É impossível parar de comer de vez e continuar vivo. Este fato, ainda mais evidente do que a forma esférica da Terra, também enfrenta seus negacionistas – pessoas que afirmam ser possível “viver de luz” ou, mais especificamente, de uma combinação de luz e ar (ninguém ainda teve a desfaçatez de dizer que vive sem respirar).
Antes que alguém ache que a ideia faz sentido, vamos lembrar que nem as plantas – que realmente assimilam energia diretamente do sol – vivem apenas de ar e luz: agricultores gastam dinheiro com adubo não porque gostam, mas porque precisam.
Mesmo se o ser humano fosse capaz de aproveitar energia solar diretamente (não é), os alimentos também fornecem, além de combustível, matéria-prima para a manutenção do organismo: a superfície da pele e o revestimento do estômago, por exemplo, perdem células continuamente, e essas células precisam ser respostas, substituídas por outras construídas com materiais que vêm de fora.
Entre esses materiais há aminoácidos, vitaminas e minerais que não se encontram presentes na atmosfera, caso alguém imagine que seria possível “respirar” nutrientes. A atmosfera terrestre contém nitrogênio, oxigênio, dióxido de carbono, vapor d’água e outros gases; não proteínas. E, de qualquer forma, o pulmão não é parte do aparelho digestório.
A moda
Chamado de “respirationismo”, o movimento dos que dizem que dá para viver só de ar e luz tem passado por momentos de fluxo e refluxo no Ocidente, principalmente por causa das vicissitudes de sua principal porta-voz, a australiana Ellen Greve, que prefere ser chamada de Jasmuheen. Ela é autora de vários livros sobre o tema e pelo menos um, “Viver de Luz”, foi traduzido no Brasil.
Em 1999, Jasmuheen falhou num teste promovido por um programa jornalístico de TV, que se propôs a monitorá-la por vários dias e documentar sua suposta capacidade de sobreviver sem alimento e água. No quarto dia, um médico determinou que o teste fosse interrompido: ela estava gravemente desidratada, havia perdido muito peso e corria risco de sofrer falha renal.
Além disso, de 1997 a 2012 várias mortes por desnutrição foram atribuídas aos ensinamentos da australiana.
A despeito desses percalços embaraçosos – ou mesmo trágicos –, o respirationismo se mostra resistente. Algum tempo atrás, aqui mesmo no Brasil, um médico paranaense conseguiu espaço de destaque na mídia de seu estado alegando que sobrevive sem se alimentar há anos.
A ideia de viver sem comida parece ser especialmente forte no mundo de língua alemã: em um intervalo de menos de dez anos, foram realizados dois documentários altamente crédulos sobre o assunto, “No Way to Heaven” (Suíça, 2003) e “In The Beginning There Was Light” (Áustria, 2010). Este último está disponível para streaming, numa versão dublada em inglês e atualizada pelo diretor em 2108.
Detalhes
Talvez escaldado pelas mortes atribuídas aos “ensinamentos” de Jasmuheen, “In The Beginning There Was Light” faz questão de apresentar enormes disclaimers, tanto em seu website quanto no filme em si, advertindo que parar de comer não é para qualquer um e que o documentário não tem a intenção de induzir ninguém a, etc., etc. Aliás, a edição brasileira de “Viver de Luz”, de Jasmuheen, traz a seguinte advertência: “Nem a autora, nem o editor e/ou distribuidores podem ser responsabilizados ou processados por qualquer perda ou dano (...) que possa resultar das informações contidas neste livro”. Avisos, alertas e advertências à parte, uma mulher respirationista morreu na Suíça após o lançamento do filme, mas o diretor, citando autoridades locais, repudia qualquer ligação entre os fatos.
O documentário austríaco ouve várias pessoas que alegam ser capazes de viver sem comer. A maioria (incluindo Jasmuheen), no entanto, admite que consome alimentos, “de vez em quando”, para aliviar o tédio do paladar, ou que bebe sucos regularmente.
Muitos parecem realmente acreditar que não precisam de líquidos ou alimentos, e que comem e bebem apenas por uma questão de prazer estético, não por necessidade fisiológica vital, e que essas quantidades seriam insuficientes para sustenta-los. Crenças e fatos, no entanto, nem sempre andam alinhados.
O único a insistir que realmente não come ou bebe nada há décadas, e que se deixou testar de modo aparentemente rigoroso, mantendo-se sob observação por um período prolongado, foi o guru indiano Prahlad Jani, mas os testes ofereceram ampla oportunidade para fraude e, portanto, devem ser considerados inconclusivos, para dizer o mínimo.
O documentário ainda dá crédito a Hira Ratan Manek, um homem que diz viver somente de café, chá e luz solar desde 1995, mas que foi fotografado num restaurante indiano em 2011. O filme faz a caridade de não mencionar Wiley Brooks, americano que nos anos 80 foi uma verdadeira celebridade respirationista – até ser flagrado saindo de uma loja de conveniência com um refrigerante e um cachorro-quente.
Contexto
A ideia de que algumas pessoas tornam-se, por meios mágicos ou favor divino, capazes de sobreviver sem alimento existe em diversas mitologias e tradições religiosas. Anorexia mirabillis é uma condição psiquiátrica, um tipo de distúrbio alimentar em que a pessoa cessa de comer por razões religiosas. Suas principais vítimas eram mulheres católicas, principalmente freiras, na Idade Média.
O respirationismo, no entanto, existe em outro contexto, o da espiritualidade da Nova Era, ou “New Age”. O “New Religions Guide” da Universidade de Oxford inclui seu verbete sobre Jasmuheen nessa rubrica. Em seu livro “Pranic Living” (uma versão ampliada e atualizada do infelizmente clássico “Viver de Luz”), a australiana percorre, em poucas páginas, um verdadeiro check-list de temas da Nova Era, de “energia universal” à Leia da Atração, passando por Deepak Chopra e, inevitavelmente, bobagens enunciadas sob a rubrica de “Física Quântica”.
Em sua “New Age Encyclopedia”, o pesquisador americano de movimentos religiosos J. Gordon Melton define a espiritualidade da Nova Era como marcada por experiências de transformação individual. “ ‘New Agers’ já vivenciaram ou estão em busca de vivenciar uma profunda transformação pessoal, saindo de uma velha vida inaceitável rumo a um futuro novo e estimulante”, define.
Essa transformação, prossegue Melton, não precisa se dar num momento único, como uma conversão religiosa tradicional, mas tende, na verdade, a ter caráter contínuo: o “new ager” enxerga a mudança como um processo espiritual que se desenrola ao longo do tempo (às vezes, ao longo de diferentes encarnações), e que pode ser facilitado por uma série de ferramentas, como yoga, meditação, dieta, etc. De todas, o respirationismo é talvez a mais radical, irresponsável e perigosa.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência