% do pico de 50 descrito no estudo divulgado pelo Times, o que sugere que a distribuição geográfica de edemoinhados não é uniforme dentro do país).

 

Processo

Ao longo dos séculos, o rótulo de possessão demoníaca – literalmente, a tomada do controle do corpo e da fala de um ser humano por uma entidade metafísica mal-intencionada – foi aplicado a condições que hoje têm diagnóstico médico, como epilepsia, esquizofrenia e transtornos de conversão.

Avanços da ciência e da medicina foram empurrando a prática do exorcismo para o fundo do baú ao longo dos séculos 18 e 19. Durante a maior parte do século 20, a possessão foi vista, pela maior parte das autoridades católicas, como uma possibilidade teológica (o Novo Testamento registra, afinal, a expulsão de demônios) mas, na prática, algo tão raro que poderia ser tratado como inexistente. Isso, até o ressurgimento do interesse oficial no assunto, a partir dos anos 1990.

O catecismo da Igreja Católica ainda reflete algum respeito pela saúde mental e pela medicina na questão, ao determinar que “antes de se proceder ao exorcismo, é importante ter a certeza de que se trata duma presença diabólica e não duma doença”. A regra, no entanto, é aberta a interpretação: “ter a certeza” parece significar coisas diferentes para pessoas diferentes – e em contextos políticos diferentes.

Em depoimento à jornalista americana Tracy Wilkinson, autora do livro-reportagem “The Vatican Exorcists”, o principal candidato a exorcista popstar do mundo real, o padre italiano Gabrielle Amorth (1925-2016), dizia que se limitava a perguntar à pessoa em busca do exorcismo se ela já havia tentado um tratamento médico. Se o candidato respondesse que sim, Amorth “aceitava a palavra dada”.

Escreve ela:

“Amorth vê um papel diagnóstico para o exorcismo em si. Ele afirma que o exorcismo é o único procedimento que pode verdadeiramente e de modo definitivo determinar se uma pessoa é afligida por influência satânica. Só um exorcismo, na opinião dele, pode superar os truques que o demônio usa para ocultar sua presença”.

Em outras palavras, o diabo pode se esconder com sucesso de um médico, de um psicólogo ou de um psiquiatra, mas jamais de um exorcista.

 

Qual o problema?

Em seu livro, Wikinson descreve o caso de uma mulher que se submetia, há anos, a sessões semanais de exorcismo. Amorth dizia ter fiéis que o procuravam regularmente havia 16 anos. São pessoas que, exceto por algum desconforto (dores crônicas que os médicos não conseguiam tratar, dificuldades psicológicas) levavam vidas normais – não gente trancada em celas acolchoadas gritando blasfêmias ou crianças amarradas na cama, que disparam jatos de vômito verde e urram em aramaico.

Nesse aspecto, pode-se imaginar o exorcismo como uma forma de psicoterapia. E por que não? A evidência de que existe um inferno habitado por demônios é da mesma qualidade e solidez da que se pode encontrar a favor da existência de um inconsciente freudiano habitado por memórias reprimidas e desejos inconfessáveis: fundadores carismáticos, textos sagrados, exegese e depoimentos pessoais de clientes felizes e terapeutas, supostamente, vitoriosos. No fundo, seria apenas uma questão de escolha arbitrária de um vocabulário mais ou menos pitoresco para falar sobre angústias humanas comuns. 

A questão é que o exorcismo vem com uma bagagem moral, política, ideológica e metafísica que é ainda mais perigosa do que a da maioria das psicoterapias pseudocientíficas disponíveis no mercado, sejam as de base psicanalítica ou as “quânticas”. A percepção de que o apoio da Igreja à expansão dos exorcismos nas últimas três décadas é parte da guerra cultural conservadora é compartilhada até mesmo por alguns padres católicos.

Além de estigmatizar portadores de transtornos mentais, a normalização do exorcismo promove um clima de fanatismo político-religioso, em que os males da sociedade são todos atribuídos ao fato de as pessoas não serem tão fanáticas quanto o exorcista (proibir os livros de Harry Potter é um esporte popular nesse grupo). Gabrielle Amorth também considerava a prática de yoga demoníaca.

Para piorar, exorcismos são potencialmente letais. Quando se trata de uma batalha de absolutos como o Bem e o Mal, é de se esperar que haja baixas – no caso, a pessoa exorcizada – seja por violência ou negligência. A se levar em conta o noticiário, exorcismos pentecostais tendem a ter uma taxa de letalidade maior que os católicos, mas Roma está longe de ser inocente nesse quesito.

Numa nota positiva, o livro de Tracy Wilkinson, publicado em 2007, contabilizava 350 exorcistas ativos na Itália. O estudo divulgado pelo Times fala em 290, uma queda de 17% em 15 anos. Talvez esse demônio em particular esteja começando a voltar para o poço de onde nunca deveria ter saído.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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