Foi com um misto de espanto e ridículo que a comunidade cética internacional recebeu a publicação, no início do mês, de um longo texto sobre como ufologia agora é um assunto sério, misterioso, digno da atenção de adultos sóbrios e pé-no-chão – e na New Yorker, quase-centenária revista americana que é um dos baluartes do jornalismo mais chique e do debate público mais intelectualizado não só nos Estados Unidos, mas em todo o mundo de língua inglesa.
O material, ostensivamente, pretende ser uma reportagem investigativa. Tem por título “Como o Pentágono Começou a Levar os UFOs a Sério”. Porém, uma leitura atenta revela que, na verdade, trata-se de um exercício clássico de “jornalismo baseado em conversa fiada” (ou “declaratório”) — onde o repórter transcreve o que um monte de gente lhe disse, sem se dar muito ao trabalho de verificar se as alegações correspondem aos fatos, e o pobre leitor que se vire para adivinhar onde estão os exageros, as mentiras, as elisões e as distorções.
É uma técnica tradicional, ainda muito valorizada (em minha opinião, excessivamente valorizada) entre os colegas da área e, às vezes, um mal necessário, mas difícil de defender quando entrevistados falam groselha sobre eventos ocorridos já há décadas e que podem ser checados com facilidade, por exemplo, o “óvni” de Kekcsburg (EUA) de 1965, na verdade uma queda de meteorito amplamente documentada.
Gourmets em ação
A reportagem na New Yorker é apenas o passo mais recente na marcha de gourmetização da ufologia, que teve início com uma série de reportagens publicadas por aquele outro baluarte do jornalismo chique, The New York Times, em 2017.
Assim como o trabalho mais recente na New Yorker, o material lançado pelo NY Times faz algum esforço para dar a impressão de que não tratava de discos voadores, conspirações ou de alienígenas entre nós, mas sim de um registro “frio” do fato de que existe gente importante no governo americano, e no meio militar, preocupada com coisas esquisitas no céu.
Esse verniz, no entanto, se desfaz quanto prestamos atenção a três detalhes dos textos do NY Times: primeiro, o amplo espaço dado ao excêntrico magnata americano Robert Bigelow, um entusiasta de alienígenas, fantasmas e fenômenos paranormais em geral; segundo, o tom de “mystery mongering”, isto é, de ênfase no aparentemente “inexplicável”, em detrimento de uma busca séria por explicações (o leitor, mais uma vez, que se vire); e o nome de uma das coautoras da série, a jornalista de ufologia Leslie Kean, autora do best-seller de 2010 “UFOs: Generals, Pilots, and Government Officials Go on the Record” (“UFOs: Generais, Pilotos e Autoridades Falam Abertamente”).
Kean (que na reportagem da New Yorker aparece como personagem principal, alvo de uma verdadeira “hagiografia”, nas palavras do investigador cético Robert Sheaffer) é o eixo central do processo de gourmetização dos homenzinhos verdes, num exemplo fascinante do poder de redes informais de influência social e política em moldar a percepção da realidade: sua árvore genealógica é quase um pomar de influência política e econômica.
Poder e tradição
Seus ancestrais, por parte de pai, estiveram envolvidos na proclamação da independência dos EUA; por parte de mãe, sua família remonta aos primeiros colonos ingleses na América do Norte. Seu avô foi deputado; seu tio, Thomas Kean, foi governador do estado de New Jersey por dois mandatos e chefiou o comitê que investigou os atentados de 11/9. Joe Podesta, importante político do Partido Democrata, que serviu nos governos de Bill Clinton e Barack Obama, é o autor do prefácio de “UFOs: Generals, Pilots, and Government Officials Go on the Record”.
Como jornalista, Leslie Kean começou escrevendo sobre violações de direitos humanos em Mianmar, nos anos 90, e depois trabalhou como apresentadora de um programa jornalístico de rádio “de esquerda” (segundo o perfil da New Yorker) na Califórnia. Antes de chegar ao jornalismo, ainda segundo o perfil, sua vida era marcada por “busca espiritual” (facilitada pelo dinheiro da família).
Nesse contexto, é fácil entender a propensão da chamada elite liberal americana — os políticos, intelectuais e jornalistas mais à esquerda no espectro político e cultural dos Estados Unidos — em ver Kean como “uma de nós”. E se “uma de nós” acredita que existem naves alienígenas fazendo manobras radicais na atmosfera terrestre, e que agências do governo escondem informação sobre visitantes de outros planetas, então essas ideias não devem ser malucas. Porque, afinal, “uma de nós”.
Espírito de corpo
Essa modalidade de “epistemologia identitária” — onde o mérito presumido de um tema ou de uma ideia muda de acordo com o grau de identificação que temos com seus proponentes e defensores — não é, claro, exclusividade da esquerda. Argumentos ruins contra medidas de restrição para conter a pandemia, ou de negação do aquecimento global, muitas vezes ganham passe livre quando circulam à direita, para ficar em apenas dois exemplos salientes.
O acesso às páginas (impressas ou virtuais) de veículos de prestígio costuma ser limitado por dois fatores, escassez de recursos — no universo das mídias clássicas, jornal, rádio, televisão, não se desperdiçam papel ou tempo no ar — e critério editorial. Como a internet reduz bastante o problema de certos tipos de escassez (embora crie outros, como de verbas e atenção), o critério editorial acaba se tornando o principal filtro, e a epistemologia identitária pesa muito aí.
Um exemplo de falácia cuja “validade” varia de acordo com a fonte e as predisposições do receptor é a do feixe de gravetos: a de que evidências individualmente fracas (“gravetos quebradiços”) podem, por mera acumulação, provar alguma coisa (formar um “feixe inquebrável”).
Isso, obviamente, não faz sentido: um milhão de baldes sem fundo não carregam mais água do que um único balde intacto. Mas a mesma pessoa que enxerga a falácia quando ela é usada, por exemplo, na defesa da cloroquina pode acolhê-la com simpatia quando o assunto são extraterrestres ou óvnis: Leslie Kean organiza todo seu argumento em torno dela.
Ampliando o cardápio
Cerca de um mês antes da hagiografia de Leslie Kean ilustrar as páginas da New Yorker, o NY Times havia publicado texto leve, no melhor estilo “jornalismo baseado em conversa fiada”, tratando do aumento dos avistamentos de óvnis sobre a metrópole americana durante a pandemia. O material termina com um ufólogo anônimo reiterando o princípio do feixe de gravetos: “Se um número grande o suficiente de pessoas que vê óvnis reportá-los (…) o mundo acreditará que dizem a verdade”.
A ufologia extraterrestre/conspiracionista (definida em oposição aos estudos de caráter histórico, psicológico e social sobre o tema) não é a primeira pseudociência a ganhar ares sofisticados e gourmetizar-se para atingir o público que gosta de se imaginar “qualificado”. A astrologia é um exemplo evidente de nova queridinha da mídia estilosa, e há ainda as pseudociências que já nasceram gourmetizadas e nunca desceram do salto alto, como a psicanálise (cujo papel social foi comparado ao da astrologia, veja só, pela revista New Yorker, numa nota de outubro de 2019).
No Brasil, a gourmetização da astrologia já está consolidada, mas a da ufologia ainda parece esperar sua hora e sua vez. Por aqui, onde a conexão entre alienígenas e temas espirituais é forte — tanto a teosofia quando o kardecismo, ambas doutrinas influentes no meio esotérico nacional, postulam visitantes de outros mundos —, o processo pode muito bem já estar em andamento.
Só falta a grande mídia abrir espaço para algum ufólogo careca de blazer e gola rulê, com cara de “um de nós”, dar seu recado. Tendo em vista a queda nacional pela mimetização de modas culturais, talvez não demore muito.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)