Lições de uma autópsia alienígena

Apocalipse Now
1 ago 2020
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A cultura mundial — as tradições, os folclores, as religiões, os produtos da indústria midiática — está repleta de histórias sobre os perigos da ilusão de conhecimento: o trágico destino de personagens que acham que sabem mais do que realmente sabem, destino esse que pode variar da humilhação pública à destruição galáctica. Muito menos atenção é dada, no entanto, a outro problema, tão grave quanto: o da ilusão de ignorância.

Essa ilusão aparece quanto uma pessoa ou grupo de pessoas finge, por hipocrisia, preguiça, medo ou comodismo, que a soma total da informação disponível sobre determinado tema é menor do que realmente é. Quando margens de dúvida e incerteza — que sempre existem — são esticadas para além de qualquer ponto razoável.

Manifesta-se, por exemplo, no “outroladismo” automático e irrefletido que volta e meia ainda assombra a imprensa, no impulso de tratar erros factuais, mentiras descaradas e fraudes óbvias como “declarações controversas” ou “assuntos polêmicos”. Hoje é muito fácil ver o dano que a ilusão de ignorância causou, e segue causando, no meio político e de saúde pública, mas a complacência com esse modus operandi vem de longa data, e agora em agosto assistimos ao aniversário de 25 anos de um caso altamente exemplar: o infame “filme da autópsia do ET”.

Hoje, temos confissões de fraude de pelo menos dois dos principais envolvidos no caso, os produtores Ray Santilli e Spyros Melagis, ainda que com versões levemente diferentes, como veremos. A falsificação já rendeu até uma comédia, o filme inglês “Autópsia Alienígena: A Maior Fraude da História?”. 

Mesmo sem as confissões, no entanto, a verdade sobre o caso sempre foi, se não perfeitamente clara, bem fácil de estimar. Mas a sede de audiência abriu caminho para uma lucrativa ilusão jornalística de ignorância.

 

O aquecimento

Quando Ray Santilli apresentou a jornalistas e ufólogos britânicos, em maio de 1995, uma prévia de 17 minutos do filme — segundo ele, registros oficiais da autópsia de um cadáver extraterrestre recuperado em Roswell, EUA, em 1947 —, a maioria dos presentes saiu convencida de que havia assistido a uma fraude, informa a revista inglesa Fortean Times, que na época cobriu o evento.

Aqui no Brasil, a primeira nota sobre o assunto que encontrei na imprensa foi um breve parágrafo no Estadão, datado de 24 de julho, dizendo que “a autópsia completa dos corpos de dois supostos extraterrestres, filmada há quase meio século nos EUA, deve logo ser transmitida pela TV europeia”. Notemos que, exceto pelo adjetivo perfunctório “supostos”, o tom é daquela “objetividade indiscriminada” que faz um terraplanista e um professor de astronomia soarem igualmente razoáveis e ponderados para o pobre leitor desavisado. O mesmo tom foi assumido pela Folha de S. Paulo ao dedicar um espaço nobre, alto de página, ao assunto, em 20 de agosto.

O texto da FSP cita algumas declarações do anatomista Paul O’Higgins, do University College London, dadas ao jornal The Observer, mas opta por omitir a parte mais crucial, ao menos no que diz respeito à verossimilhança dos eventos representados diante da câmera: “A julgar pelo filme, a autópsia foi conduzida em um par de horas. Mas essas eram criaturas alienígenas. Representavam uma oportunidade inigualável para a ciência. Esperam que a gente acredite que eles foram fatiados, sem a menor cerimônia, numa tarde. Eu teria passado semanas conduzindo essa autópsia”.

Quando um canal de TV inglês usou partes do filme de Santilli num documentário sobre o “Incidente de Roswell”, que foi ao ar em 28 de agosto, especialistas em efeitos especiais e medicina legal foram chamados a comentar, e disseram que o vídeo era, provavelmente, uma fraude.

 

O estouro

Já nos Estados Unidos, onde o material de Santilli foi exibido pelo canal Fox, o modo “ignorância ilusória” entrou a todo vapor. Um programa especial foi produzido tendo Jonathan “Comandante William T. Riker da USS Enterprise 1701-D” Frakes como apresentador. O título era Alien Autopsy: Fact or Fiction? e o slogan, “Esta noite, você decide”.

Esse tipo de apelo populista é comum em situações de ignorância ilusória, ou fabricada, embora nem sempre venha articulado de forma tão explícita. Racionalmente, não faz sentido pedir a um público, composto em sua maioria por não-especialistas, que forme, por conta própria, opinião a respeito de um assunto que requer expertise técnica. Mas é isso que toda história sobre ciência ou saúde que “apresenta os dois lados”, seja num tabloide vagabundo ou numa revista de papel cuchê, faz.

Apelar para a vaidade intelectual do “cidadão comum” pode ser bom para a audiência mas, como qualquer advogado com experiência em tribunal de júri sabe, nessas situações quem ganha não é quem tem razão, mas quem monta o melhor espetáculo. E o espetáculo da Fox foi cuidadosamente montado: reportagem da Fortean Times indica que as falas de cientistas e especialistas em efeitos especiais foram editadas para gerar a impressão de dúvida quando, na verdade, as manifestações eram de desdém ou descrédito.

“Parte do apelo do show é sua falsa objetividade”, notou um crítico na revista Time, escrevendo em novembro de 1995. “‘Permanecemos céticos’, Frakes entoa, resumindo as opiniões de vários patologistas e cinematógrafos. Mas a evidência é distorcida para sugerir que o filme é genuíno. Pelo menos dois especialistas insistem que suas opiniões críticas foram apagadas”.

No Brasil, o programa Fantástico, da Rede Globo, fez uma operação clássica de morde-assopra, ouvindo especialistas em efeitos especiais que apontaram as inúmeras inconsistências do filme, e mostrando que Santilli havia mentido ao dizer que não ganhara dinheiro com a promoção da autópsia.

Essa parte jornalisticamente correta veio, no entanto, primeiro introduzida e, depois, comentada por um discurso do apresentador do Fantástico onde “polêmica” e “controvérsia” eram as palavras-chave. O clima, assim como o slogan da Fox, era de “você decide”. Se o conteúdo jornalístico denunciava fraude, o mise-en-scène da embalagem estava todo construído para manter a dúvida no ar — estimular a ilusão de ignorância.

 

As desculpas

Com o passar dos anos, a história de Santilli foi perdendo a (pouca) coerência que tinha. Uma série de investigações conduzidas pelo ufólogo Philip Mantle trouxe à tona os profissionais que trabalharam na criação do filme, revelando até o endereço onde a “autópsia” foi conduzida (um apartamento em Londres), além de várias outras informações.

Mantle acabou escrevendo um livro, “Roswell Alien Autopsy”, contando seu trabalho no caso. O mágico Spyros Melaris, que se apresenta como o verdadeiro criador do filme — Santilli seria apenas o testa-de-ferro da empreitada — também já veio a público com diversos detalhes.

Com o lançamento da comédia sobre a criação da fraude marcado para abril de 2006, Santilli apareceu em outro documentário, desta vez admitindo que o filme exibido em 1995 era, sim, uma fraude — mas alegando que se tratava de uma reencenação da autópsia real de um alienígena! A recriação teria sido necessária porque o filme original de 1947 degradou-se com o tempo.

A manobra parece abusar da mansidão até dos mais crédulos, mas, no manual de operações dos fabricantes de ignorância ilusória, é uma jogada conhecida.

Muitos médiuns famosos, por exemplo a italiana Eusápia Paladino (1854-1918), quando pegos cometendo fraude, defendiam-se dizendo que eram capazes de realizar efeitos paranormais verdadeiros, e que só recorriam à mentira às vezes, quando muito pressionados ou em ambiente hostil. Todas as outras vezes, era para valer. Desculpas como a de Santilli, portanto, têm precedentes que funcionaram (ao menos, frente a certos públicos).

O maior aliado da ilusão da ignorância é o pressuposto, muitas vezes inconsciente, de que todas as explicações alternativas propostas para um fato merecem, em princípio, o mesmo grau de credibilidade: como se a probabilidade de alienígenas humanoides caírem do céu nos Estados Unidos fosse equivalente à de alguém forjar um filme, ou a de um médium elaborar bons truques que, na maior parte do tempo, escapam à detecção fosse igual à de os mortos falarem.

Como se o conceito de probabilidade prévia – dada pela soma do conhecimento científico preexistente – fosse irrelevante na hora de distribuir o ônus da prova. O que é absurdo. Como diz um provérbio muito citado, mas de autoria disputada, manter a cabeça aberta é importante, mas não a ponto de o cérebro cair fora.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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