CPI e a filosofia

Apocalipse Now
22 mai 2021
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Francis Bacon

 

Linguagem é um labirinto de caminhos”, escreveu Ludwig Wittgenstein (1889-1951) em suas “Investigações Filosóficas”. “Você se aproxima por um lado, e conhece o caminho; você se aproxima do mesmo lugar vindo de um outro lado e já não sabe mais o caminho”. O aforismo, bem como toda a discussão de Wittgenstein sobre obediência a regras, cumprimento de ordens, jogos de linguagem e linguagens privadas me vieram à mente durante o depoimento do general Eduardo Pazuello na CPI da Pandemia, na última semana.

Para o filósofo austríaco, o significado de uma expressão é a compreensão que temos dela, e essa compreensão vem do hábito de vê-la sendo usada numa série de jogos de linguagem. Pessoas habituadas a diferentes jogos de linguagem podem, portanto, atribuir diferentes significados a uma mesma palavra, porque a compreendem de modo diverso. Pazuello, por exemplo, estava jogando um jogo de linguagem diferente do comum da língua portuguesa ao usar as expressões “ordem” e “missão cumprida” diante da CPI.

Para o ex-ministro, ao que tudo indica, uma determinação direta, expressada publicamente, de um superior hierárquico imediato não constitui “ordem”. E um gestor que agrava terrivelmente o problema que foi contratado para resolver conquista o direito de gabar-se de ter uma “missão cumprida”.

Voltando ao filósofo: Wittgenstein escreveu ainda que “existem certos critérios no comportamento de um homem (…) para ele ‘pensar que entende’, atribuindo algum significado a uma palavra, mas não o correto”. Nesse caso, aponta o autor, “pode-se falar em entendimento subjetivo”.

O entendimento subjetivo de Pazuello sobre a palavra “ordem” — que, como vimos, para ele não significa “determinação direta, expressada publicamente, de um superior hierárquico imediato” — torna difícil compreender como sua carreira militar pode ter prosperado ao longo de tantas décadas. Talvez esse novo entendimento seja de lavra recente.

Já a ideia de que as mais de 270 mil mortes por COVID-19 ao longo de sua gestão à frente do Ministério da Saúde representam uma “missão cumprida” parece ecoar outra reflexão de Wittgenstein, a de que sempre é possível inventar uma desculpa para fazer as coisas de modo errado e se dizer certo: “nenhum curso de ação pode ser determinado por uma regra, porque qualquer curso de ação pode ser compatibilizado com a regra”.

 

 

Indução

Outro ponto filosófico de interesse no curso da CPI é o do valor da indução enumerativa como método para a confirmação de hipóteses. “Indução” é um nome geral dado a modos de inferência que não produzem validade lógica, mas mais aplicado aos processos que buscam tirar conclusões gerais de casos particulares. O tipo mais simples de indução é a chamada “enumerativa” que, como o nome diz, opera enumerando exemplos: se eu vi o fenômeno X acontecer quando se apresentam as condições Y um grande número de vezes, concluo que Y tem alguma relação causal com X.

Senadores bolsonaristas têm abusado da indução enumerativa em sua defesa do chamado “tratamento precoce” para COVID-19, citando listas de estudos que supostamente comprovam a eficácia de cloroquina ou da ivermectina nesse contexto, ou cidades que teriam “zerado” o número de mortes graças a eles (vamos, por um momento, abstrair a questão de o quanto de verdade há nessas listas, e que de fato é bem pouco).

Outro filósofo austríaco, Karl Popper (1902-1994), fez uma famosa crítica ao uso da indução nas ciências, em livros como “A Lógica da Pesquisa Científica” e “Conjecturas e Refutações”. Popper apontou que a indução enumerativa abre espaço para que muita bobagem seja aceita como ciência, e por isso propôs um critério novo, o da falseabilidade; sugerindo que o melhor modo de determinar a veracidade de uma alegação deve envolver não o acúmulo de exemplos positivos, mas a busca de instâncias negativas.

Em uma crítica a Popper, o filósofo e psiquiatra teuto-americano Adolf Grünbaum (1923-2018) nota que a importância dos exemplos negativos, ou contraexemplos, já era reconhecida na tradição indutiva.

“O uso indutivo de casos positivos para ‘credibilizar’ hipóteses, de um modo ou de outro, não obriga o indutivismo, em si, a conceder status de credibilidade científica, ou mesmo a emprestar alguma credibilidade a uma hipótese H apenas porque há inúmeras consequências observacionalmente verdadeiras de H, e nenhum caso negativo”, escreve ele no ensaio Is Falsifiability the Touchstone of Scientific Rationality? Karl Popper Versus Inductivism (“É a Falsificabilidade a Base da Racionalidade Científica? Karl Popper Versus Indutivismo”).

Grünbaum chama atenção para o fato de que indutivistas, desde Francis Bacon (1561-1626), já reconheciam a diferença entre exemplos meramente positivos em relação a uma hipótese e exemplos confirmatórios, isto é, que realmente permitem elevar o grau e confiança na veracidade de uma hipótese. O exemplo confirmatório é aquele que não só é coerente com a hipótese defendida, como permite eliminar hipóteses rivais.

 

Falsos Ídolos

Nesse aspecto, mesmo se algum município brasileiro que usa o “kit covid” tivesse “zerado” o número de mortes causadas pelo SARS-CoV-2 (o que, de qualquer modo, não é verdade), esse dado, em si e por si, não contaria como exemplo comprobatório da eficácia da cloroquina e de seus amigos, porque não permite eliminar causas alternativas (lockdown, uso disseminado de máscaras, condições sociais e demográficas específicas, etc.).

