Numa audiência pública realizada no Congresso americano na última terça-feira, 17, o vice-diretor de Inteligência Naval dos Estados Unidos, Scott Bray, e o subsecretário de Inteligência do Departamento de Defesa, Ronald Moultrie, afirmaram que nem o governo e nem as Forças Armadas dos Estados Unidos mantêm vestígios de tecnologia alienígena guardados, e que não existe evidência nenhuma, em poder das autoridades, de que a Terra tenha sido visitada por extraterrestres. A audiência foi o primeiro evento oficial do Legislativo federal americano sobre óvnis desde o fim da década de 1960.
A reunião foi presidida pelo titular do subcomitê de Contraespionagem, Contraterrorismo e Contraproliferação da Câmara dos Deputados, o democrata André Carson, que tem um interesse especial no assunto. Ele até já discutiu objetos voadores não identificados no programa de TV a cabo Alienígenas do Passado.
Durante a audiência, ambos os altos funcionários afirmaram, sob juramento, que o governo dos Estados Unidos jamais coletou materiais de naves alienígenas. Bray, citado pelo jornal The New York Times, afirmou aos congressistas que “não temos material nenhum. Não detectamos nenhuma emanação dentro da força-tarefa UAP que sugira qualquer coisa de origem extraterrestre”. UAP é a sigla em inglês de “Fenômeno Aéreo Não-Identificado”, uma tentativa de escapar das associações conspiracionistas e pseudocientíficas que cercam o acrônimo mais conhecido, “UFO”.
Pretextos
Mas, como Julieta já havia explicado a Romeu na tragédia de Shakespeare, “aquilo que chamamos de rosa, com outro nome, teria o mesmo doce perfume”. A conversa sobre UAPs é apenas uma camada fina de verniz aplicada ao velho caixote dos UFOs, parte de um processo de gourmetização da ufologia que já descrevi em artigos anteriores, publicados neste mesmo espaço.
A marcha teve início em 2017, quando uma dupla de ufólogos bem relacionados e bem conectados na política e nas redações conseguiu fazer com que óvnis voltassem a ser assunto nas páginas do mesmo NY Times que registrou a audiência pública de 17 de maio. Na época, o “gancho” (jargão que se refere à motivação imediata para a publicação de algum material jornalístico) era o vazamento de uma série de vídeos que mostravam imagens supostamente “inexplicáveis” captadas por pilotos militares – os tais UAPs.
O que se seguiu foi um bom exemplo da clássica tabelinha Estado-mídia na legitimação e popularização de ideias ruins: a publicação num jornal respeitável dá a agentes do Estado pretexto para que se gaste dinheiro público num assunto até então tratado como marginal, desprezível ou irrelevante, e o fato de agora haver dinheiro público envolvido dá a jornalistas pretexto para seguir cobrindo o tema.
Fabricando ignorância
Como diversos investigadores e pesquisadores já apontaram (e Bray e Moultrie deixaram claro em seus depoimentos, ainda que usando uma linguagem bem diplomática), o suposto caráter “misterioso” dos UAPs não passa de pantomima, um enigma cuja solução algumas pessoas fingem ignorar porque assim a vida fica mais divertida, vendem-se mais livros e documentários – isso tudo sem falar no acesso à verba pública que a persistência de problemas e mistérios “não resolvidos” traz.
Relembrando: a maioria dos UAPs revelados desde 2017 é formada por imagens produzidas por câmeras digitais montadas em aviões militares, incluindo câmeras de infravermelho, que captam emanações de calor que, depois, um computador traduz em gradientes de brilho numa tela.
Analisar imagens assim não é trivial: além do estado de movimento do avião e da própria câmera, há que se levar em conta as limitações e peculiaridades do equipamento. Durante a audiência, Moultrie disse que há um esforço em andamento para garantir que os sensores militares sejam melhor calibrados, para que os dados gerados tenham maior fidelidade.
Que problemas de calibragem e fidelidade explicam muitos UAPs é algo apontado há anos por investigadores como Mick West, administrador do site Metabunk.org, onde se encontra uma série de simulações que mostra como fenômenos simples (por exemplo, o jato de um avião comercial distante que, por alguns instantes, apareça voltado diretamente para a câmera infravermelha, causando um brilho intenso) podem explicar várias das imagens mais impressionantes.
Outros tantos UAPs também acabam se revelando drones. Como diz o NY Times:
“Representantes do Pentágono exibiram um vídeo e uma imagem obtida por meio de lentes de visão noturna que mostravam triângulos brilhantes movendo-se pelo ar. O primeiro vídeo, filmado na Costa Oeste em 2019, havia intrigado militares. Mas foi determinado que os triângulos pequenos na segunda gravação, feita neste ano na Costa Leste, são drones, sua aparência fantasmagórica causada por um artefato da lente usada para gerar a imagem”.
