A Páscoa dos discos voadores

Apocalipse Now
17 abr 2022
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fenômeno aéreo

 

Neste ano, a Páscoa cristã e o Pessach judaico caem no mesmo fim de semana, uma coincidência até certo ponto esperada (ambos são festivais que celebram o início da primavera do Hemisfério Norte), mas não inevitável. O motivo mitológico da Páscoa é a crucificação e posterior ressurreição de Jesus; o do Pessach, a fuga dos hebreus do Egito. A sobreposição das festas ainda é acentuada pela tradição que diz que a morte de Jesus ocorreu num tempo de comemoração do Pessach.

Como muitas festas de origem religiosa que se tornam populares e perduram por séculos ou milênios, Pessach e Páscoa também são celebrados por pessoas que não dão muita (ou nenhuma) importância ao significado espiritual que os mais ortodoxos gostariam de ver preservado. Além disso, são reinterpretadas livremente à luz das transformações culturais que atingem os povos que as observam. Existem, até mesmo, interessantes releituras do Êxodo e da Ressurreição à luz da ufologia.

Citei, num artigo anterior, a tese de que os filósofos do Iluminismo, ao questionar e ridicularizar narrativas e dogmas religiosos, acabaram gerando, sem querer, uma enorme demanda por pseudociências: a parcela da população que, por um lado, não queria mais ser vista como “supersticiosa” ou “crédula” mas, por outro, também não estava disposta a abrir mão da conexão emocional com lendas e milagres, converteu-se num público ávido por racionalizações que, no limite, permitissem crer em tudo que a Torá, a Bíblia ou o Alcorão dizem e ser “científico”, agnóstico (ou até mesmo ateu) ao mesmo tempo.

 

Hipóteses alternativas

Espiritismos e ocultismos, em todas as suas variações, representam alguns dos produtos que surgiram para suprir esse mercado. À medida que a ciência crescia em poder e prestígio, tornando-se o árbitro da realidade factual, mais e mais os candidatos a “versão racional da fé” buscavam emular a linguagem, os adereços e aparatos da pesquisa científica.

Como mais de um pesquisador já notou – por exemplo, o antropólogo J. Gordon Melton e o especialista em história da ufologia Jason Colavito –, um resultado disso são ensinamentos “esotéricos” e a “sabedoria oculta” que na verdade preservam (Colavito usa o verbo “calcificar”), como verdades reveladas ou pontos de doutrina, hipóteses que um dia foram consideradas científicas, mas que acabaram descartadas pelo avanço do conhecimento.

“Ocultistas vitorianos tentaram ser ‘científicos’ e acabaram calcificando teorias mal concebidas, propostas pela ciência do século 19, para explicar fenômenos sobre os quais ainda não havia evidência suficiente”, escreve Colavito no livro “Theosophy on Ancient Astronauts” (“Tesosofia e os Astronautas Antigos”). Coisas como a ideia de corpos etéreos, de civilizações primordiais originadas em continentes perdidos, além de muita bobagem racista, continuam a espreitar a cultura ocidental por causa disso.

 

Moisés e o disco voador

No século 20 (e, graças à TV por assinatura, no 21 também), o movimento ufológico e seu filhote, o dos Deuses Astronautas, aprofundaram ambas as tendências – a da produção de hipóteses, narrativas e racionalizações para atender às necessidades afetivas e psicológicas dos “crentes racionais” e a da calcificação de ciência ultrapassada em dogma doutrinário.

Como o filósofo James R. Lewis nota em sua introdução ao livro “The Gods Have Landed” (“Os Deuses Pousaram”), o trânsito entre religião e ufologia é de mão dupla: há quem use a figura do extraterrestre para desmistificar milagres, mas também há quem use as características típicas atribuídas aos ETs (vieram do céu, trazem mensagens, são maravilhosos e poderosos) para divinizá-los. Ambos os processos, claro, servem à função pós-iluminista de “salvar as aparências” das lendas sagradas, racionalizando-as (ainda que de modo extravagante).