O próprio Francis Bacon (cuja imagem ilustra este artigo) já citava o apego a exemplos positivos como um vício de pensamento em sua obra “Novum Organum”, nos capítulos em que discute os “ídolos” que anuviam o entendimento humano:

 

“E tal é o caminho de toda superstição, seja astrologia, sonhos, profecias, julgamentos divinos e o resto; quando os homens, tendo se apegado a tais bobagens, anotam os eventos quando elas se cumprem, mas quando falham, embora isso ocorra com muito maior frequência, negligenciam-nas e passam batido (…) é o erro perpétuo e peculiar do intelecto humano comover-se e excitar-se mais por afirmativas do que por negativas; quando deveria, propriamente, manter-se disposto imparcialmente diante de ambas. De fato, no estabelecimento de qualquer axioma verdadeiro, o exemplo negativo é o que tem mais força”.

 

O “Novum Organum” foi publicado originalmente em 1620. Ou seja, há pelo menos 401 anos que a civilização ocidental foi informada de que colecionar exemplos a favor de alguma coisa não serve como prova de nada, se os exemplos negativos também não forem levados em conta. É de se imaginar que a base governista tenha tido tempo de aprender isso.

Em seu ensaio, Grünbaum propõe que essa modalidade mais sofisticada de indutivismo, que ele chama de “indutivismo eliminativo” (porque avança não apenas acumulando casos positivos, mas também com o cuidado de ver se esses casos permitem eliminar hipóteses rivais) pode ser mais útil, em alguns cenários, do que o critério da falseabilidade de Karl Popper.

 

Melhor explicação

Outro filhote da tradição indutivista que deve dar as caras na CPI é o processo de inferência para a melhor explicação. O conceito vem do americano Charles Peirce (1839-1914), pai do chamado pragmatismo em filosofia. O britânico Perter Lipton (1954-2007) produziu um livro colossal sobre o assunto, com o título nada surpreendente de “Inference to the Best Explanation”.

A ideia geral é bem intuitiva: dada uma série de hipóteses que podem explicar um certo evento, a que o explica melhor é a que tem mais chance de ser verdade. Por exemplo, dada uma série de explicações possíveis para a livre circulação do novo coronavírus no Brasil e as quase 500 mil mortes, qual dá melhor conta dos fatos? O relatório da CPI deverá buscar essa melhor explicação.

Problemas comumente apontados no uso filosófico desse tipo de inferência incluem a objeção de que “melhor” é termo um tanto quanto vago, e também a de que a própria natureza de “explicação” não é lá muito clara. Afinal, o que significa “explicar” alguma coisa?

Lipton apresenta algumas opções — explicação é algo que reduz surpresa (uma coisa deixa de ser intrigante, ou surpreendente, uma vez explicada) ou gera entendimento (quando algo nos é explicado, entendemos do que se trata). No fim, o filósofo propõe que explicar a causa de alguma coisa (por exemplo, a causa dos quase 500 mil mortos pela pandemia do Brasil) é encontrar as razões pelas quais aquele evento, e não outro, partindo de circunstâncias muito semelhantes, aconteceu.

Nesse esquema, o modo de buscar uma explicação da causa de um fato F é escolher um “adversário” A, que poderia ter ocorrido em circunstâncias muito semelhantes mas não se deu, e descobrir qual o elemento que pode ser visto como presente em F e ausente em não-A.

Assim, a pergunta “o que explica a morte de 500 mil brasileiros de COVID-19?” pode ser reformulada como “por que, uma vez o SARS-CoV-2 tendo chegado ao país, morreram 500 mil brasileiros, e não muito menos?”

Escreveu Lipton: “o requisito central para uma questão contrastiva sensata é que o fato e o adversário tenham uma história largamente similar, contra a qual as diferenças se destacam”. O que é, portanto, que existe no Brasil real dos 500 mil mortos, mas não existe no Brasil hipotético onde o vírus foi controlado?

 

Últimas palavras

Hoje em dia, é possível encontrar livros com o título “A Filosofia de…” ou “… e a Filosofia” onde as reticências podem ser substituídas por praticamente qualquer coisa: O Simpsons, os Vingadores, Batman, Snoopy. De fato, há uma coleção com mais de 125 livros que busca associar Star Wars, Monty Python e um monte de outras coisas a pensamento filosófico — em tese, usando temas desses produtos da cultura popular para estimular reflexão.

Se isso vale para Thanos (discutido em “Avengers Infinity Saga and Philosophy”) por que não para Jair Bolsonaro? As principais diferenças entre ambos são o nível intelectual, o corpo malhado e a cor da pele.

Numa nota um pouco mais séria, é importante perceber o quanto de nossa situação atual, como país, deriva do descaso com a verdade, da manipulação da lógica, do obscurantismo, do obscurecimento deliberado, da construção de realidades paralelas que tentam se firmar pela força dos megafones (reais ou metafóricos). Todas essas são, no fundo, questões filosóficas. A relação entre linguagem e verdade é um problema filosófico que todos encaramos, quer percebamos ou não, cada vez que alguém se senta para depor na CPI ou que um senador se levanta para defender a cloroquina.

Voltando a Wittgenstein, sua discussão sobre obediência a regras e compreensão da linguagem leva à consideração do caráter coletivo e comunitário dessas atividades: o uso correto de uma palavra (ou o cumprimento correto de uma ordem) são determinados pela comunidade a que a língua e a ordem servem. É a nós brasileiros, portanto, que cabe decidir se regras foram corretamente cumpridas, quais — e por quem — no desastre que vivemos.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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