A notícia da morte de Luc Montagnier, ganhador do Prêmio Nobel de Medicina de 2008 por seu papel como codescobridor do vírus HIV, levou-me a rever as anotações que tenho guardadas de uma reportagem que escrevi anos atrás para a revista Galileu, sobre nobelistas que, uma vez de posse do prêmio, voltam-se para o “lado obscuro”, passando a defender ideias pseudocientíficas, algumas realmente perigosas.
O caso mais grotesco talvez seja o de Charles Richet (1850-1935), ganhador do Nobel de Medicina de 1913, que se deixou convencer de que recortes de cartolina e cúmplices fantasiados de falsos médiuns eram mesmo fenômenos paranormais. Richet é o criador da palavra “ectoplasma”, usada em referência a um material supostamente “misterioso” (em geral, o “mistério” se resolvia em tecido fino embebido em tinta fluorescente) produzido por certos médiuns.
Richet já desenvolvia pesquisas paranormais antes de receber o Nobel, mas seu grande testamento sobre o assunto, um livro intitulado “Tratado de Metapsíquica”, veio bem depois, em 1922. As aventuras de Richet no mundo dos espíritos têm lá seu aspecto pitoresco, ainda hoje retêm um importante valor didático – o que ensinam sobre falhas da memória, vieses cognitivos, olhar seletivo para a evidência, etc. –, mas, em si, podem ser consideradas quase inócuas. O mesmo não é possível dizer do legado de Montagnier.
Gênese
Em um documentário de 2014 disponível no YouTube, “Water Memory” (“Memória da Água”), Montagnier (a imagem que ilustra este artigo baseia-se em um quadro retirado do filme, mostrando o nobelista a contemplar um tanque de água) apresenta-se como o sucessor de Jacques Benveniste (1935-2004), imunologista francês que chegou às manchetes em 1988, quando um artigo seu, publicado pela revista Nature, sugeriu que a água é capaz de preservar propriedades biológicas de materiais com que já teve contato.
Se isso fosse verdade, uma solução ultradiluída de (por exemplo) cafeína, onde não houvesse nenhuma molécula da substância, ainda seria capaz de causar insônia (ou curá-la, de acordo com a homeopatia mais ortodoxa). O efeito que Benveniste alegava ter detectado violaria leis fundamentais da física e da química, além de oferecer um mecanismo de ação capaz de tornar a já mencionada homeopatia plausível.
Após a publicação, a Nature enviou um comitê ao laboratório de Benveniste para acompanhar uma nova rodada de experimentos como os que haviam produzido os surpreendentes resultados.
O comitê determinou que, quando os procedimentos eram bem controlados e os experimentadores, cegados – isto é, não sabiam de antemão quais amostras deveriam produzir quais resultados para que o fenômeno se confirmasse –, o efeito desaparecia. Por isso, concluiu que o efeito apontado por Benveniste não passava de uma ilusão. Benveniste nunca aceitou o veredito, e sua insistência em seguir tentando provar a existência da memória da água pôs sua carreira em declínio.
Raios de DNA
“Minha vantagem sobre Benveniste é que ganhei o Nobel”, diz Montagnier no documentário, colocando-se na posição de dissidente heroico que enfrenta um sistema dogmático e, talvez, corrupto. “Sempre busquei o extraordinário, acho difícil trabalhar numa teoria estabelecida. Prefiro inovar”.
O trabalho do nobelista francês com memória da água veio à tona em 2009, com a publicação de um artigo em que o grupo de Montagnier afirmava ter conseguido detectar emissões de rádio em soluções de moléculas de DNA, e que essas ondas permaneciam detectáveis mesmo após sucessivas diluições.
No documentário, Montagnier diz que não só essas emissões seguem presentes na solução ultradiluída (isto é, depois de todo o soluto ter sido removido) como água destilada, se bombardeada com a mesma frequência de rádio captada no preparado inicial, passa a se comportar como se contivesse a molécula original. Em outras palavras, cafeína dissolvida em água gera radiação eletromagnética, e se essa radiação for lançada sobre água pura, a água pura passa a se comportar como se fosse café.
O documentário mostra o experimento “funcionando” – com a transmissão das propriedades físico-químicas de uma molécula de DNA na França para uma amostra de água destilada na Itália –, mas tudo o que temos são cientistas (Montagnier e seus colegas de pesquisa) olhando para telas com gráficos abstrusos, folheando relatórios e dizendo que tudo deu certo.
Não há análise independente desses resultados, nem avaliação da metodologia. O procedimento todo, inclusive as leituras feitas pelos pesquisadores, lembra muito a definição de “ciência patológica” de Irving Langmuir (1881-1957) ou de “campos nulos de pesquisa” de John Ioannidis – áreas em que o cientista acredita estar detectando fenômenos reais, mas na verdade o que capta não passa de ruído de fundo, flutuações aleatórias e efeitos causados por defeitos e limitações inerentes de seu equipamento.
Autismo e antibiótico
Tudo isso poderia ser apenas curiosidade teórica se Montagnier não tivesse começado a usar seu prestígio de nobelista e acesso à mídia para promover técnicas de diagnóstico e terapias baseadas nessas “descobertas”. Postulando que o DNA de agentes patogênicos – vírus e bactérias – também deve ter frequências de rádio específicas, o cientista passou a usar detectores de campo eletromagnético para diagnosticar infecções.
Ele então encontrou o que imaginou ser a assinatura de rádio de bactérias no sangue de crianças autistas, e propôs que o transtorno passasse a ser tratado com antibióticos. O documentário de 2014 afirma que mais de uma dezena de médicos já havia aderido a esse tratamento, e mais de 200 crianças já o haviam recebido.
Montagnier acreditava também ter encontrado a assinatura eletromagnética de bactérias em pacientes de aids, e passara a defender a ideia de que a doença seria causada pela ação conjunta do HIV com uma bactéria ainda não identificada.
De fato, sua capacidade aparentemente inesgotável de captar sinais de rádio emanados por soluções ultradiluídas do sangue de pessoas doentes levou-o a imaginar que praticamente tudo – de Alzheimer a câncer – seria causado por, ou com a participação de, bactérias ainda desconhecidas, mas cujo DNA deixava marcas eletromagnéticas na água.
Nenhuma dessas propostas jamais resistiu ao escrutínio científico, e é altamente provável que os “sinais de rádio de DNA bacteriano” que Montagnier acreditava estar vendo por toda parte fossem apenas flutuações naturais de fundo – como os “fantasmas” captados por pesquisadores paranormais que visitam casas abandonadas, com detectores de campo eletromagnético em punho.
Antivacinas
Em 2012, Montagnier compareceu a uma conferência “alternativa” sobre autismo nos Estados Unidos onde eram propagadas teorias conspiratórias, como a de que o transtorno seria causado por vacinas. Durante a atual pandemia, declarações suas ligando – falsamente – a vacinação ao surgimento de novas variantes viralizou na França, um dos países com maior taxa de rejeição a vacinas no mundo.
Não há nenhuma razão para imaginar que vacinas contribuam para o surgimento de novas mutações em um microrganismo. Mutações ocorrem quando o vírus se replica, e ele se multiplica de forma mais intensa e eficaz em pessoas cujo sistema imune tem maior dificuldade em contê-lo – que são, exatamente, as não vacinadas. O que favorece o surgimento de variantes é a demora em vacinar o conjunto da população.
É difícil dimensionar o dano que Montagnier causou ao propagar sua terapia sem lógica para autismo, ou ao atacar a vacinação, mas o fato de mais de 200 crianças autistas terem sido submetidas a cursos de antibiótico, receitados com base numa fantasia, é assustador. E a declaração errônea sobre vacinas e mutação foi replicada milhares de vezes em redes sociais.
O Escolhido
A decadência – que Montagnier negava de modo veemente: no documentário, diz que o trabalho com radiação de DNA era o auge de sua carreira – pode ser explicada, em parte, pelo caso de amor do cientista com o próprio “gênio”. O filme apresenta vários momentos de vaidade explícita (“sou antigo, como um uísque envelhecido”; “sentimo-nos como pioneiros, mergulhando numa nova área da ciência”) que só vêm reforçar os perigos do mito do “gênio intuitivo” para a relação entre ciência e público.
O pesquisador que tem a sorte de ver, uma só vez que seja, um salto intuitivo ou uma hipótese arriscada de sua criação acabar confirmada pelo método científico expõe-se ao risco de convencer a si mesmo, e a uma parcela do público acostumada a narrativas protagonizadas por Heróis Escolhidos, de o que realmente importa é a sua intuição, seu gênio particular: o processo, a regra da ciência seria só um detalhe, uma preocupação burocrática de mentes menores. Nesse caminho estão o ectoplasma de Richet e o fim melancólico de carreiras como as de Benveniste e Montagnier.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)