A expressão “populismo médico” entrou no léxico das ciências sociais num artigo publicado, em janeiro do ano passado, no periódico Social Science & Medicine — que não se diga jamais que as Humanas não têm poder preditivo. Os autores (os pesquisadores filipinos Gideon Lasco e Nicole Curato) sugerem que, diante de uma emergência de saúde pública, a liderança política tende a optar por um de dois estilos de resposta, o “tecnocrático” — botar a questão nas mãos de médicos e especialistas, que passam a guiar a resposta à crise — ou a “populista”, em que o líder, falando em nome “do povo”, atropela os técnicos e perpetua uma situação de pânico moral, onde “demônios da imaginação popular” (“folk devils”) são identificados, responsabilizados pela crise e atacados por uma retórica exacerbada (quando não, por violência física).
Líderes populistas buscam se apresentar como figuras externas ao “sistema”, nome genérico dado a “tudo isso que está aí”, ao establishment. “Eles são do povo, não do sistema”, aponta Paul Taggart em “The New Populism and the New Politics”. Ou, como Cas Muddle escreve em “Populism: A Very Short Introduction”, “populismo sempre envolve uma crítica ao establishment e uma adulação do povo simples”, além da visão de que “a sociedade pode ser dividida em dois campos homogêneos e antagônicos, o ‘povo puro’ e a ‘elite corrupta’”.
Isso fica bem exemplificado nas palavras do falecido líder venezuelano Hugo Chávez, em seu discurso de posse de 2007: “Todos os indivíduos estão sujeitos a erro e sedução, mas não o povo (…) pois seu juízo é puro, sua vontade é forte, e ninguém pode corrompê-lo ou ameaçá-lo”. Ou, para ir ao extremo oposto do espectro político, Donald Trump, em entrevista de 2016 a The Wall Street Journal: “Em todas as questões graves que afetam este país, o povo está certo e a elite governante, errada”.
Um malabarismo retórico que todo populista que chega ao poder precisa executar é o de convencer o tal “povo puro” de que a face da “elite corrupta” não é ele, o líder que controla o governo, nomeia as autoridades e comanda as Forças Armadas, mas outros — o líder da oposição, as “forças ocultas”, os “plutocratas”, o “Estado profundo”, os “comunistas nas universidades”, etc.
No caso do populismo médico, essa clivagem entre “nós” e “eles” assume configurações especiais, que tendem a escapar dos recortes mais clássicos de classe social, etnia ou ideologia política. Na crise sanitária, o “sistema inimigo do povo” pode passar a incluir, também, a ortodoxia médico-científica.
Os autores do artigo de 2019 apontam que a divisão social criada (ou explorada) pelo populismo médico pode ser “vertical”, com os médicos, cientistas, indústria farmacêutica, etc., no papel de “elite corrupta”; ou “horizontal”, onde uma parcela marginalizada da população — homossexuais, usuários de drogas, imigrantes — passa a ser vista como vetor da doença e, portanto, ameaça. No caso do recorte “horizontal”, a culpa comumente atribuída às elites é a de não terem agido a tempo para conter a minoria demonizada, deixando o “povo puro” indefeso, à mercê dos vilões depravados.
Populismo + negacionismo
Um dos exemplos de populismo médico apresentados por Lasco e Curato é o da campanha de negação de que o HIV causa aids, promovida pelo segundo presidente da África do Sul na era pós-apartheid, Thabo Mbeki. Durante seu período como mandatário da nação africana — de 1999 a 2008 — Mbeki abraçou a ideia pseudocientífica de que o HIV não produz aids, e que portanto o uso de medicamentos antirretrovirais seria desnecessário. Seu governo passou a promover receitas “naturais”e “tradicionais” para combater a doença.
A posição chocante do governo sul-africano levou mais de 5 mil cientistas a assinarem a Declaração de Durban, publicada em 2000 na revista Nature. “A evidência de que aids é causada por HIV-1 e HIV-2 é clara, exaustiva e livre de ambiguidades, atendendo aos mais elevados padrões da ciência”, diz o texto. “Pesquisas, não mitos, levarão ao desenvolvimento de tratamentos melhores e mais baratos”.
Os folk devils — as “elites corruptas” — invocados por Mbeki eram a indústria farmacêutica e o colonialismo ocidental. A estratégia, segundo análise de pesquisadores das áreas de comunicação e de ciência política, tinha os objetivos de unir a população negra sul-africana e reforçar seu senso de identidade comum; de chamar atenção para a pobreza e a subnutrição; e de combater o estereótipo do africano sexualmente promíscuo.
