Todo mundo achando que 2020 finalmente seria o ano em que a imprensa aprendeu a levar a ciência sério, e eis que faltando dez dias para a virada, o maior conglomerado jornalístico do Brasil, o Grupo Globo, resolve pedir a astrólogos que “expliquem” a conjunção entre Júpiter e Saturno, momento raro em que os dois maiores planetas do Sistema Solar aparecem juntos no céu (essa junção, antes que alguém pergunte, é apenas aparente, causada pela posição dos planetas em relação à Terra: na verdade, os astros continuam afastados entre si por uma distância cinco vezes maior do que a que separa a Terra do Sol).
E os astrólogos foram convidados a se manifestar não no Fantástico ou em outros espaços dedicados a variedades, bobagens e “infotainment” (isto é, que não distinguem informação de entretenimento), mas em supostos templos das “hard news”, das notícias sérias que podem influenciar os rumos da nação – Jornal Nacional e Globonews. O que só vem mostrar que alegria é mesmo feita para durar pouco ou, nas palavras do grande estadista ateniense Sólon (638 AEC – 558 AEC), “nenhum homem que ainda respira pode se considerar feliz”.
Drama demais? Talvez. Fim de ano, diz um certo senso comum, pede pautas mais leves. Mas, primeiro, a leveza já poderia ter vindo da astronomia, talvez a mais poética das ciências, sem necessidade de apelar para crendices e mistificações. Segundo, é preciso muito cuidado com esse pretexto, o da “leveza”. Quando se trata a astrologia como se fosse coisa séria, no mesmo espaço em que as pessoas se acostumaram a ouvir falar de vírus, distanciamento social e vacinas, um fluxo indevido de credibilidade é quase inevitável. O meio fortifica a mensagem.
Claro, se a espécie humana fosse tão racional quando dizem os press-releases, 2020 deveria ser o ano em que todo mundo parou de levar astrólogo a sério. Não bastassem os argumentos baseados em puro bom-senso (datando dos tempos de Cícero – 106 AEC a 46 AEC – e Sexto Empírico – 160 EC a 210 EC), ciência fundamental (de Galileu em diante) e psicologia (a partir, pelo menos, do trabalho de Bertram Forer na década de 1940), tivemos ainda o fracasso retumbante da “arte” e de seus praticantes em soar o alerta da pandemia. Já que fim de ano é tempo de retrospectiva, cito aqui um trecho de artigo que escrevi meses atrás:
“Vejo um ano muito bom e produtivo”. Foi assim que a astróloga americana e best-seller internacional Susan Miller resumiu suas impressões para 2020, em entrevista publicada em novembro de 2019 no site Fashion Week Daily. “O que é excepcional sobre o ano é que Júpiter se ligará a Plutão, algo que acontece a cada 13 anos. É uma fantástica assinatura de sucesso”, disse ela, cheia de entusiasmo. Em entrevista à rede de TV CBS, concedida em janeiro — quando o novo coronavírus já dava suas primeiras voltas — Miller dobrou a aposta, prevendo “um grande ano, um ano próspero. Não vejo recessão”. Para nativos de Touro, em especial, ela previu “viagens internacionais”.
No Brasil, o astrólogo João Bidu — dono de um pequeno império editorial de publicações esotéricas, centrado na cidade de Bauru (SP) — havia previsto um 2020 “mais leve” do que 2019. No YouTube, depois de fazer as mesmas previsões que qualquer pessoa de bom senso faria (celebridades vão se divorciar, presidiários vão se rebelar, algumas pessoas vão ganhar na loteria), Bidu acrescenta que 2020 assistiria a uma “sensível melhora da imagem do Brasil no exterior”, “melhora considerável no emprego” e, que “viagens internacionais devem crescer de forma robusta, melhorando o fluxo de estrangeiros para o nosso país”. Será que os taurinos de Miller viriam todos para cá?
Os céus disseram a Bidu que neste ano haveria “uma grande arrancada para [o Brasil] se tornar um dos grandes centros turísticos do mundo”. E que o presidente Jair Bolsonaro teria “muita sorte, carisma e alegria”. “Seu humor deve melhorar bastante” e o governo teria “grandes vitórias”.
Talvez a única categoria profissional mais desmoralizada pelos fatos seja a dos ex-ministros da Economia, mas como acontece com os ex-ministros, não faltam aos astrólogos clientes dispostos a fazer vista grossa aos vexames passados e pagar por novas consultorias. Por quê?
Gente descontrolada
O psicólogo americano Stuart Vyse, que escreve bastante sobre psicologia das superstições, aponta: “Uma das principais explicações para a crença na superstição é o desejo de controle sobre eventos incontroláveis, e vários estudos sugerem que o desejo de controle também é um fator importante na crença na astrologia”. E, mais adiante, exemplifica:
“Em um estudo de laboratório, os participantes de uma pesquisa norte-americana deviam julgar o nível de precisão de um horóscopo. Mas, antes de fazer o julgamento, eles passaram por um processo para construir a sensação de controle ou falta dele.
“Foi assim: pediu-se a metade dos participantes que relembrasse uma ocasião em que algo aconteceu em que eles estavam no controle da situação, e à outra metade foi pedido que lembrasse de uma ocasião em que algo aconteceu, mas eles não estavam no controle. No momento de julgar os horóscopos, o grupo ‘descontrolado’ relatou que seu horóscopo era mais preciso”.
