Encontrei a expressão "tone troll" (literalmente, "troll de tom"), pela primeira vez, há 13 anos, em meio às reações da comunidade cética/racionalista internacional à palestra Don't Be a Dick ("Não Seja um Babaca"), do astrônomo e divulgador de ciência americano Phil Plait. Plait, que no blog Bad Astronomy analisou à exaustão bobagens como as teorias da conspiração em torno do Projeto Apollo, sugeria na palestra que divulgadores de ciência, principalmente nas trincheiras do movimento cético, evitassem tratar os oponentes como idiotas. As pessoas raramente mudam de ideia quando são xingadas, ponderava ele.
Plait foi rapidamente acusado de ser um "tone troll". Definição: alguém que, embora concorde com a substância do que você diz, dá-se ao trabalho de vir a público criticá-lo pela forma como você diz. "Astrologia não faz sentido, homeopatia é uma bobagem, certo, concordo, mas por que você não respeita os sentimentos das pessoas?" Essas é a essência do "tone troll" (para o registro: acho que Plait foi acusado injustamente; sua fala tem muitos pontos bons e válidos).
Quando o astrônomo fez a palestra, o Twitter ainda não existia, e os níveis atuais de ansiedade (plenamente justificada) com o movimento antivacinas e outras formas de negacionismo científico eram inimagináveis fora de romances distópicos. Hoje, não só o “tone trolling” virou uma espécie de esporte das multidões, como já atingiu níveis metalinguísticos – há “tone trolls” que patrulham “tone trolls”, e “tone trolls” recursivos – “dar carteirada de especialista não funciona. Acredite, sou um especialista”.
As justificativas para trollagem de tom vão desde um autoproclamado amor universal por todas as criaturas (com a possível exceção dos trollados) a considerações mais abstratas de ética e etiqueta e, por fim, preocupação com a efetividade da mensagem (como Plait pergunta em sua palestra, “quantas pessoas aqui mudaram de ideia sobre alguma coisa depois de serem chamadas de idiotas?”).
Debates acalorados entre "tone trolls" e suas vítimas consomem uma energia fantástica. Gente que nunca moveu um dedo para estimular a vacinação ou condenar o uso de horóscopos por departamentos de RH de repente se põe a escrever textões intermináveis, condenado quem faz isso de modo mais contundente ou abrasivo. Tuítes sarcásticos sobre a ineficácia do sarcasmo multiplicam-se como pingos a bordo da USS Enterprise (para quem é novo demais para pegar a referência, detalhes aqui).
A reação à trollagem de tom também pode ser desproporcional, aliás; há um temor difuso de que apelos ao "respeito pelos sentimentos" sejam apenas o início de um declive escorregadio que leva a leis contra blasfêmia e a casos de inversão de valores, com a que acometeu os intelectuais europeus supostamente sofisticados que apoiaram a fatwa contra Salman Rushdie.
Eficácia
A questão de se encontrar o tom na divulgação científica, ainda mais em tempos de pandemia, é importante, certamente. Se estamos preocupados em causar um impacto cognitivo (mudar crenças) ou comportamental (não compre isso, não dê dinheiro para aquilo, vacine-se), garantir uma recepção simpática à mensagem parece uma preocupação óbvia.
E, trollagens à parte, há pesquisas que indicam que as pessoas tendem a rejeitar informações que agridem seu senso pessoal de identidade, e que demonstrar respeito pelas emoções e preocupações do público que buscamos convencer é uma boa maneira de manter o canal de comunicação aberto. Principalmente quando se trata de comunicar riscos durante uma emergência, empatia e respeito são palavras-chave.
Mensagens em tom agressivo tendem a ser vistas como menos confiáveis, ao menos em certas situações. No entanto, há também pesquisas que indicam que a agressividade pode aumentar a percepção de qualidade de uma mensagem científica, se o tom agressivo não se chocar com as expectativas do público – basicamente, se as pessoas já esperam porrada, bem-vinda a porrada; se não esperam, no entanto, a rejeição pode ser significativa (mais resultados do mesmo grupo de pesquisadores aparecem aqui e aqui).
No caso dos movimentos antivacina, virou meio que consenso que é preciso dividi-lo entre os extremistas (sobre os quais há muito pouco a fazer, além de tentar minar sua aparência de legitimidade) e os hesitantes (cujas dúvidas devem ser esclarecidas da forma mais educada possível, com, adivinhe só, empatia e respeito).
Esses resultados, principalmente os relacionados à questão da identidade pessoal, costumam ser interpretados como indicando que é necessário moldar a mensagem de modo a preservar o laço emocional que une a pessoa com quem estamos conversando ao grupo à que ela pertence: é preciso dizer que você pode ser cristão e aceitar a teoria da evolução, pode ser um fundamentalista do livre mercado e aceitar que existe um aquecimento global antropogênico, ser a favor da reforma agrária e aceitar que transgênicos não causam câncer ou autismo.
Isso faz com que muitas críticas comumente classificadas como "trollagem de tom" tenham sentido. Mas, primeiro, é preciso notar que a conciliação entre fato e identidade tem limites: "você pode ser um terraplanista e aceitar que a Terra é redonda" soa bizarro, para dizer o mínimo.
Segundo, públicos, plataformas e situações diferentes requerem mensagens em formatos diversos que, afinal, modulam a recepção do tom. E é aí, creio, que muitos trolls de tom revelam ter ouvido duro: uma espantosa insensibilidade a questões de ambiente e contexto.
O fundamentalismo da gentileza cai em duas das mais velhas armadilhas do pensamento sobre comunicação, a pressuposição de passividade (o público recebe a mensagem “como ela é”, sem filtro contextual ou reinterpretação) e a confusão entre as dimensões de “certo” e “errado” com as de “adequado” e “inadequado”. Uma coisa é gritar um palavrão durante um jogo de futebol; outra, no meio da igreja, durante uma cerimônia de casamento.
O vocabulário do churrasco não é o vocabulário da missa. Achar que uma regra geral da boa comunicação (“evite palavrões” é um exemplo, há vários outros) tem aplicação universal é perder de vista uma sutileza que, convenhamos, nem é tão sutil assim.
Hora para tudo
Parafraseando o Eclesiastes, existe um tempo para passar a mão na cabeça e existe um tempo para meter o pé no peito. A sabedoria está em distinguir qual a estratégia mais adequada para qual público, em qual momento. Se grosseria não funcionasse nunca, Olavo de Carvalho não teria se tornado uma das figuras mais influentes da internet brasileira, enquanto a maioria dos patrulheiros dos bons modos mal consegue monetizar um canal do YouTube. E Jair Bolsonaro jamais teria sido eleito.
(Parêntese: há quem diga que o tom agressivo e polarizado só faz sucesso com o público interno, enquanto aliena e afasta o externo. Mas tanto Carvalho quanto Bolsonaro saíram de nichos limitados e atingiram alcance de massa, sendo do jeitinho que são. Fecha parêntese).
Para que não me acusem de estar minando meu argumento ao recheá-lo apenas de exemplos em que o tom agressivo foi usado para o mal, contemplemos o caso de Roberto Burioni, o médico italiano que basicamente abriu o debate público sobre os perigos do movimento antivacinas do seu país, e o fez chamando todo mundo de imbecil. O título do segundo livro de divulgação científica de Burioni, que em tradução livre poderia se chamar “Uma Conspiração de Asnos: Por Que a Ciência Não Pode Ser Democrática”, não é exatamente um carinho.
Em sua palestra, quando Phil Plait pergunta, à audiência, se alguém ali já havia mudado de ideia depois de ser chamado de idiota, alguns membros da plateia levantam a mão dizendo, sim, aconteceu comigo. Não muitos. Alguns.
Há uma preocupação legítima de que um tom acerbo acabe assustando e afastando gente que poderia se beneficiar do que temos a dizer – efetivamente, trancando essas pessoas “do lado de fora” da mensagem. Mas há públicos que são atraídos, e até mesmo estimulados, por retórica agressiva.
Muitas moradas
Um problema fundamental de muito “tone trolling” é a impressão de que existe uma receita única para falar com a cidade e o mundo. Não há. É por isso que precisamos de um ecossistema que inclua do reverente ao ofensivo, do simpático ao ultrajante. Um conselho repetido com frequência é o de que se deve buscar enquadrar questões científicas de modo que o público-alvo tenha a oportunidade de estabelecer uma relação pessoal com elas. Escolhas de tom e vocabulário são importantes para isso.
Em condições normais de temperatura e pressão, quando nos dirigimos a pessoas movidas por dúvidas sinceras, preocupações honestas ou por um desconhecimento verdadeiro do que é o caso, é claro que um tom civil, uma atitude de acolhimento, empatia e respeito são o melhor caminho. Se debatemos com alguém que está de fato preocupado em descobrir a verdade (e não em “ganhar” a discussão a qualquer preço), os velhos princípios da boa dialética – caridade interpretativa, busca por pontos comuns, respeito mútuo – devem ser mantidos o tanto quanto possível.
Mesmo nessas condições, no entanto, alguns públicos podem aceitar, abraçar ou esperar um tom que, a ouvidos de fora, poderia soar pouco gracioso. Além disso, “condições normais” não prevalecem o tempo todo. E, do mesmo modo que a propensão da imprensa em “dar voz a todos os lados” de uma questão pode ser usada como arma por gente mal intencionada, a gentileza e a boa vontade discursiva, também podem.
A autocrítica sobre o tom das mensagens de comunicação científica é importante, mas também é importante que essa autocrítica seja específica: o tom desta mensagem, visando este efeito, frente a este público, neste momento e neste contexto, diante destas expectativas, é adequado ou não? Se for para virar algo do tipo “nunca diga um palavrão, nem mesmo se jogarem uma bigorna no seu pé”, aí é só trollagem, mesmo.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)