Uma das descobertas (se é que dá para chamar assim) mais importantes da filosofia da ciência é a de que nenhuma ideia jamais é testada sozinha. Quando usamos um telescópio para testar a afirmação de que a Lua tem crateras, estamos, ao mesmo tempo, pondo à prova a crença de que o telescópio mostra a superfície lunar tal como ela é. Se o instrumento que usamos nos mostrar uma Lua lisinha, qual das hipóteses deveremos rejeitar?
Pressupostos de todo tipo – que o telescópio é confiável, que os dados oficiais estão corretos, que o termômetro funciona direito, que não somos todos cérebros mantidos em jarras por alienígenas cruéis – constituem parte inevitável da atividade científica e, se pararmos para pensar um pouco, da própria vida. Esses pressupostos são às vezes chamados de “hipóteses auxiliares”, e entram como premissas implícitas em nossas cadeias de raciocínio – no processo pelo qual tomamos decisões e tiramos conclusões.
Há gente pessimista que acha que a inevitabilidade das hipóteses auxiliares compromete de modo irreparável nossa capacidade de fazer ciência, já que a atividade científica requer, como condição necessária, que sejamos capazes de descartar hipóteses, após realizar observações ou conduzir experimentos.
Só que, se nenhuma hipótese jamais é posta à prova em isolamento, como saber qual deve ser descartada – a que eu queria mesmo testar, ou alguma das auxiliares? O problema é o telescópio ou a Lua?
Pensando de modo um pouco mais abstrato: uma conclusão falsa, deduzida a partir de um conjunto de premissas, só permite afirmar que pelo menos uma das premissas que entraram no raciocínio é falsa. Em termos estritamente lógicos, não há como saber qual – ou quais – jogar fora. De novo: o telescópio ou a Lua? Ou seriam meus olhos?
Anomalias
Na prática, claro, fazemos ciência, e até que com algum sucesso. Embora o problema das hipóteses auxiliares – às vezes chamado de questão do “feixe de hipóteses” – seja muito real, seu impacto é bastante reduzido quando consideramos que diferentes hipóteses contam com diferentes graus de corroboração empírica. Falando de outro modo, algumas das hipóteses do feixe estão bem estabelecidas por observações e experimentos conduzidos ao longo da história, e outras são mais fracas ou têm bases menos sólidas. Em termos ideais, a hipótese que realmente queremos testar deve ser sempre a mais fraca do feixe.
Crateras na Lua, por exemplo, são observadas há mais de 400 anos. Se o único telescópio em que elas não aparecem é o meu, o defeito provavelmente está nele e não no satélite natural da Terra.
O critério geral pode ser enunciado assim: dado um resultado negativo e considerando o feixe de hipóteses testadas, ponha-se em dúvida/descarte-se aquela (ou aquelas) cuja rejeição implique a menor anomalia possível. Eu ter um telescópio vagabundo é algo muito menos “anômalo” do que as crateras da Lua terem sumido, ou nunca terem existido.
O princípio da menor anomalia possível é o que está por trás de regras como a exigência de evidências extraordinárias para corroborar alegações extraordinárias e da velha máxima de Sherlock Holmes: “Uma vez eliminado o impossível, o que restar, mesmo se improvável, deve ser a verdade”.
Nosso amigo pessimista pode pegar a deixa aí e insistir que, no mundo real, nunca podemos ter certeza de que conhecemos todo o feixe de hipóteses implicado em nosso teste, de que o explicitamos em toda sua extensão: talvez exista alguma crença inconsciente embarcada no experimento, e ela seja o verdadeiro elo mais fraco. Quem, afinal, garante que Sherlock encontrou o “improvável” certo?
Daí vem a necessidade especial de replicação rigorosa de resultados científicos. Cada vez que refazemos os controles de um experimento, ou os tornamos mais estritos, mais hipóteses auxiliares explicitam-se. Se jamais conseguiremos dar conta de todas é porque somos falíveis, assim como é nossa ciência. Mas um trabalho imperfeito ainda pode ser um ótimo trabalho – e melhor do que trabalho nenhum.
A advertência do pessimista também representa um alerta poderoso contra a tentação de se tirar conclusões bombásticas de resultados limitados, algo a que muito pouca gente parece capaz de resistir, hoje em dia.
Conspirações
No geral, eu diria que feixes de hipóteses são o tipo de coisa em que as pessoas deveriam prestar mais atenção. Não dizem respeito apenas à ciência, mas ao modo como pensamos e agimos na vida cotidiana. Pensando bem, ciência é algo que diz respeito ao modo como pensamos e agimos na vida cotidiana.
É muito fácil subestimar o poder das hipóteses auxiliares, tanto na ciência quanto no dia a dia. Boa parte delas, afinal, é composta de “fatos óbvios”, como o de que o Sol vai nascer amanhã ou que teremos de pagar impostos. Muitas vezes, no entanto, incluem também preconceitos e cacoetes ideológicos que deveríamos abandonar – ou, no mínimo, reexaminar.
Teorias da conspiração, por exemplo, são complexos de hipóteses auxiliares capazes de transformar qualquer coisa em evidência de qualquer outra coisa: uma vez aceita a ideia de que tudo que ocorre, só ocorre porque alguém assim quis e assim fez, o acaso e a incompetência tornam-se fontes inadmissíveis de anomalias e, com isso, a proverbial toca do Coelho Branco de Alice no País das Maravilhas abre-se em todo o seu esplendor.
Mas não são só alienígenas reptilianos ou comunistas antropófagos que habitam o universo dos pressupostos não-examinados e dão margem a conclusões estapafúrdias. Há vários modismos intelectuais, alguns que até contam com certo prestígio acadêmico, que fazem a mesma coisa. Uma característica que costuma distinguir propostas pseudocientíficas é o alto grau de recursividade, ou circularidade, do feixe de hipóteses auxiliares, ou baixa densidade empírica.
Traduzindo: pseudociências costumam tirar apoio de hipóteses que se reduzem facilmente a raciocínios circulares (sei que minha terapia é válida porque meu paciente foi curado por mim, e sei que meu paciente foi curado por mim porque minha terapia é válida) ou estão envoltas em feixes de hipóteses onde é virtualmente impossível escolher a mais frágil, aquela que propõe a anomalia mais extrema.
Vícios
Evitar questionar hipóteses auxiliares – na verdade, nem sequer enxergá-las – é um vício comum. Outro é assumi-las como tal no início da conversa (“vamos supor, por um momento, que...”) mas passar a tratá-las como fato estabelecido ao final da discussão, sem que sejam dadas razões suficientes para tal.
Pode-se argumentar que explicitar e analisar todos os feixes de hipóteses que presumimos no cotidiano tornaria a vida impraticável, levando a uma situação de paralisia semelhante à da fábula do asno de Buridan, que morreu de fome por ser incapaz de decidir qual a melhor pilha de feno.
Mas o extremo oposto tem potencial de causar danos talvez até mais graves, e é muito mais comum. Num ambiente polarizado como o atual, o número de hipóteses duvidosas “embarcadas” em nossos processos decisórios e cognitivos tende a ser ainda maior do que em situações passadas – ia escrever “normais”, mas sabe-se lá qual será a “normalidade” futura.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)