Alguém pode até enxergar alguma nobreza nesses motivos, mas o fato é que a política implementada teve consequências trágicas: estima-se que mais de 300 mil pessoas morreram, e que mais de 35 mil bebês nasceram infectados por HIV, por causa da insistência do governo Mbeki em não utilizar antirretrovirais em hospitais públicos.
Em seu livro "Denying Aids", que trata da subcultura de negação do HIV, o psicólogo Seth Kalichman faz uma lista de pontos comuns a grupos militantes que se aferram à negação da ciência. Muitas dessas características emanam de uma mentalidade conspiratória. “A chama paranoica que caracteriza os teóricos de conspirações também é visível nos negacionistas. O modo de pensamento baseado em suspeitas permeia muito do negacionismo”.
Kalichman também aponta que a negação de fatos científicos estabelecidos seduz pessoas de diferentes perfis, e por diferentes motivos. Há razões ideológicas (contra o ocidente, o establishment, o capitalismo, o comunismo, etc.) , comerciais (para vender curas milagrosas), de cálculo político ou, mesmo, religiosas. O psicólogo menciona, ainda, que há “professores universitários delirantes e rancorosos, que se voltam para a pseudociência a fim de chamar atenção”.
Populismo+COVID19
Das duas estratégias descritas em Social Science & Medicine, o governo brasileiro decidiu, diante da chegada da COVID-19 ao país, mergulhar de cabeça na opção populista. Nenhuma supresa aí. Este é, afinal, o modo default do presidente Jair Bolsonaro: toda sua ascensão política fulminante, de deputado inexpressivo a chefe de Estado e de governo, foi construída em cima dos pânicos morais da “corrupção” e da “a esquerda”.
(Antes que se diga que estou fazendo pouco caso da corrupção: o que define um pânico moral não é a relevância — ou irrelevância — de mote, mas a irracionalidade e a desproporcionalidade da reação, além de seu uso como para-raios de ansiedades sociais diversas e conflitos complexos, um emblema caricatural de “tudo o que está errado nisso aí”).
Curiosamente, a via populista “canônica” requer que o governo exacerbe a percepção social de que há uma ameaça grave contra o “povo puro”, ameaça pela qual o folk devil (sejam “as elites” ou algum grupo marginalizado, como imigrantes) deve ser responsabilizado e punido. Num primeiro momento, pode parecer que, ao fazer pouco caso da emergência sanitária (“gripinha”, etc.) e ao propagar uma esperança exagerada (a quimera da cloroquina ou o novo remédio “misterioso” do ministro action-figure Marcos Pontes), o presidente estaria fazendo o contrário disso.
A verdade é que Bolsonaro optou por exacerbar a percepção social de outra ameaça — a do colapso econômico — e eleger as medidas de quarentena e isolamento social como obra insidiosa dofolk devil da vez. Trata-se de uma instância clara de populismo “vertical”, opondo o “povo”, que precisa sair de casa e trabalhar para viver, à “elite”, no caso os médicos e cientistas (e governadores, prefeitos) que insistem nas medidas de contenção.
O paralelo com o negacionismo sul-africano de Mbeki é claro: em ambos os casos, uma medida sanitária consensual entre os especialistas (isolamento num caso, uso de antirretrovirais no outro) é sabotada por um mandatário que nega sua eficácia e desconversa quanto à gravidade das consequências, aspergindo culpa sobre forças malignas.
A dimensão da morte e do sofrimento causados pela política negacionista de Thabo Mbeki foi estimada, por especialistas em epidemiologia e saúde pública, com base no número de tratamentos com antirretrovirais que poderiam ter sido realizados nos hospitais públicos sul-africanos, não fosse a paranoia populista do presidente.
O impacto das intervenções de Bolsonaro sobe a quarentena — o choque com a área técnica do governo, as bravatas nos pronunciamentos oficiais, as “saidinhas” de fim de semana — deve ser bem mais difícil de quantificar, mas o esforço deve ser feito. Se não por outro motivo, para o benefício dos livros de história que serão lidos e estudados no futuro.
Populismo+COVID19+cloroquina
Outra dicotomia populista insuflada pelo governo federal brasileiro gira em torno da questão da cloroquina: de um lado estão os “heróis populares” que querem levá-la às massas e, no polo ignóbil, os “elitistas” do método científico. Um vilão alternativo/complementar são os médicos que querem a cloroquina “só para si mesmos”, e por isso a sonegam ao povo.
A capacidade do governo, por meio de canais oficiais e de sua rede de apoiadores online, de manter duas teorias conspiratórias, incompatíveis entre si, rodando ao mesmo tempo — a de que a doença é uma farsa e nenhuma medida é necessária; e a de que a doença é grave, e sua cura está sendo escondida — é quase tão admirável quanto a dissonância cognitiva de quem acredita simultaneamente em ambas.
O populismo médico brasileiro não é para principiantes.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)