Existe um resíduo de imagens de UAPs que segue desafiando explicação mas, como bem aponta o historiador Jason Colavito, que há anos acompanha criticamente a cena americana de ufologia e suas conexões com o mundo da pseudo-história e pseudoarquerologia, inexplicado não significa inexplicável – significa apenas que não temos informação suficiente para elaborar uma boa hipótese. Saltar “não há dados” para “possivelmente veio de outro mundo” é a velha falácia do apelo à ignorância (“não sei quem você é, logo possivelmente você é a rainha da Inglaterra”).
Faturando ignorância
Em geral, a cobertura de imprensa da audiência pública optou por dar pouco destaque às explicações e afirmações sóbrias de Bray e Moultrie, relegando-as a parágrafos escondidos no meio do texto ou citando-as apenas de passagem, e preferiu promover os ângulos de “mistério” e “ameaça”. A CNN seguiu o caminho da ameaça, chamando atenção para a possibilidade de os UAPs serem sinais de tecnologia avançada russa ou chinesa. A revista Time foi pela senda do mistério, comemorando que o Congresso “finalmente está levando UFOs a sério”.
A rede de TV ABC, por sua vez, deu algum destaque para a explicação dos vídeos envolvendo drones, mas também ofereceu amplo espaço ao ufólogo e documentarista Jeremy Corbell, uma figurinha fácil do mundo das teorias da conspiração e da “investigação paranormal”, para comentar o assunto.
No Brasil, o Jornal Nacional (JN) foi ainda mais longe, abrindo as câmeras para o “historiador e autor de livros” Richard Dolan espalhar suas teorias de conspiração sobre como o governo americano esconde alienígenas de nós. Aqui, aliás, outro momento didático, desta vez a respeito do uso tático da omissão e da elipse pela mídia, ou como induzir o público ao erro apenas ficando quieto. Dolan realmente é, tal como foi apresentado pelo JN, historiador e, sim, de fato escreveu vários livros sobre óvnis (a Amazon registra pelo menos sete, alguns solo e outros em coautoria).
O que ficou de fora desse currículo resumido é que ele é um propagador de teorias conspiratórias alucinadas (em uma palestra, reproduzida no livro “The Secret Space Pogram and Breakaway Civilization”, Dolan diz que o flúor na água e as “toxinas em nossos corpos” são parte de um plano para emburrecer o povo), participante frequente daquela fonte seríssima de informação histórico-científica, a série Alienígenas do Passado (tendo aparecido em 23 episódios na última década) e que não é levado a sério por pesquisadores de verdade já há vários anos.
Dolan também é apóstolo do mito da Disclosure – o momento da “Grande Divulgação”, quando os alienígenas que supostamente já vivem entre nós vão se revelar (ou serão revelados), e que, segundo os aficionados, terá consequências comparáveis à Segunda Vinda de Cristo. Trata-se de um evento ao mesmo tempo distante e iminente, aguardado com tanto fervor pela franja lunática da ufologia quanto o Arrebatamento é pelos fundamentalistas cristãos.
Manifestações como a apresentada no JN põem-nos frente a frente com o bom e velho círculo vicioso do conspiracionismo: tudo que nega a realidade da conspiração é parte da conspiração e, portanto, confirma-a. Para quem está convicto de que os governos do mundo, e o dos Estados Unidos em particular, escondem informações sobre ETs, as falas de Moultrie e Bray representam apenas mais um caso de acobertamento. Para quem já acompanhava a tempestade de mídia em torno dos UAPs com alguma racionalidade, não trazem nada de novo.
No fim, toda a sequência de eventos, do material publicado originalmente pelo NY Times em 2017 até a audiência da última semana, carece de substância. Não é correto dizer que se dissolve no ar porque nunca houve nada sólido ali, para começo de conversa. Mas gera cliques e audiência.
O que se tem é uma espécie de série de não ficção ficcional: não-eventos justapostos de modo a criar a ilusão de mistério e coerência narrativa. A vacuidade, no entanto, tem consequências: o ciclo de legitimação das ideias malucas ganha vida própria. Na onda do interesse em UAPs, aqui ao lado, no estado de New Jersey, fala-se em criar uma bolsa de pós-graduação e pós-doutorado de US$ 250 mil (mais de R$ 1 milhão) para pesquisas sobre objetos voadores não identificados.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)