“Conspirações costumam vir mais de perdedores do que de ganhadores”, escreve o cientista social americano Joseph Uscinski, que estuda o assunto há uma década, na edição mais recente da revista Skeptical Inquirer. Em suas pesquisas sobre os tipos de paranoia que, historicamente, aparecem nas seções de cartas dos jornais americanos, ele notou que “quando um republicano era presidente, teorias de conspiração tendiam a acusar republicanos (...) mas quando um democrata era presidente, teorias de conspiração tendiam a acusar democratas”.
A literatura sobre o assunto também reforça esse ponto. Um dos artigos mais citados sobre a mentalidade conspiratória nos Estados Unidos, “The Paranoid Style in American Politics”, publicado pelo historiador Richard Hofstadter em 1964, já sugeria que a direita americana via o país sendo “arrancado de suas mãos” pelos intelectuais, minorias étnicas e “comunistas”. Por isso, encontrava conspirações em toda parte.
Dado esse histórico, aponta ele, o grau de promoção de teorias da conspiração por republicanos – agora no poder, com Donald Trump – é surpreendentemente alto. Uscinski sugere que isso pode ser explicado pelo fato de que Trump fez toda sua campanha apresentando-se como um outsider que desafiava um sistema podre: um sistema dominado por corruptos e conspiradores.
Essa retórica atraiu um público já predisposto a enxergar o mundo sob a lente da conspiração, público que cimentou a base do governo. “O resultado é que os Estados Unidos agora têm um presidente que se envolve constantemente em teorização conspiratória, porque construiu uma coalizão de apoiadores que pensam em termos de conspirações. Ele tem de dançar com quem o levou para o baile”.
Conspirações chegam ao horário nobre
O insight de que um vencedor que prefere ser visto como “de fora do sistema” vai lançar mão de teorias da conspiração para promover a própria posição de poder é valioso, e faz muito sentido: no limite, podemos encontrar precedentes históricos na velha estratégia totalitária de pintar grupos étnicos ou políticos específicos como “inimigos do povo”, que conspiram para destruir o líder, que se identifica com a pátria.
Um efeito colateral do tom conspiracionista do atual ocupante da Casa Branca é o aumento da visibilidade das teorias da conspiração na mídia tradicional, incluindo em veículos que, por terem boa reputação, acabam colando um selo subliminar de legitimidade em tudo que publicam (afinal, “isso não sairia no New York Times se não fosse importante, certo?”).
Essa visibilidade “de horário nobre” pode ter efeitos indesejados: o relatório “Media Manipulation and Disinformation Online”, publicado pelo Data & Society Institute, aponta que “não faz diferença se a mídia reporta uma história para desmenti-la ou minimizá-la; o que importa é que ela receba cobertura. O volume de cobertura de mídia dedicado a questões específicas influencia a importância presumida desses temas aos olhos do público”.
Nesse aspecto, quando uma teoria de conspiração que pinta Donald Trump como um herói travando uma guerra secreta contra o “deep state” – supostas forças ocultas conspiratórias entranhadas no aparato estatal – é citada não só em Fortean Times (uma revista dedicada a temas “alternativos”, com uma cobertura específica para teorias de conspiração), como também em The Guardian, no New York Times, Rolling Stone e, seguidas vezes, no Washinghton Post, pode-se dizer que algo como um movimento tectônico na crosta da cultura política está em andamento.
Os “vazamentos” Q
Segundo a detalhada reportagem de Fortean Times, a história começa em 28 de outubro de 2017, com o anúncio, num fórum online, de que Hillary Clinton seria presa dali a dois dias.
A postagem, anônima, fazia uma previsão que não se cumpriu (a menos que você esteja disposto a acreditar que a prisão ocorreu secretamente, que hoje em dia Hillary anda por aí com uma tornozeleira eletrônica) e marcou o início do “rastro de migalhas de pão” que QAnon (“Q Anônimo”) tem espalhado pela internet.
Esse “rastro” mistura frases de efeito (“Calma Antes da Tempestade”, “Confie no Plano”, “Onde Formos Um, Iremos Todos”), dicas enigmáticas e insinuações que, de acordo com os fãs, descrevem um programa secreto de expurgo, captura e punição de pedófilos, esquerdistas e traidores entranhados no sistema político americano.
O autor (ou autores) das mensagens de QAnon constroem suas “migalhas” de modo a revestir palavras e ações de Trump com camadas extras de significado – ou, ao menos, com a sugestão de tais camadas. De dentro dessa bolha conspiratória, o presidente nunca erra ou fala bobagem: cada aparente equívoco, disparate ou baboseira é, na verdade, uma jogada, uma cortina de fumaça, parte do plano de salvação nacional (daí o slogan “confie no plano”) que, em algum momento, será revelado ao público (a “tempestade” que se seguirá à presente “calma”).
Tudo isso não passaria de uma espécie de role-playing game ou Teste de Rorschach virtual, um jogo específico de um nicho ou subcultura dentro da direita, se apoiadores de Trump não começassem a aparecer em comícios e atos públicos carregando placas com a letra “Q” estampada, ou cartazes com fases como “Confie no Plano” e “Calma Antes da Tempestade”.
Fotos dessas pessoas saíram na grande mídia, que teve de oferecer uma explicação para os dizeres enigmáticos a seus leitores. O próprio Trump se reuniu com um dos principais promotores da “teoria”, o que abriu ainda mais espaço para o assunto. Assim, “Q” caiu no mainstream. Hoje em dia, é possível comprar camisetas da “conspiração” na Amazon.
Ironia como arma
O catálogo da megastore global se refere ao produto como “irônico”, e uma das hipóteses sugeridas para explicar o surgimento de QAnon é que se trata de uma teoria de conspiração falsa, um evidente absurdo criado pela esquerda americana para expor a estupidez da extrema-direita.
Um dos problemas dessa interpretação é que ela pressupõe uma profunda ingenuidade em relação à Lei de Poe. Articulada originalmente por Nathan Poe no contexto do debate entre cientistas e criacionistas, a lei, em sua formulação atual, diz que, no mundo online, é impossível distinguir uma defesa sincera de uma ideia absurda de uma paródia escrachada da ideia absurda, a menos que o autor se esforce para deixar sua intenção clara.
O relatório “Media Manipulation and Disinformation Online” destaca que “um troll de sucesso joga com a ambiguidade, de modo que a audiência nunca tenha certeza de se ele fala sério (...) discurso racista é usado de tal maneira que pode ser visto tanto como ‘trollagem’ do politicamente correto quanto como genuíno racismo”.
Essa ambiguidade “permite que os participantes se dissociem dos elementos menos salutares enquanto ainda promovem o movimento”. Grupos radicais de extrema-direita online usam a estratégia de “nazismo a sério disfarçado de nazismo irônico”, a fim de que suas ideias ganhem circulação entre os “normies” – a população “normal”, que sem os anteparos da ambiguidade e do humor reagiria com rejeição imediata ao discurso racista, antissemita e homofóbico.
Artigo recente no New York Times aponta que esse estilo ambíguo – ora irônico, ora sério, real intenção incerta – vem sendo cada vez mais abraçado por promotores online de teorias da conspiração, incluindo das teorias mais “inócuas”, como o negacionismo da viagem à Lua.
“Ambivalência emocional talvez seja o modo dominante da cultura contemporânea da internet”, escreve a colunista Amanda Hess, notando que o hábito parece estar se propagando, a partir dos trolls e da extrema-direita, para o pessoal mais ligado em entretenimento leve. O que só aumenta o risco de os extremistas acabarem mesmo ganhando a atenção e a boa vontade dos “normies” — ao fingir que é tudo na base da brincadeira.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência