Falar às pessoas sobre o como e os porquês do processo de teste e validação de um medicamento é complicado. Jargões como “duplo-cego”, “randomizado” ou “grupos-controle”, caindo do céu no meio da conversa, tendem a produzir aquele olhar vidrado e distante de quem resolveu sintonizar outra estação. No fim, é muito difícil superar a intuição de que o único “teste” necessário é dar o remédio para alguém e ver se a pessoa melhora. Qualquer coisa além disso seria frescura ou firula.
Ainda mais em meio às tribulações e incertezas de uma pandemia como a atual, qualquer esperança, mesmo se falsa – especialmente, se falsa –, ganha uma espécie de campo gravitacional. É muito fácil ser atraído para sua órbita, mesmo sem perceber.
Além disso, a psicologia humana tem uma relação muito curiosa com o binômio ação-omissão: se as coisas estão, aparentemente, indo bem, é comum sentirmos culpa ou desconforto em interferir (e é por isso que vacinar crianças saudáveis causa relutância em certas pessoas); já quando estão indo mal, a urgência de tentar qualquer coisa pode ser esmagadora.
Mas esses impulsos são atalhos para um conforto emocional momentâneo, não necessariamente para ação eficaz e responsável. A paz de espírito que vem de dizer “completei a corrida, travei o bom combate, mantive a fé” só se justifica se você estava correndo na direção certa, o combate era mesmo bom e a fé tinha razão de ser. Fazer uma bobagem qualquer, só para poder depois se dar ares e dizer que “pelo menos, não ficamos de braços cruzados”, não é heroísmo, é vaidade. Ou coisa pior.
Mas este não era um artigo sobre testes de medicamentos? Ainda é.
É difícil saber
Quando o governo francês decidiu, lá no século 18, formar uma comissão especial para determinar se o “magnetismo animal” propalado por Franz Mesmer (1734-1815) existia mesmo (spoiler: não existia), uma das primeiras coisas que os convocados – entre os quais estava Benjamin Franklin, o inventor dos pararraios e atual face da nota de cem dólares – decidiram foi que iriam avaliar várias das propriedades atribuídas à tal força sutil que fluiria entre os profissionais “magnetizadores” e clientes, mas que, de modo muito específico, não examinariam nenhuma das curas atribuídas a Mesmer.
O motivo, apresentado no relatório final em que a comissão conclui que o “magnetismo animal” não passava de um produto da imaginação de Mesmer (e clientes), aparece condensado no que considero um dos mais lúcidos parágrafos escritos durante o chamado Século das Luzes:
“Acima de tudo, é na medicina que a dificuldade de avaliar as probabilidades é maior. Como o princípio da vida é, nos animais, uma força que age todo o tempo e tende continuamente a sobrepujar todos os obstáculos, e a Natureza, deixada à própria sorte, cura um grande número de moléstias, quando se empregam remédios é difícil determinar o que é mérito da Natureza ou do remédio. Portanto, a despeito de a maioria das pessoas enxergar a cura da doença como prova da eficácia do remédio, aos olhos dos sábios esse resultado é apenas uma probabilidade, maior ou menor, e essa probabilidade não pode ser convertida em certeza, exceto por um enorme número de resultados do mesmo tipo”.
Praticamente todos os elementos do drama da relação entre ciência e medicina estão aí: é impossível, a partir da mera constatação de que a saúde de uma pessoa melhorou depois de uma intervenção qualquer – uma pílula, um xarope, um passe “magnético” ou o que quer que seja – cravar que a melhora foi causada pela intervenção. Nas palavras dos iluministas, isso acontece porque não é um esforço trivial separar o que é mérito “da Natureza” do que é efeito do “remédio”.
Em termos contemporâneos, diríamos que a tarefa de isolar o efeito específico do tratamento (o que o remédio faz) dos fatores de confusão (todas as outras coisas que estão acontecendo ao redor, e no corpo do paciente) encontra-se sempre repleta de armadilhas e dificuldades. É por isso que a intuição – dá o remédio para o paciente, se houver melhora, o remédio é bom – falha.
É fácil errar
E a falha pode ser trágica: cerca de dez anos depois do relatório sobre Mesmer, a Filadélfia, então capital da jovem república dos Estados Unidos da América, era dizimada por uma epidemia de febre amarela. No local, tentando salvar vidas, encontrava-se Benjamin Rush (1745-1813), um dos signatários da Declaração de Independência dos EUA, e então o médico mais respeitado do país.
Na época, o tratamento para febre amarela consistia em pouco mais do que banhos frios contra a febre, sangrias e alguns “medicamentos” inócuos. Desesperado diante da impotência da medicina, Rush buscou alternativas e encontrou um tratado obscuro, escrito meio século antes, que recomendava o uso de violentos purgantes para limpar as vísceras dos pacientes dos "miasmas pútridos" que, supunha-se, causavam a doença.
Rush decidiu testar a ideia num paciente às portas da morte, que supostamente “não tinha nada a perder”, e lhe aplicou o purgante mais forte disponível nos Estados Unidos: uma mistura de raiz de jalapão (Ipomoea purga) com um pó químico chamado calomel, que contém o metal tóxico mercúrio.
O moribundo reviveu, e Rush decidiu aplicar sua nova cura a outros pacientes, às vezes usando até dez vezes a dose usual do calomel, associando-a a sangrias extensas. Os sobreviventes passaram a dar testemunhos entusiásticos a respeito do remédio de Rush, e ele se tornou um herói popular. Incapaz de atender a todos que o procuravam, o médico publicou sua receita, para que outros pudessem administrá-la. Em suas memórias, Rush ataca os médicos que se recusaram a adotar sua “cura”.
Estimativas da época, e outras feitas por historiadores no século 20, põem a taxa de mortalidade geral da epidemia de Filadélfia em 33%, e a específica dos pacientes de Rush, em quase 50%. Ainda assim, ele emergiu da crise de 1793 como um mito da saúde pública, um santo curandeiro, o adorado salvador de uma legião de pacientes agradecidos.
A verdade é que os pacientes "salvos" por ele provavelmente já estavam prestes a se recuperar sozinhos – mesmo o "moribundo" do primeiro caso – e sobreviveram apesar do calomel, do jalapão e das sangrias, e não graças a eles. A gratidão dos sobreviventes vinha de uma interpretação falsa quanto à causa da cura. O fato de o tratamento ser penoso só aumentava a sensação de vitória e alívio ao final da doença.
Comparações justas
Histórias como a de Rush e o raciocínio impecável da comissão francesa dos anos 1780 trazem lições que não deveríamos ignorar, mesmo em tempos de crise: uma, de que a mera comparação entre o estado dos pacientes antes e depois do tratamento (a chamada comparação “pré-pós”) pode levar, e comumente leva, a resultados enganosos. A segunda, que agir no desespero, com base em resultados enganosos, mata.
O aprendizado dos últimos 300 anos cristalizou a ideia de que o verdadeiro teste de um medicamento envolve comparações justas, e é aí que o jargão de “grupos-controle”, “duplo-cego” e “randomização” entra. Desenhos experimentais específicos podem ser bem bizantinos, mas os conceitos-chave são extremamente simples:
Grupos-controle: se apenas comparar os pacientes a eles mesmos – como estavam antes e como estão agora – engana, então é preciso compará-los a outras pessoas, e é aí que entram os tais grupos-controle. No mínimo, é preciso haver um controle negativo, formado por pessoas que não receberão o tratamento que está sendo testado. Se Benjamin Rush tivesse usado um controle negativo, ele teria visto que seu calomel matava mais gente do que a doença.
É possível sofisticar um pouco mais e incluir um grupo placebo, de pessoas que acreditam estar recebendo o tratamento, mas na verdade não estão (por exemplo, uma pílula de farinha com o mesmo formato e cor que os do remédio testado). Isso permite levar em conta a melhora causada pelo conforto emocional de sentir-se acolhido e tratado, ou pelo condicionamento psicológico de receber uma “medicação”.
Duplo-cego: para ser realmente eficaz, o controle com placebo precisa ser duplo-cego, isto é, nem os pacientes, nem os pesquisadores em contato direto com eles e, idealmente, nem os encarregados de fazer a análise estatística dos dados devem saber qual grupo é qual. Isso protege os cientistas da tentação de “dar uma mãozinha” ao resultado, por exemplo tratando os pacientes que recebem o medicamento real com mais atenção e carinho, ou “ajustando” os números.
Randomização: é o processo de separar os pacientes entre os grupos (tratamento, controle negativo, placebo) de forma aleatória. A ideia aqui é tentar fazer com que os grupos tenham a composição mais homogênea possível. A importância disso está em evitar que o teste seja um jogo de cartas marcadas: se um dos grupos for composto por pacientes significativamente mais jovens, ou mais saudáveis, ou com uma dieta muito diferente, etc., em relação aos demais, a discrepância pode distorcer bastante o resultado.
Esses princípios e critérios não são “firulas”, não são luxos. São o produto de séculos de aprendizado, são lições tiradas de inúmeros erros trágicos, uma sabedoria comprada, quase sempre, ao preço de vidas humanas. E vamos nos lembrar de que o princípio fundamental da ética médica não é “no desespero, tente qualquer coisa”, e sim, primum non nocere – “antes de mais nada, não faça o mal”. Esperar o momento certo de agir requer coragem. Não é porque essa é uma coragem anda pouco valorizada, hoje em dia, que podemos prescindir dela.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência