O ufólogo francês Jacques Vallée publicou em 2019 um livro, Forbidden Science 4, em que alega ter obtido documentos que mostram que a CIA forjou abduções alienígenas no Brasil e na Argentina, como parte de um experimento em guerra psicológica. Esses papéis teriam chegado até ele em 1992. No entanto, quando um outro ufólogo pediu acesso à tal documentação, Vallée desconversou.
A troca de mensagens sobre o assunto está reproduzida no blog UFO Trail, de Jack Brewer. Em sua resposta à solicitação de Brewer, Vallée faz algumas alegações bizarras sobre o uso de óvnis como instrumentos de guerra psicológica, afirmado que imagens da Virgem Maria teriam sido projetadas sobre as trincheiras de Verdun, na I Guerra Mundial (1914-1918), em 1917; e que outras imagens religiosas foram projetadas no céu cubano, a partir de um submarino dos Estados Unidos, durante o fiasco da Baía dos Porcos, a fracassada tentativa de invasão de Cuba por militantes anticastristas em 1961. Mas o autor tergiversa sobre os documentos que alega ter visto, sugerindo ainda que Brewer procure “pesquisadores sérios na América Latina”.
Pressionado, o francês apenas acrescenta que não pode dar o nome de suas fontes e que os documentos usados no livro foram doados a uma universidade (não-especificada) com a condição de que só podem vira a público após dez anos. Isso tudo parece (e, se formos ser bem sintéticos a respeito, efetivamente é) um monte de bobagem. Mas, com alguma paciência, encontramos muita coisa instrutiva nessa história.
Sobre a aparição mariana em Verdun: no livro A Supernatural War, um relato das superstições e eventos “sobrenaturais” registrados durante a I Guerra, o historiador britânico Owen Davies nota que “a onda de aparições marianas ocorreu durante a parte inicial da guerra, e claramente foi uma expressão religiosa-patriótica de confiança na retidão da luta e na esperança de um desfecho rápido”.
A única visão mariana de alguma importância anotada por ele, em 1917, foi a de Fátima, em Portugal, bem longe do front (em seu livro de 1975 The Invisible College, Vallée dedica algumas páginas a Fátima, tentando enquadrar a visão religiosa no molde de um fenômeno ufológico).
Sobre a projeção nos céus de Cuba, o pseudoarqueólogo David Hatcher Childress (que, entre outras coisas, defende que monumentos pré-históricos encontrados nas Américas foram erigidos pelo povo da Atlântida), escreve, em seu livro A Hitchhiker's Guide To Armageddon, que Ian Fleming (1908-1964), o criador literário do agengte secreto James Bond, teria sugerido ao presidente John Kennedy (1917-1963) usar lasers para projetar imagens de Jesus Cristo sobre Cuba durante a operação da Baía dos Porcos, mas que a ideia teria sido rejeitada.
Provavelmente bem mais próximo da realidade, Andrew Lycett, autor de uma biografia de Fleming, escreve, em The Man Behind James Bond, que o escritor almoçou com Kennedy em 1960 e, para animar e descontrair a conversa, fez algumas sugestões “ridículas” e “humorísticas” sobre como lidar com Fidel Castro (1926-2016), o ditador cubano – entre elas, derramar sobre a ilha panfletos dizendo que barbas longas absorvem radiação, e que portanto é melhor que os homens tenham o rosto liso. Nada sobre lasers, mas se a ideia foi aventada, lembremos que o tom do almoço, segundo Lycett, era “ridículo e humorístico”.
A respeito da recusa de Vallée em divulgar os papeis, Brewer nota que, originalmente, o autor “optou por ignorar” o pedido de uma cópia da documentação. De fato, a resposta inicial limitava-se aos comentários genéricos sobre Verdun, Cuba e “pesquisadores sérios” latino-americanos. A desculpa da doação à universidade só veio mais tarde, quando Brewer insistiu em ver a papelada.
Para quem está acostumado ao modus operandi da média dos “detetives de mistério” da vida real, nenhuma novidade: alegações extraordinárias apresentadas em tom blasé, como se fossem as coisas mais óbvias do mundo, são uma manobra retórica que busca induzir o interlocutor a não questionar o que é dito, “por via das dúvidas”, para não passar recibo de parvo ou mal informado; caso o interlocutor cobre evidências, muda-se de assunto; caso o interlocutor insista, afirma-se que a evidência existe, mas está temporariamente indisponível.
O “temporariamente” é importante: adaptando um mote clássico das lendas de conversão religiosa, o cinema e a literatura vêm, há um bom tempo, saturando a consciência coletiva com o clichê do gênio incompreendido que, como um santo, suporta, magnânimo, a humilhação imposta por céticos arrogantes até que, no último instante, uma evidência redentora surge e prova que nosso gênio era mesmo, veja só, um gênio, virando a mesa deixando os céticos com cara de tacho.
Essa estrutura narrativa – com sua “moral da história”, por assim dizer – está de tal forma entranhada na mentalidade ocidental que quase ninguém quer correr o risco de terminar com cara de tacho. Daí, o poder da promessa de evidências futuras em calar críticos.
Vallée é um veterano do jogo. O francês é uma espécie de Forrest Gump da pseudociência. Seus quatro volumes de diários publicados (intitulados Forbidden Science 1, 2, 3 e 4, sendo o mais recente o que traz as alegações sobre a CIA e abduções sul-americanas) descrevem encontros com praticamente todas as celebridades do pensamento, digamos, “alternativo” dos últimos quarenta anos, do ufólogo J. Allen Hynek (1910-1986) a Uri Geller. Em Forbidden Science 2, ele conta, por exemplo, que jantou com Erich von Daniken num restaurante árabe, no México, em 1977.
“Racionalistas de segunda linha ganham fama atacando Von Daniken”, escreve o autor, na entrada de diário sobre o jantar. “E é óbvio que ele não é um cientista: não alega ser. Mas o encontramos vivaz e alegre; apreciamos demais a noite”. No mesmo livro, Vallée descreve um almoço com Steven Spielberg, para discutir “Contatos Imediatos do 3º Grau”. O personagem interpretado pelo cineasta francês François Truffaut no filme teria sido inspirado em Vallée.
Vallée visitou o Brasil algumas vezes na década de 80, passagens registradas em Forbidden Science 3. Ele esteve no Nordeste, em 1988, onde investigou brevemente os “chupa-chupas”, luzes voadoras que supostamente atacavam as pessoas à noite, sem chegar a nenhuma conclusão firme. Teve contato ainda com o coronel Hollanda Lima, comandante da Operação Prato, uma investigação sobre óvnis conduzida pela Força Aérea Brasileira (FAB) nos anos 70. Esses eventos são discutidos também em Confrontations, o segundo volume da “Trilogia Contato Alienígena” do mesmo autor, que reúne os frutos de suas andanças, investigações e especulações.
Ainda em Forbidden Science 3, aparece uma versão um pouco diferente do suposto evento de projeção de imagens nos céus cubanos: “Falei sobre a vez em que a CIA planejou simular a segunda vinda de Cristo sobre Cuba”, escreve, numa entrada datada de 8 de janeiro de 1988.
Ele também escreveu o prefácio para o livro UFO Danger Zone, do jornalista americano de tabloides – e, dependendo da fonte, agente da CIA – Bob Pratt (1926-2005), sobre casos de encontros violentos entre brasileiros e “extraterrestres”.
As opiniões do francês a respeito da natureza dos óvnis são um tanto quanto confusas – ele parece acreditar que parte desses fenômenos representa, na verdade, uma série de exercícios de manipulação social e psicológica, mas suas ideias sobre a autoria das manipulações são pouco claras, e chegam a envolver inteligências de outras dimensões, na chamada “hipótese ultraterrestre”, em contraste com a mais comum “hipótese extraterrestre”.
Em The Invisible College, Vallée inclui, numa lista de “proposições úteis”, as ideias de que “informes de óvnis podem não necessariamente ser causados por viajantes espaciais”, pois “eles podem vir de um lugar no tempo”. E que a “chave para entender o fenômeno jaz nos efeitos psíquicos que produz (ou na tomada psíquica de consciência que possibilita) nas testemunhas”.
Textos assim sempre me lembram da observação do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), de que é muito fácil confundir turbidez com profundidade. A rigor, qualquer coisa que não seja uma impossibilidade lógica – um círculo quadrado, um solteiro casado, um número primo terminado em zero – é, em princípio, “possível”, incluindo óvnis de dimensões paralelas, lobisomens, dragões alados e máquinas do tempo.
Por isso, um debate sério e adulto requer, além da mera constatação – quase sempre trivial – de que algo é possível, que se estabeleçam condições que tornem a alegação plausível e o aporte de evidência relevante, não meras inferências baseadas em especulação e barragens de insinuações.
Se existe algum documento provando que a CIA simulava abduções alienígenas para sequestrar ou manipular brasileiros e argentinos nos anos 70 ou 80, esta é uma peça de imenso interesse histórico, que deveria ser colocada à disposição de jornalistas e historiadores. A desculpa do embargo de dez anos é estranha: se o relato dos diários é verdadeiro, então Vallée tem conhecimento dos papéis há mais de três décadas.
Já vieram à tona e foram amplamente divulgados, por exemplo, documentos da CIA mostrando que o governo federal brasileiro, durante a ditadura 64-85, autorizava o assassinato de oponentes políticos. Também a Operação Condor é uma atrocidade militar latino-americana muito bem documentada. O interesse da CIA em usar óvnis como instrumento de guerra psicológica, nos anos 50, também é um fato de domínio público.
Não deixa de ser interessante, num ambiente tão propício quanto o atual para a disseminação e o “hype” de material sensacionalista, que a alegação bombástica feita em Forbidden Science 4 tenha tido tão pouco impacto fora dos círculos ufológicos usuais. Isso parece confirmar a ideia de que a ufologia vem se tornando uma pseudociência insular – fechada em si mesma, sem contato com o campo maior da cultura – mas este é um estado de coisas que pode estar mudando.
Já faz algum tempo, por exemplo, que o New York Times vem dando espaço generoso para a estripulias da To The Stars Academy (TTSA), uma produtora de vídeo envolvida em “pesquisa” extraterrestre e que aparentemente recebe verbas do Pentágono. A TTSA já conseguiu também chamar atenção da revista Time.
Os sintomas, então, ainda são contraditórios, mas isso não é motivo para menosprezar o meio. Subculturas insulares têm o hábito de pegar a sociedade desprevenida quando finalmente resolvem vir à tona.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência