Um dia depois de ser eleita líder de um órgão estudantil, em 2017, a estudante negra americana Taylor Dumpson encontrou bananas penduradas em nós de forca, espalhadas por diversas árvores do campus. Meses antes, em dezembro de 2016, a corretora de imóveis judia Tanya Gersh atendeu ao telefone e ouviu uma rajada de metralhadora. O telefonema seguinte trouxe a explicação: “É assim que mantemos o Holocausto vivo. Podemos te enterrar sem precisar te tocar”.
Ambas foram alvo de “tempestades de trollagem”, ondas de assédio online, perseguições, ameaças e “brincadeiras” desencadeadas por instigação de Andrew Anglin, o líder neonazista online que mais fez para capitalizar a ambiguidade entre humor de mau gosto e assédio, tão prevalente no mundo das redes sociais, e transformá-la em arma.
No caso de Dumpson, após as frutas “enforcadas” no campus virarem notícia, Anglin foi às redes sociais pedir a seus seguidores que enviassem à líder estudantil “palavras de apoio” em sua “luta contra as bananas”. Um seguidor de Anglin postou no Twitter o endereço dela e a mensagem: “todo mundo, tragam bananas”.
Na última semana, Anglin, cujo paradeiro é desconhecido, foi condenado à revelia a indenizar Dumpson em US$ 750 mil. Um mês antes, Tanya Gersh havia conquistado na Justiça, também à revelia, o direito de receber dele uma indenização de US$ 14 milhões. Anglin havia publicado, em seu site neonazista, fotos e dados de contato de Gersh e do marido, de outros judeus da área, além de uma montagem fotográfica mostrando o filho de 12 anos do casal diante dos portões de Auschwitz. A mensagem: “pra cima deles”.
O processo
Andrew Aglin segue sendo uma figura, até certo ponto, misteriosa. A melhor informação pública a seu respeito aparece em um perfil publicado pela revista The Atlantic em 2017. Ali, descobrimos que foi um adolescente vegano, que usava um moletom com a inscrição “FUCK RACISM”, e que escrevia posts na internet exortando as pessoas a mandar ameaças de morte – anônimas – a uma igreja homofóbica.
O autor do perfil, jornalista Luke O’Brien, aponta que “Anglin é o melhor propagandista da alt-right, e seus escritos tocam algumas das mesmas ansiedades e ressentimentos que ajudaram a levar Trump à Presidência – principalmente, a percepção de perda de status entre homens brancos”.
Seu estilo atual de ação, de acordo com o perfil, combina lições de Adolf Hitler sobre retórica e de Saul Alinsky, autor do manual de ativismo político Rules for Radicals, quanto a ética e estratégia. Dirigido originalmente a ativistas de esquerda,Rules defende que considerações éticas não devem jamais ficar no caminho do objetivo a ser alcançado pela ação política: o bem supremo da Humanidade.
“A arena da realidade é corrupta e sangrenta”, escreve. “A vida é um processo corruptor, a partir do momento em que a criança aprende a jogar o pai contra a mãe na política da hora certa de dormir; quem teme a corrupção, teme a vida”. Ele também acreditava que a polarização extrema seria um pré-requisito da ação política bem-sucedida.
Um de seus conselhos aos que prendem organizar movimentos políticos é de que “antes que os homens possam agir, uma situação precisa ser polarizada. Homens só agirão quando estiverem convencidos de que sua causa está 100% do lado dos anjos, e que a oposição está 100% do lado do demônio”. É importante, para unir uma comunidade, eleger um inimigo comum.
Se as comunidades que Alinsky tinha em mente eram de negros pobres, mulheres marginalizadas ou operários, Anglin aplicou o princípio a jovens brancos socialmente desajustados, que vivem e respiram os fóruns e chats da internet.
Alinsky, no entanto, adverte o organizador comunitário a se manter “esquizofrênico” e evitar acreditar plenamente na fantasia maniqueísta: afinal, a hora da negociação com o outro lado pode chegar, e a verdadeira diferença de posição talvez não passe “de 10%”.
Não está claro se Anglin segue esse conselho em particular. O autor do perfil para a Atlantic sugere que, mais do que a causa, o que o motiva é o desejo de status: e a diferença entre nazismo e qualquer outra posição política é certamente muito maior que “10%”.
No campo do discurso, Alinsky propõe o ataque ad hominem e o humor. “As armas mais poderosas conhecidas pela humanidade são a sátira e o ridículo”, sentencia. Ele também lembra que ameaças costumam ser mais assustadoras do que atos. Anglin talvez tivesse isso em mente, quando convocou uma passeata de nazistas armados pelas ruas da cidade em que Tanya Gersh vivia.
A expectativa da invasão de skinheads ostentando fuzis estressou moradores e mobilizou autoridades durante vários dias, mas acabou não se realizando – e, mais uma vez, o uso ambíguo do humor – afinal, a “convocação” tinha sido pra valer, ou só mais uma piada? – trabalha a favor do assédio emocional.
Pode-se argumentar que a adoção dos preceitos de Alinsky pela alt-right perverte seu sentido original e despe-os do contexto próprio; mas isso não torna esses preceitos – principalmente os da polarização, do ridículo e da ameaça – menos eficazes nas mãos de neonazistas e associados.
Polarizados
Um dia depois de noticiar a vitória de Taylor Dumpson, na Justiça, The New York Times publicou uma ampla reportagem com o título How YouTube Radicalized Brazil (“Como o YouTube Radicalizou o Brasil”). O texto acusa o atual presidente da República, Jair Bolsonaro, de ser um “pioneiro” do linchamento virtual, lembrando o caso do “kit gay”, e relata ações de correligionários do presidente que não diferem muito, em estilo, das incitadas por Anglin nos Estados Unidos.
Um caso citado é o de professores “denunciados” por bolsonaristas por suposta “doutrinação comunista” de estudantes, e que se tornaram vítimas de ameaças na internet. Um político de direita, citado pelo jornal americano, afirma que não se incomoda em espalhar o medo entre professores. “Estamos travando uma guerra cultural”, teria dito ele ao diário.
Levantamento realizado pelo jornal O Estado de S. Paulo apoia essa percepção, notando que “após ataques públicos de Jair Bolsonaro a pessoas e instituições, elas imediatamente se tornam personagens de boatos infundados de grande circulação nas redes sociais. As ondas de desinformação buscam validar as declarações do presidente e, ao mesmo tempo, manchar a reputação de seus alvos”. O jornal chegou a produzir editorial crítico à ação dos apoiadores do presidente.
Se, nos Estados Unidos, incitadores de “tempestades de trollagem” começam a ser punidos pelo Judiciário, o Brasil tem, pelo menos, um exemplo que vai no mesmo sentido. Ano passado, Marcelo Valle Silveira Mello foi condenado por diversos crimes virtuais, inclusive perseguição movida contra a professora e blogueira Lola Aronovich. A situação é menos clara quando o troll em questão tem posição oficial. Nos EUA, um tribunal já impôs alguns limites tímidos ao uso do Twitter por Donald Trump.
Tiros na janela
No mundo de língua inglesa e na Europa, essas táticas de assédio online são apenas parte de um movimento muito maior de agressão racial, tanto física quanto psicológica. Em sua pior face, esse movimento explode em atos explícitos de violência racista. No aspecto mais corriqueiro, limita-se a usar o humor, a ironia, a trollagem e o mau-gosto a fim de “abrir a janela de Overton” para ideias violentas, racistas e xenófobas.
Segundo o consultor Jospeh Overton, a sociedade tem uma “janela” onde cabem as propostas de política pública consideradas aceitáveis ou, pelo menos, dignas de consideração: escravidão, por exemplo, está fora da janela; saúde pública, dentro.
A amplitude da janela – o que cabe ou não nela – varia com o espírito dos tempos, o senso de certo e errado da sociedade e a situação política. Há analistas que apontam que a eleição de Donald Trump “escancarou a janela” para ideias de direita que, até então, eram vistas como excessivamente radicais pelo consenso social americano, como a deportação em massa de imigrantes.
Pode-se argumentar que a ação de Bolsonaro e de seus fãs virtuais também vem forçando a abertura da janela no Brasil: os limites do politicamente aceitável seguem se expandindo, e numa direção nada boa, em campos que vão dos direitos das minorias à ciência.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência