Charles Fort, o gênio visionário das pseudociências

Apocalipse Now
6 dez 2019
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O Livro dos Danados

Este mês de dezembro marca o centenário de um dos eventos mais importantes da história cultural do Ocidente: a publicação de um livro que influenciou de modo indelével a relação entre ciência, arte e sociedade. Uma obra que antecipou, em décadas, os supostos trabalhos “pioneiros” em temas como ufologia, deuses astronautas, relativismo epistêmico – a ideia de que ciência é só “uma narrativa”, algo que os cientistas combinam entre eles, uma arapuca para conseguir verbas e prestígio, sem relação necessária com a realidade.

Isso, em termos de conteúdo. Em termos de forma, o texto antecipa maneirismos surrealistas como fluxo de consciência e livre associação de palavras. Curiosamente, trata-se de um livro muito pouco lido e estudado entre nós: uma busca na internet revela, em nossa língua, apenas uma edição brasileira, publicada na década de 70 pela editora Hemus, e uma portuguesa, mais recente. Refiro-me, é claro, ao Livro dos Danados (“The Book of the Damned”, no original), do americano Charles Fort (1874-1932), que chegou às livrarias dos Estados Unidos em janeiro de 1920, tendo com data de publicação dezembro de 1919.

Ainda hoje, a obra de Fort desafia classificação, e é difícil encontrar uma descrição que lhe faça justiça. Objetivamente, “The Book of the Damned” é uma coleção de recortes de jornal e sinopses de relatos históricos, uma salada mista de narrativas de fenômenos que, aos olhos de Fort, carecem de explicação científica adequada – fenômenos que vão de chuvas de peixes e sapos, a luzes estranhas vistas no céu. 

Em obras posteriores, como “Lo!” (1931) e “Wild Talents” (1932) ele amplia o escopo para relatos de supostos poderes paranormais, como teletransporte (segundo o pesquisador britânico Andrew May, o próprio termo “teleportação” foi inventado por Fort). Mas Charles Fort era mais do que um mero compilador: suas listas de eventos bizarros e fenômenos absurdos (em suas próprias palavras, seu “desfile dos danados”) estavam a serviço de uma ideia.

Qual ideia? Uma resenha de seu trabalho, publicada no New York Times em 1941, diz que seus livros são “thrillers de não-ficção, mais melodramáticos do que qualquer romance policial já publicado”, que se dedicam a tirar os “esqueletos da ciência” do armário. Décadas mais tarde, o crítico literário (e escritor de ficção científica) Damon Knight (1922-2002) definiria assim a atitude do autor: “ele acreditava que, em ciência, só existem ingênuos e desvairados, e como se recusava a ser um ingênuo, tornou-se um desvairado”. 

Para Fort, a ciência é uma “narrativa”, um conto de carochinha que os cientistas constroem para fingir que estão explicando o mundo. E esse processo de construção é, por necessidade, excludente e elitista. Fatos que não cabem no conto – que desafiam a lógica da narrativa – são “danados”, isto é, condenado a uma espécie de inferno epistêmico, empurrados para as margens, ignorados. Quem insiste em chamar atenção para eles é tachado de “camponês ignorante” ou, caso tenha credenciais acadêmicas, excomungado: perde a reputação e seus benefícios.

Para denunciar esse estado de coisas, Charles Fort adota uma estratégia dupla: pôr o “desfile dos danados” diante dos olhos do público e criar explicações, supostamente, “tão boas quanto” as da ciência para os fenômenos que descreve. Afinal, se a ciência é só uma narrativa inventada por cientistas, o que impede – eu, você, Fort – de inventarmos as nossas? É na elaboração dessas teorias “alternativas” que o brilho surrealista do autor se revela. Fort nunca deixa claro se devemos, ou não, levar suas especulações a sério, ou se elas representam apenas tentativas de reduzir as teorias da ciência ao absurdo, multiplicando fantasias que lhe parecem não mais ridículas do que a Lei da Gravidade ou a Teoria da Evolução.

Ele propõe, por exemplo, que as “chuvas” misteriosas de animais, insetos, pedaços de carne e carvão, registradas na imprensa, podem ser provocadas por acidentes de trânsito em órbita da Terra ou vazamentos de cargueiros interplanetários. 

A imagem de naves espaciais movidas a carvão, com problemas na fornalha (explicação sugerida por Fort para certas “chuvas” de pedras pretas inflamáveis) é especialmente marcante. E, lembre-se, o livro é de 1919. A primeira revista dedicada a popularizar temas de ficção científica como robôs e aventuras no espaço, Amazing Stories, só viria a estrear em 1926.

Outra sugestão apresentada é o Mar de Super-Sargaços, uma região da alta atmosfera terrestre onde corpos elevados por trombas d’água, ventos fortes ou despejados por viajantes espaciais ficariam estocados – numa espécie de bolha antigravitacional – até serem arrancados dali por um vendaval, tempestade ou outra perturbação qualquer.

Mas o ponto alto da especulação fortiana aparece no capítulo 12 do “Book of the Damned”: “Creio que somos propriedade”, escreve ele. “Diria que pertencemos a alguma coisa”, do mesmo modo que gado, patos e gansos pertencem aos donos das fazendas em que são criados.  “Alguma coisa agora tem direito legal sobre nós”.  E essa “alguma coisa” seria a causa dos fenômenos que a ciência não entende e nem explica, do mesmo modo que o dono de uma granja causa efeitos que as galinhas percebem, mas não são capazes de explicar.

Por mais hipnóticas, provocativas e intrigantes que pareçam as propostas de Fort, a verdade é que elas revelam uma profunda ignorância sobre como a ciência realmente é feita, como constrói e testa suas hipóteses. O pressuposto de Fort é o de que os “fatos científicos” são meros enunciados arbitrários, como as regras de um jogo de salão. Que cientistas concordam com esses fatos apenas porque querem continuar jogando, sem sofrer punição por cometer “faltas”. Que, portanto, a escolha entre o jogo da ciência e qualquer outro, como o da superstição, da religião ou da fantasia, é uma questão de gosto individual ou, pior, hipocrisia e carreirismo.

Nada disso, no entanto, é verdadeiro. Pelo contrário: se a ciência fosse mesmo um jogo de regras abstratas, que premia fidelidade à tribo em detrimento da busca pela verdade, a Física Quântica, a Teoria da Relatividade e a própria Evolução jamais teriam tido a menor chance. É bem provável que o currículo de astronomia ainda tivesse a Terra no centro do Universo.

“Ninguém nunca investigou nada”, escreve Fort, “mas sempre só se buscou provar ou desprovar algo imaginado de antemão”. Com essa frase, o autor mostra que não consegue distinguir ciência de retórica – que, para ele, o teste de uma hipótese é como o discurso de um advogado: preparado para produzir um efeito predeterminado.

Mas isso não é verdade. Teorias científicas são julgadas pela compatibilidade com a evidência imediata, com os resultados de testes propostos e pela consistência com outras teorias que já contam com apoio independente.

É por isso que o Mar de Super-Sargaços e os cargueiros espaciais movidos a vapor e carvão falham, por exemplo: eles explicam parte da evidência (coisas estranhas caídas do céu), mas deixam a descoberto uma quantidade infindável de fenômenos logicamente conectados, da eficácia universal da gravidade ao fato de que combustão não ocorre no vácuo e, de qualquer maneira, máquinas a vapor são terrivelmente ineficientes para transporte interplanetário.

Ademais, parte significativa dos fenômenos que o autor enumera em seus livros veio de periódicos científicos e publicações de divulgação científica. Em 1873, a Scientific American dedicou parte generosa de uma coluna a “Chuvas Bizarras”, tratando de peixes, sapos e insetos. Essas ocorrências não foram “danadas”: foram reportadas numa revista de alta reputação.

Em sua obra, Charles Fort antecipa uma série de erros e falácias que, nas décadas seguintes, seriam abraçados por charlatões e pseudocientistas de todos os tipos. 

O primeiro é o chamado apelo à incredulidade pessoal: se as explicações dos especialistas não fazem sentido para quem é leigo no assunto, então elas são bobagem. É uma forma de arrogância intelectual: se eu não consigo entender, quem diz que consegue só pode estar mentindo. Erich von Däniken, que de certa forma herdou de Fort o mote de que “somos propriedade”, é um mestre dessa manobra – se para ele, Von Däniken, o entalhe na pedra parece um astronauta, quem é o especialista em arte e arqueologia para dizer o contrário?

Há ainda a confusão entre inexplicado e inexplicável: o fato de nenhum cientista ter se dado ao trabalho de oferecer uma explicação completa e satisfatória para algum fenômeno (uma chuva de pingos vermelhos, por exemplo) não significa que o fenômeno seja inexplicável para a ciência, mas só que os pesquisadores que analisaram o caso não o acharam interessante o suficiente, ou não tinham dados bastantes para trabalhar.

Outra característica é uma credulidade quase infantil no que diz respeito a relatos publicados na imprensa. O cinismo com que Fort encara as declarações de cientistas é proporcional à ingenuidade com que abraça falas atribuídas a testemunhas oculares (tal como transcritas pelos repórteres) e relatos de publicações sensacionalistas. 

Problemas correlatos são a confusão entre casos isolados e casos representativos e, por consequência, a ideia de que um grande volume de evidência confusa e ruim fala mais alto do que alguma pouca evidência sistemática de boa qualidade. 

No lado positivo, Charles Fort deixou um legado enorme para a cultura popular (é razoável dizer que a obra de HP Lovecraft e seriados como Arquivo X ou Stranger Things são existiriam sem ele), e um apetite para o incomum e o extraordinário que alimentou não só ideias pseudocientíficas, mas também pesquisa e jornalismo de boa qualidade. Nesse sentido, a revista britânica Fortean Times busca manter vivo o melhor da tradição iniciada por Fort, ainda que seus esforços mais interpretativos exijam uma dose de ceticismo saudável por parte do leitor.

Embora seja razoável dizer que algumas linhas mais radicais da sociologia da ciência, surgidas a partir dos anos 60, chegaram a conclusões semelhantes às de Fort quanto ao suposto caráter narrativo e arbitrário do saber científico, não sei se seria correto atribuir um equívoco ao outro: o caso, aqui, parece mais ser de evolução convergente das ideias ruins do que de descendência direta.

O fato é que vivemos num ambiente cultural e, até mesmo, filosófico que foi inaugurado pelo livro que Charles Fort publicou cem anos atrás. Navegá-lo com sucesso, e de modo responsável, é o desafio que se apresenta para os próximos cem.

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

 

 

 

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