Dadas as incertezas trazidas pela pandemia, talvez a disposição do público para “perdoar e esquecer” os vaticínios furados de 2019 (“uma fantástica assinatura de sucesso”, um “ano mais leve”, “grande arrancada”) e renovar a confiança nos traçadores de horóscopos tenha lá sua explicação.
E o que dizem eles sobre 2021? Susan Miller soa mais circunspecta, refugiando-se naquela velha trincheira dos profetas de todas as épocas, a das generalidades e das banalidades: o importante não são as coisas que você tem, e sim o que você contribui para o mundo; mudanças acontecerão; e, claro, “é muito importante pensar no meio ambiente”. Miller acredita ainda que a conjunção Júpiter-Saturno marca a chegada da tal Era de Aquário, cheia de inovações e transformações.
O velho clichê de que “nada mais será como antes” também dá o tom do material publicado no Brasil, por exemplo “estamos oficialmente entrando em um período marcado pela energia progressiva e progressista” (Terra), ou “vem por aí outra enorme transformação, um verdadeiro xeque-mate”(Cláudia) e “o desejo de questionar, manifestar e comunicar, além de uma abertura para assuntos novos e incomuns” (Personare).
São todas afirmações que dizem muito menos do que parecem dizer. Em essência, não diferem em nada do discurso do político que promete “fazer todo o possível para resolver o problema de forma responsável”. Dependendo da ideia que cada interlocutor faz a respeito do que é “possível” ou dos limites do “responsável”, essa mensagem tem tantos significados quantos forem os ouvintes. O mesmo vale para “progressivo e progressista”, “xeque-mate” e “desejo e manifestar”.
O tudo e o nada
Já tratei, em outros artigos e até mesmo num livro, dos truques retóricos mais comuns que fazem com que o discurso astrológico, em si vazio, pareça cheio de significado. De forma bem resumida, são o caráter vago (todos leem a mesma coisa, mas cada um interpreta do jeito que quiser), a obviedade (artistas importantes vão morrer, políticos serão presos, “é preciso estar preparado para a mudança”) a superabundância (se você faz previsões sobre tudo, do resultado da Copa do Mundo à quebra da safra de soja, alguma há de acabar confirmando-se), e a totalização dos opostos.
Esse último ponto é crucial para aquilo que muitos fãs da astrologia consideram ser a face “séria” da prática, a análise de personalidade. Em um mapa astral marcado pelo excesso do elemento Água (obtido num site de referência e assinado por um astrólogo de boa reputação), vemos que a pessoa corre o risco de ser “um indivíduo pouco racional, que se deixa levar por impressões subjetivas demais”.
Mas, mais adiante, lemos, na mesma análise, que o mesmíssimo excesso de Água pode pôr exatamente o mesmo sujeito no grupo das “pessoas que são muito preocupadas com o que é lógico e racional”. Uma no cravo, uma na ferradura: o leitor se identifica com o que quer e passa batido pelo que não quer.
Nesta era de aplicativos e mensagens rápidas, também estamos assistindo à amplificação para as mídias digitais de um gênero que se tornou habitual nos horóscopos breves de jornal, as elocuções oraculares, como a que o rei Creso da Lídia (cerca de 560 AEC) ouviu dos oráculos de Delfos e Afiaraus: se fosse à guerra contra os persas, destruiria um grande império. Creso achou que a referência era ao Império Persa. Mas o destruído foi o dele.
Chamo a forma mais moderna dessas elocuções oraculares de metáforas colaborativas: frases jogadas pelo astrólogo cujo “sentido profundo” o cliente vai preencher por conta própria. Por exemplo: “Hoje é dia de voar”. Ou: “Café se toma quente, mas há quem prefira gelado”.
Responsabilidade
Veículos de imprensa realmente responsáveis dispensam colunas de astrologia (o New York Times nunca teve uma). Os que apenas imaginam-se responsáveis tentam contê-las, circunscrevendo-as aos espaços reservados àquilo que algumas pessoas chamam de “parajornalismo” (gênero composto por conteúdos como tiras em quadrinhos e crônicas humorísticas).
Mas a circunscrição é frágil: basta o assunto do resto do jornal (ou revista) começar a escassear e os usuais palpiteiros pau-pra-toda-obra – ex-ministros da Economia, psicanalistas, atores – saírem de férias que o astrólogo se vê erigido em fonte “legítima”, principalmente nos cadernos de cultura (o que deveria deixar o pessoal que leva jornalismo cultural a sério meio cabreiro, aliás).
A falsa equivalência entre crendice astrológica e ciência astronômica, no entanto, já parecia superada – até ser trazida de volta pela recente conjunção, e justo numa plataforma com o alcance do Grupo Globo. O que só mostra que o trabalho do velho cético mala realmente não acaba nunca.
Num mundo onde cada indivíduo tem o potencial de se tornar uma central de mídia em si mesmo, um dos principais, se não o único, modo de organizações profissionais, bem estabelecidas há décadas, diferenciarem-se de canais genéricos de YouTube, criados há quinze minutos por garotos de treze anos, é uma curadoria cuidadosa de conteúdo. Vamos lá, pessoal. Não é hora de deixar a bola cair.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)