O primeiro caminho – que substitui deuses e anjos por astronautas – é o trilhado por Erich von Daniken, o hoteleiro suíço que cumpriu pena por estelionato e desfalque. Os direitos autorais de seu primeiro livro, “Eram os Deuses Astronautas?”, ajudaram a pagar multas e reparações, e o tempo na cadeia foi usado escrevendo uma segunda obra, “De Volta às Estrelas”. A bibliografia completa de Von Daniken é difícil de estimar, já que muitos de seus trabalhos são recompilações de material publicado em livros anteriores, mas a Wikipedia registra 21 títulos originais em alemão, sua língua nativa, lançados entre 1968 e 2015.

Sua rejeição da interpretação religiosa da Bíblia parece ter se tornado mais agressiva com o passar do tempo. Se em “Eram os Deuses Astronautas?”, de 1968, Von Daniken se limita a sugerir que certas passagens bíblicas poderiam ser lidas como contatos extraterrestres (Moisés usaria a Arca da Aliança para “comunicar-se com a nave”), em “War of the Gods” (“Guerra dos Deuses”, edição americana de 2020), ele é explícito: “Como todos os deuses mitológicos, o do Velho Testamento não era nada além de um alienígena”.

O teólogo protestante Barry Downing define bem a situação: Von Daniken vê na Bíblia “uma precisão histórica que deixaria os cristãos conservadores orgulhosos”, mas ao preço de esvaziar essa “história” de todo o significado religioso, rebaixando agentes divinos à condição de personagens de ficção científica.

Downing, ele próprio um promotor de interpretações ufológicas das Escrituras, faz o caminho oposto: vê discos voadores guiando o Êxodo (“Toda a montanha do Sinai fumegava, porque Javé tinha descido sobre ela no fogo; a fumaça subia, como fumaça de fornalha. E a montanha toda estremecia”, Ex.19:18), e arrebatando o Jesus ressuscitado (“Depois de dizer isso, Jesus foi levado ao céu à vista deles. E quando uma nuvem o cobriu, eles não puderam vê-lo mais”, At. 1-9), mas sugere que essas tecnologias estariam sendo empregadas por enviados espaciais em missão sagrada.

“Missionários modernos voam para diversos pontos da Terra, e a tecnologia que os transporta não anula o trabalho espiritual que realizam”, exemplifica ele na edição mais recente de seu livro “The Bible and Flying Saucers” (“A Bíblia e Discos Voadores”).

 

Mitos

Nessa leitura ufológica, tanto o Pessach quanto a Páscoa teriam surgido da interação entre seres humanos e visitantes extraterrestres. Na versão de Von Daniken, o significado religioso seria um erro de interpretação cometido por testemunhas “primitivas”. Na de Downing, seria ainda algo muito real, apenas mediado por tecnologias extraordinárias em vez de seres espirituais.

O uso de extraterrestres para explicar eventos maravilhosos apresentados na Sagrada Escritura representa uma clara violação do “Princípio da Exclusão de Hyman”. Denominada em homenagem ao psicólogo americano Ray Hyman, essa importantíssima regra heurística sentencia: “antes de tentar explicar um fenômeno, certifique-se de que há mesmo um fenômeno a ser explicado”. Em outras palavras, antes de especular sobre como Papai Noel cabe na chaminé, vale a pena checar se existe mesmo um Papai Noel.

Em linhas gerais, o mesmo se aplica às narrativas do Êxodo e da Paixão. Talvez até contenham núcleos de verdade histórica (é possível que um pequeno grupo de refugiados egípcios tenha ajudado a construir a identidade do povo de Israel em Canaã; e os romanos certamente crucificavam líderes rebeldes na Judeia), mas as partes dessas histórias que “requerem explicação” em termos sobrenaturais (ou extraterrestres, ou interdimensionais, ou...) devem ser aceitas como artigos de fé, por quem estiver disposto a tanto, ou tratadas como mitos.

A busca por um terceiro caminho pode ser estimulante para a criatividade e a imaginação (há muitos bons livros de ficção científica e fantasia cujos enredos giram em torno do que seria a “verdadeira verdade” sobe isto ou aquilo), mas se levada muito a sério traz o risco de dissolver o senso crítico e tornar o buscador vulnerável a todo tipo de exploração e charlatanismo.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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