Um dos oradores de destaque que discursaram para a multidão que se reuniu na Praça Trafalgar, em Londres, semana passada, para protestar contra as medidas do governo britânico sobre uso de máscaras e lockdown, foi o ex-jogador de futebol, ex-comentarista esportivo e — pelo menos desde os anos 90 do século passado — teórico da conspiração antissemita David Icke. Icke é mais conhecido, de forma folclórica, por sua tese de que as elites globais (incluindo a família real britânica, os Rothschilds e a família dos ex-presidentes americanos George Bush e George W. Bush) é composta por répteis espaciais pedófilos, disfarçados de seres humanos.
Sua obra, cujo “grande clássico” talvez seja o livro de 1995 “And the Truth Shall Set You Free” ( “A Verdade Vos Libertará”), é recheada de motes racistas. Icke endossa a realidade dos “Protocolos dos Sábios de Sião”, uma peça de propaganda antissemita criada na Rússia no século 19. Em outro livro, “The Robots Rebellion” (“Revolta dos Robôs”), também da década de 90, Icke escreve:
“No fim dos anos 1800s, alguns documentos surgiram chamados Protocolos dos Sábios do Sião. Quase tudo que esses documentos propunham aconteceu neste século”.
Mais adiante, ele diz que Hitler escapou ao final da Segunda Guerra Mundial e fugiu para a América do Sul.
Em uma terceira obra, “The Biggest Secret” (“O Maior Segredo”), David Icke escreve que a “massa” do povo judeu foi enganada e manipulada por elites judaico-reptilianas, como “os Rothschilds, que financiaram e apoiaram os nazistas”.
Em maio deste ano, o canal de Icke no YouTube, com mais de um milhão de inscritos, foi tirado do ar pela empresa, por promover desinformação a respeito da COVID-19, incluindo a associação espúria entre a doença e a expansão das redes de 5G. “Este vírus é uma ilusão, uma fraude”, dizia ele, em um dos vídeos.
Em Trafalgar, Icke, aclamado pela multidão, discursou que “a doença que se espalha por este país, por este mundo, não é COVID-19, é fascismo, fascismo justificado pela ilusão de uma pandemia”.
Como em toda teoria da conspiração, coerência emocional é mais importante do que coerência lógica: no discurso de Icke para a multidão embevecida, ouvimos, num momento, que “qualquer um com meio neurônio funcionando no cérebro pode ver que o coronavírus é uma bobagem”; em outro, que “estamos assistindo a um plano antigo, a um roteiro que se desenrola”, plano que “vai terminar, se não fizermos nada, com a total subjugação da espécie humana”.
Num momento, portanto, “eles” são insidiosos e extremamente competentes: vêm executando, com sucesso, um projeto de “total subjugação da espécie humana”; noutro, são idiotas que criaram um embuste transparente para “qualquer um com meio neurônio”.
Ao final do discurso, pouco depois de Icke puxar um coro de “Liberdade! Liberdade!” em meio ao público, alguém ergue, ao fundo, um pedaço de papelão com nada além do que a letra “Q” estampada.
QAnon
Quase dois meses antes do comício no centro de Londres, a americana Melissa Rein Lively invadiu uma loja de departamentos Target, no Arizona, e destruiu o mostruário de máscaras faciais. Num diálogo transmitido ao vivo pelo Instagram, ela disse a policiais que era uma porta-voz de QAnon e que eles deveriam entrar em contato com o presidente Trump.
QAnon, ou “Q Anônimo”, é uma teoria de conspiração que vê Donald Trump como uma espécie de figura messiânica, em guerra contra o “Estado profundo” — uma máfia de pedófilos satanistas esquerdistas (ou fascistas? ou fascistas esquerdistas?) que controlaria os órgãos técnicos e profissionais do governo. Já tratei dessa tese ano passado, e aparentemente a imprensa brasileira, enfim, acordou para o problema, que vem angariando seguidores nas hostes bolsonaristas.
Os adeptos de QAnon aguardam uma data apocalíptica, “A Tempestade”, quando as figuras-chave da conspiração satânica serão desmascaradas e presas, e se dedicam a decodificar “migalhas de pão” — postagens online, falas e fotos de autoridades, publicações da mídia tradicional — que, na verdade, seriam mensagens cifradas e símbolos dando conta do avanço das forças do Bem para trazer “A Tempestade”. A principal fonte dessas “migalhas” é Q, uma figura misteriosa supostamente infiltrada no “Estado profundo”.
No mundo real, pouco ou nada se sabe sobre Q. Se é uma pessoa, ou várias, se fala sério ou se está apenas pregando uma peça de proporções colossais numa massa de idiotas.
O caso de Rein Lively chamou atenção especial porque o perfil dela é bem diferente do que se esperaria de uma figura da chamada “nova direita”, ou “direita alternativa”, os seguidores usuais de Q: sua dieta online era composta por grupos de bem-estar, saúde natural e misticismo “New Age”.
Muitas dessas comunidades, no entanto, oferecem validação a uma mentalidade anti-tecnológica que se liga muito facilmente a sentimentos antivacinação e à noção de que existem “curas naturais que eles não querem que você descubra”. Conectar esses “eles” ao “Estado profundo” (que inclui órgãos como o FDA americano ou a Anvisa) não requer muita imaginação.
Algumas semanas depois de seu rompante na Target, Rein Lively disse à imprensa que enfrentava problemas de saúde mental. Um longo artigo sobre o caso, publicado no site da rede de televisão americana NBC, levanta a questão de que o aumento da exposição do público às redes sociais, por causa dos lockdowns, pode estar facilitando esse tipo de descida ao abismo das teorias de conspiração.
Ecumenismo
Ao descrever uma visita de David Icke ao Canadá, o jornalista Jon Ronson (em seu livro “Them”) conta como ele foi recebido com acusações de fascismo e antissemitismo. No entanto, em seu discurso da última semana na Praça Trafalgar, ele acusou o “fascismo” de estar tentando forçar as pessoas a se manter em “prisão domiciliar”, e a usar máscaras. Muitos dos temas de sua fala, de fato, reproduzem pontos comuns do discurso da esquerda populista — “este mundo é controlado por uma minoria minúscula”, “o verdadeiro poder reside no povo”.
Como Humpty-Dumpty disse a Alice em “Através do Espelho”, “quando uso uma palavra, ela significa o que quero que signifique — nada mais e nada menos”. Esse princípio do universo do outro lado do espelho aplica-se perfeitamente aos usos e costumes linguísticos do mundo das teorias da conspiração, principalmente palavras como “fascista” e “fascismo”: o conjunto da “minúscula minoria” que governa o mundo e que busca “a total subjugação da espécie humana” está aberto para ser preenchido pelos espantalhos favoritos da direita ou da esquerda, à vontade. David Icke com certeza considera seus reptilianos “fascistas”.
A penetração de QAnon no imaginário New Age evidencia bem essa flexibilidade, que já era perceptível na confluência dos Grandes Satãs da direita (o Estado) e de esquerda (os capitalistas) no discurso do movimento antivacinas: o governo quer nos forçar a usar os produtos iníquos da Indústria Farmacêutica.
Ambos os campos ideológicos abrem espaço para certas obsessões com ameaças à “pureza” (do corpo, da natureza, do pensamento e, no caso da extrema direita, do sexo, do sangue e da raça) que são um convite à ideação conspiratória.
Um pioneiro a surfar essa onda é o “Health Ranger”, Mike Adams, cuja loja online vende produtos como “algas orgânicas livres de glifosato”, “ricas em clorofila” e “muito usadas em medicina tradicional chinesa e ayurveda” além de “óleo de ozônio para limpar os dentes”, ao mesmo tempo em que promove medos infundados sobre vacinas e boatos racistas, como o de que imigrantes vindos do Congo são vetores de ebola ou que o movimento Black Lives Matter foi criado para “proteger criminosos”. Adams também “denuncia” que o movimento LGBT é a “ponta de lança do marxismo”.
No Brasil, a ponte entre o movimento de saúde natural e a extrema direita parece ainda não ter sido construída mas, dada nossa história recente de importações ideológicas nocivas dos Estados Unidos, deve ser apenas uma questão de tempo.
Desabafo
Um dia depois de David Icke ser aclamado pela multidão em Londres, Jason Colavito — um antropólogo que já escreveu diversos livros e artigos denunciando a distorção da História e da arqueologia em pseudo-documentários como a série de TV Alienígenas do Passado — enviou o seguinte desabafo aos assinantes de sua lista de e-mail:
“Basicamente, todos os piores temores levantados por aqueles, entre nós, que viam o perigo das teorias de conspiração sobre mistérios/alienígenas do passado se confirmaram, e ainda assim os intelectuais públicos e a elite da mídia ainda consideram-nas mera diversão, no mesmo momento em que as fantasias letais dos teóricos da conspiração ameaçam o mundo”.
Estará Colavito exagerando? Parece certo que nem todas as pessoas que aplaudiram o discurso inflamado de Icke na Praça Trafalgar acreditam para valer que o isolamento social e o uso de máscaras estão sendo promovidos para fazer avançar a agenda de um grupo de répteis satanistas pedófilos fascistas esquerdistas do espaço. Escrevendo assim, a coisa toda dá a impressão de estar prestes a desmoronar sob o peso do próprio ridículo.
Mas o fato é que não desmorona, porque “répteis satanistas pedófilos fascistas esquerdistas do espaço” é um significante vazio, uma tela em branco onde se pode projetar qualquer coisa, sejam os Rothschilds, a ONU, o Vaticano, os escoteiros, os ecologistas, a indústria farmacêutica, etc.
Num momento esse inimigo épico/ridículo é uma metáfora para alguma outra coisa, a menção a ele é humorística ou irônica. No instante seguinte, a acusação é séria e cada epíteto é tomando em seu sentido literal. A inconsistência dos significados não importa. Coerência emocional, como de costume, fala mais alto do que a coerência lógica.
Cochilo seletivo
O meio intelectual (incluindo a fração que lida com divulgação/comunicação da ciência) sofre de um caso antigo de tolerância seletiva com a irracionalidade. Essa tolerância às vezes vai além dos limites práticos impostos pela condição humana — há mais ideias ruins no mundo que pessoas capacitadas a combatê-las, a vida é curta, arte é longa, nem todas as ideias ruins têm o mesmo potencial de causar dano ao mesmo tempo — e assume ares de condescendência, quando não de franca simpatia. Algumas ideias ruins estariam, em princípio, acima (ou abaixo) da crítica.
O problema dessa postura é que ela ignora o chamado princípio lógico da explosão: quando se admite um absurdo numa cadeia de raciocínio, é possível usá-lo para concluir qualquer coisa. Se alienígenas construíram as pirâmides, então os Protocolos dos Sábios do Sião são verdadeiros. A situação se agrava quando nos lembramos de que crenças embasam ações ou, nas palavras de Voltaire, “quem o leva a crer em absurdos pode levá-lo a cometer atrocidades”. O comício de David Icke é a ilustração viva desse princípio.
O lamento de Colavito evidencia que, se o sono da razão produz monstros, é irresponsável deixar as pessoas cochilarem em paz.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)